Seria a Igreja a continuação de Israel?
O catolicismo romano e grande parte do protestantismo fundamentalista considera a Igreja a continuidade natural de Israel. Tal ideia produziu algumas aberrações, como o desejo de destruir os judeus, primeiro por católicos (Inquisição) e depois por protestantes (Alemanha), já que o próprio Lutero tinha tal aversão, como se eles fossem um câncer no desenrolar da história do mundo. O sentimento de antissemitismo de Martinho Lutero pode ser visto em um de seus escritos:
“Em primeiro lugar, suas sinagogas deveriam ser queimadas... Em segundo lugar, suas casas também deveriam ser demolidas e arrasadas... Em terceiro, seus livros de oração e Talmudes deveriam ser confiscados... Em quarto, os rabinos deveriam ser proibidos de ensinar, sob pena de morte... Em quinto lugar, os passaportes e privilégios de viagem deveriam ser absolutamente vetados aos judeus... Em sexto, eles deveriam ser proibidos de praticar a agiotagem... Em sétimo lugar, os judeus e judias jovens e fortes deveriam pôr a mão na debulhadora, no machado, na enxada, na pá, na roca e no fuso para ganhar o seu pão no suor do seu rosto... Deveríamos banir os vis preguiçosos de nossa sociedade ... Portanto, fora com eles... Resumindo, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se este meu conselho não vos serve, encontrai solução melhor, para que vós e nós possamos nos ver livres dessa insuportável carga infernal – os judeus” — “Concerning the Jews and their lies” por Martinho Lutero.
Outra consequência de se pensar que não existiria um futuro para Israel, e que tal futuro seria justamente a Igreja, é a ideia de que os cristãos são responsáveis em levar o evangelho por todo o mundo como condição prévia para a volta de Cristo, quando a ordem do “Ide” foi dada claramente aos apóstolos em circunstâncias judaicas e falando do “evangelho do Reino”, que anuncia a volta do Rei. Segundo os que pensam assim, enquanto o mundo não for totalmente evangelizado Cristo não poderá voltar, portanto seria bobagem pensar que o Senhor poderia vir a qualquer momento, como era a esperança de Paulo e outros, que obviamente sabiam que o evangelho não seria pregado em todo o mundo dentro do período de suas vidas:
(1Ts 4:17) “Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos arrebatados...”.
A ideia de que primeiro o cristianismo precisa conquistar e dominar o mundo para cristo voltar é também o que movia os cruzados antigos e os modernos em sua ânsia conquistadora, como o desejo norte-americano de uma hegemonia ocidental que às vezes faz uso de meios militares para atingir tal fim. A Teologia do Domínio, professada pelo ex-presidente Bush e por parte dos batistas fundamentalistas do sul dos Estados Unidos, vem desse desejo.
Mas o fato é que Israel e Igreja são dois povos diferentes, e isso é claramente explicado em Romanos 11. Israel está no presente momento em estado de torpor e cegueira enquanto Deus trata com a Igreja. Mas no fim Israel irá se converter e Deus terá os dois povos: Israel, escolhido desde a fundação do mundo (Mt 25:34), e a Igreja, escolhida antes da fundação do mundo (Ef 1:4). Para ser Israel eu precisaria me tornar israelita ou ao menos um prosélito, passando a ter minhas práticas e costumes pautados pelas ordenanças judaicas e buscar em Jerusalém meu lugar de adoração.
Romanos 11 usa como exemplo a oliveira, a árvore de onde provém o azeite que é tantas vezes usado nas Escrituras como figura do Espírito Santo, pois é o azeite o combustível da luz que ilumina. O assunto do capítulo não é a salvação ou o testemunho individual, mas o testemunho coletivo de Deus na terra, ora nas mãos de seu povo Israel, ora nas mãos da Igreja, e em diferentes épocas sob influência e direção do Espírito Santo.
Israel, os ramos naturais, foi quebrado, e a Igreja, os ramos de oliveira brava, enxertada. Considerando que uns e outros são meros ramos, podemos deduzir que a árvore continua existindo independente deles, porque a árvore é o testemunho de Deus em sua totalidade. Os ramos são aquelas coisas que partem do tronco e expandem seu alcance, o que vem bem de encontro à ideia de um testemunho crescente e abrangente.
EmGn 12 Deus prometeu a Abraão que ele seria o pai de uma grande nação, e obviamente sabemos tratar-se de Israel. Abraão foi pai de Isaque e avô de Jacó, que teve seu nome mudado para Israel. A promessa incluía que todas as nações da terra seriam abençoadas por meio de Israel, ao qual Deus chamou de sua “menina dos olhos”.
(Jo 4:22) “Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus”.
(Gl 3:14) “Para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios por Jesus Cristo, e para que pela fé nós recebamos a promessa do Espírito”.
