Por que devem ocorrer heresias?
Sua dúvida é sobre a palavra “heresias” que em algumas traduções aparece como “divisões” em 1 Coríntios 11:19, e o porquê de ser necessário que elas ocorram, como se isso fosse algo bom. A passagem toda diz: “Porque antes de tudo ouço que, quando vos ajuntais na igreja, há entre vós dissensões; e em parte o creio. E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós” (1 Co 11:18-19).
Outras traduções trazem o texto assim:
“Porque, antes de tudo, ouço que quando vos ajuntais na igreja há entre vós dissensões; e em parte o creio. E até importa que haja entre vós facções, para que os aprovados se tornem manifestos entre vós”.
“Antes de tudo, ouço dizer que, quando estão reunidos em assembleia, há divisões entre vocês. E, em parte, eu acredito nisso. É preciso mesmo que haja divisões entre vocês, a fim de que se veja quem dentre vocês resiste a essa prova”.
A palavra “heresia” também pode ser traduzida como “divisão”, “facção”, “dissensão”, “cisma”, “partido”, etc. É que acostumamos usar “heresia” para má doutrina, mas uma heresia também pode ser causada por sã doutrina. Quando alguém começa a enfatizar demais uma verdade e causa com isso uma divisão, essa pessoa é herege, ainda que não tenha falado nada de errado.
O sentido da passagem é que deveriam existir divisões para assim revelar os sinceros. Mas a expressão “é preciso mesmo que hajam divisões” ou “importa que haja entre vós facções” não está autorizando a existência de divisões. É como se, no teste de qualidade de um lote de produtos de uma fábrica, alguém dizer que “devem existir alguns com defeito”. Obviamente ninguém na fábrica iria jamais pensar em fabricar os defeituosos, mas o teste faz com que eles apareçam e revela a qualidade dos que estão sem defeito.
Perceba também que o contexto da passagem é de divisões ou heresias que estavam ocorrendo entre os irmãos de Corinto, isto é, no meio deles. Ou seja, eles continuavam juntos e reunidos no mesmo lugar, mas divididos por suas preferências e opiniões pessoais. O assunto já vinha sendo tratado desde o capítulo 1:
(1 Co 1:10-13; 3:3-4) “Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer. Porque a respeito de vós, irmãos meus, me foi comunicado pelos da família de Cloé que há contendas entre vós. Quero dizer com isto, que cada um de vós diz: Eu sou de Paulo, e eu de Apolo, e eu de Cefas, e eu de Cristo. Está Cristo dividido? foi Paulo crucificado por vós? ou fostes vós batizados em nome de Paulo? ... Porque ainda sois carnais; pois, havendo entre vós inveja, contendas e dissensões, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens? Porque, dizendo um: Eu sou de Paulo; e outro: Eu de Apolo; porventura não sois carnais?”.
A existência de diferenças entre os irmãos, embora permita revelar os sinceros e os que têm segundas intenções, nunca é algo de que devemos nos gloriar. É uma vergonha e sinal de carnalidade, como Paulo diz. É também sinal de orgulho religioso, pois veja que alguns até diziam ser de Cristo, como se os outros não fossem. É importante notar que Paulo não estava aqui falando explicitamente das seitas, outra palavra que também nem sempre é usada corretamente.
Hoje é comum ouvirmos a palavra “seita” relacionada a alguma religião falsa que professe doutrinas malignas. Então muitos cristãos incluem na lista de seitas religiões como “Testemunhas de Jeová”, “Mórmons”, “Ciência Cristã”, etc. Mas a palavra “seita” é o resultado que geralmente ocorre quando uma heresia ou divisão ou facção não é internamente resolvida em uma assembleia. Então ocorre a facção, fisicamente falando, quando alguns saem para formar um diferente grupo. Ainda que as crenças e doutrinas continuem as mesmas, aquilo é uma seita.
Portanto, todas as denominações cristãs, independente do grau de verdade que professem ter, são seitas, e alguém ligado a elas incorre no erro do sectarismo. Em Atos você encontra também os saduceus e fariseus sendo chamados de seitas (Atos 5:17; 15:5; 26:5) e o próprio cristianismo era identificado pelos judeus como “seita dos Nazarenos” ou divisão do judaísmo (Atos 9:2; 24:5, 13).
Deus não aprova as divisões, mas pode até permiti-las para que aquilo que é correto venha à tona, ao mesmo tempo em que o erro fique evidente, ainda que isso termine na divisão real, física e geográfica do testemunho de Deus na terra, como ocorreu na história de Israel. O reino foi dividido em dois durante o reinado de Roboão, permanecendo Judá e Benjamim em Jerusalém (identificados como “Judá”), o centro de adoração que Deus estabelecera, e Jeroboão reinando sobre as demais tribos (identificados como “Israel”) e edificando dois santuários falsos para o povo adorar. Quando Roboão quis resolver o problema na base da força, foi repreendido por Deus e avisado de que Deus tinha permitido aquela divisão:
(1 Rs 12:24) “Assim diz o Senhor: Não subireis nem pelejareis contra vossos irmãos, os filhos de Israel; volte cada um para a sua casa, porque eu é que fiz esta obra”.