O sentido disso não é que os gentios se tornariam judeus ou Israel para serem abençoados, mas que desfrutariam da bênção que, por intermédio de Abraão e de Israel, chegaria até nós gentios na Pessoa de Jesus e de seu sacrifício consumado. Portanto, hoje somos salvos independente de nos tornarmos judeus ou parte da nação de Israel. E o fato de nós, cristãos e Igreja, existirmos independente de Israel não significa que Israel deixa de ser ou de ter as promessas que Deus lhe deu. Se antes Deus olhava para o mundo e enxergava apenas dois povos, Israel e gentios, hoje Deus enxerga três: Israel, gentios e Igreja.
(1 Co 10:32) “Portai-vos de modo que não deis escândalo nem aos judeus, nem aos gregos, nem à igreja de Deus”.
Se o Espírito Santo faz essa distinção, como podem alguns considerar que hoje igreja e Israel são a mesma coisa? Paulo não faria tal distinção se a Igreja fosse apenas uma continuidade de Israel e nem falaria de um futuro ainda a ser realizado para Israel em Romanos 11 e em outras passagens de suas epístolas.
(Rm 11:1) “Digo, pois: porventura rejeitou Deus o seu povo? De modo nenhum; porque também eu sou israelita, da descendência de Abraão, da tribo de Benjamim”.
Paulo deixa claro que Deus não rejeitou seu povo, tanto é que ele próprio se apresenta com as credenciais que identificam um judeu, apesar de ser membro do corpo de Cristo. Assim, embora Israel tenha falhado em seu testemunho, sua identidade como povo não deixou de existir, porque no final Deus irá voltar a tratar com esse povo. Caso contrário, não teríamos mais que nos preocupar com Israel e até seria um favor se tal nação desaparecesse da face da terra para deixar o caminho livre para a Igreja. Era assim que pensavam os católicos, era assim que pensava Lutero e outros protestantes, e é assim que alguns ainda pensam.
Mas Paulo, apesar de admitir o fracasso de Israel e a Igreja se introduzindo como o testemunho de Deus na presente era, deixa claro que ainda há uma plenitude prevista para Israel no final, confirmando assim a identidade e singularidade desse povo que ainda verá cumpridas as promessas feitas por Deus no Antigo Testamento:
(Rm 11:11-12) “Digo, pois: Porventura tropeçaram, para que caíssem? De modo nenhum, mas pela sua queda veio a salvação aos gentios, para os incitar à emulação. E se a sua queda é a riqueza do mundo, e a sua diminuição a riqueza dos gentios, quanto mais a sua plenitude!”.
Nos versículos que se seguem Paulo fala diretamente à Igreja para mostrar o perigo de também o seu testemunho ser cortado como foi Israel por sua incredulidade. Mas perceba que o tempo todo ele está falando de duas entidades distintas. Se a Igreja fosse a continuidade natural de Israel não haveria essa comparação. E o versículo 23mostra bem que Israel continua apenas em “stand by” ou em suspensão, mostrando assim a possibilidade de sua readmissão ao testemunho de Deus na terra.
(Rm 11:23) “E também eles, se não permanecerem na incredulidade, serão enxertados; porque poderoso é Deus para os tornar a enxertar”.
Finalmente ele mostra que é apenas uma questão de tempo para que isso aconteça: “até que a plenitude dos gentios haja entrado”:
(Rm 11:25-27) “Porque não quero, irmãos, que ignoreis este segredo (para que não presumais de vós mesmos): que o endurecimento veio em parte sobre Israel, até que a plenitude dos gentios haja entrado. E assim todo o Israel será salvo, como está escrito: de Sião virá o Libertador, e desviará de Jacó as impiedades. E esta será a minha aliança com eles, quando eu tirar os seus pecados”.
A expressão “quando eu tirar os seus pecados” denota que a Igreja não é a continuidade de Israel, mas uma entidade distinta, pois Deus ainda irá tratar com Israel no futuro, que é o tempo também citado no versículo 31:
(Rm 11:31) “Assim também estes agora foram desobedientes, para também alcançarem [no futuro] misericórdia pela misericórdia a vós demonstrada”.
Eu não considero a ideia da Igreja substituir Israel ou ser sua continuação como uma mera opinião teológica; eu a considero até mesmo maligna por desprezar todas as promessas feitas por Deus especificamente para esse povo e tentar usurpá-las para a Igreja. Até meados do século 19 Israel era visto pela cristandade em geral com indiferença ou desprezo. Veja você, a “menina dos olhos” de Deus vista com desprezo pelos que se diziam seguidores de Cristo, um judeu!
Então, no século 19, muitos cristãos começaram a entender e a resgatar as verdades hoje conhecidas como dispensacionais e a importância de Israel saltou das páginas da Bíblia diante de seus olhos dando origem a movimentos que buscavam preservar os interesses dos judeus com base nas promessas ainda pendentes de serem realizadas. Infelizmente a atual teologia da prosperidade volta a tentar aplicar para a Igreja as promessas feitas a Israel no Antigo Testamento, causando um retrocesso dos cristãos aos tempos do catolicismo medieval.