Na divisão de Israel, apesar de todos os erros de Roboão, Deus ainda tinha um lugar de adoração que era Jerusalém e aqueles que seguiram Jeroboão eram responsáveis por desprezar não só a unidade que Deus requeria do povo, mas o lugar onde o Senhor havia colocado o seu nome. Mesmo assim Deus não abandonou o seu povo, pois vemos que levantou alguns de seus mais notórios profetas para ministrarem às dez tribos, como é o caso de Elias e Eliseu.
Mais tarde, quando o rei de Judá, Ezequias, reabriu o Templo de Jerusalém e restabeleceu o culto a Deus, ele enviou convites a todas as tribos, inclusive as que tinham seguido Jeroboão, para que fossem adorar onde Deus havia colocado o seu nome e celebrar ali a páscoa.
(2 Cr 30:10) “E os correios foram passando de cidade em cidade, pela terra de Efraim e Manassés até Zebulom; porém riram-se e zombaram deles. Todavia alguns de Aser, e de Manassés, e de Zebulom, se humilharam, e vieram a Jerusalém. E a mão de Deus esteve com Judá, dando-lhes um só coração, para fazerem o mandado do rei e dos príncipes, conforme a palavra do Senhor. E ajuntou-se em Jerusalém muito povo, para celebrar a festa dos pães ázimos, no segundo mês; uma congregação mui grande”.
Essa passagem é de grande instrução, pois alguns anos mais tarde todas as dez tribos divididas seriam deportadas e levadas para o cativeiro em outras terras e nunca mais se ouviria falar delas. Hoje são chamadas de “tribos perdidas”, enquanto os que chamamos de judeus hoje são apenas as tribos de Judá e Benjamim que ficaram no lugar estabelecido por Deus, além de indivíduos de outras tribos, como na passagem acima, que iam a Jerusalém para adorar e estavam lá quando ocorreu a invasão dos assírios, escapando assim do cativeiro. Ana, a idosa que aparece no evangelho de Lucas recepcionando o menino Jesus no Templo, era da tribo de Aser, portanto descendente de um desses que iam a Jerusalém adorar.
Hoje, apesar de todas as divisões que ocorreram no testemunho cristão e de tantos estarem adorando no lugar onde o Senhor NÃO colocou o seu nome, o Espírito Santo de Deus continua alimentando as ovelhas do Senhor por intermédio dos dons. Em Israel, os que estavam nas dez tribos recebiam o ministério dos profetas, mas não podiam contar com o Senhor no meio deles, como podiam os que permaneceram em Jerusalém adorando onde o Senhor prometeu que estaria. Hoje os cristãos podem desfrutar do ministério da Palavra por meio do Espírito em qualquer lugar, mas não desfrutam da presença do Senhor a menos que estejam onde ele colocou o seu nome e a sua autoridade é assim reconhecida.
Às vezes uma divisão ocorre por causa de uma verdade, por isso é preciso investigar não apenas as circunstâncias em que ela ocorreu, mas quais os frutos que trouxe. Cedo ou tarde a divisão trará seus frutos de erros doutrinários e outras divisões.
Outra característica da divisão ou heresia que pode nos ajudar a identificá-la é a evidência de algum homem à frente dela e com o claro propósito de arrebanhar discípulos para si. Paulo alertou que isto aconteceria na cristandade logo após a partida dos apóstolos.
(Atos 20:29-30) “Porque eu sei isto que, depois da minha partida, entrarão no meio de vós lobos cruéis, que não pouparão ao rebanho; E que de entre vós mesmos se levantarão homens que falarão coisas perversas [ou “pervertidas”, “distorcidas”], para atraírem os discípulos após si”.
Eles são de duas categorias: lobos cruéis, ou seja, os que vêm de fora do rebanho e nunca foram salvos, e aqueles que saem de entre os próprios cristãos. Os primeiros são os que exploram o mais que podem o rebanho, e nesta categoria podemos incluir os que não se importam que seus seguidores morram de fome, desde que deem tudo o que têm. Os da segunda categoria geralmente fazem isso mais pelo orgulho de serem seguidos. Aí podemos incluir os que, apesar se serem cristãos reais, adoram fazer parte de um clero e serem seguidos e bajulados pelas ovelhas.
Líderes costumam causar divisões por causa de seu orgulho centralizador, como acontecia na assembleia mencionada pelo apóstolo João:
(3 João 1:9-10) “Tenho escrito à igreja; mas Diótrefes, que procura ter entre eles o primado, não nos recebe. Por isso, se eu for, trarei à memória as obras que ele faz, proferindo contra nós palavras maliciosas; e, não contente com isto, não recebe os irmãos, e impede os que querem recebê-los, e os lança fora da igreja”.
As divisões são sempre a prova de que alguns fracassaram em entender qual seja a vontade do Senhor.