Por que algumas Bíblias foram mutiladas?
Existem diferentes tipos de tradução: literal, versão, interpretação, paráfrase, etc. Uma tradução da Bíblia não é literal, pois é preciso mesclar alguma interpretação e fazer a transposição de alguns termos para que tenham algum significado milhares de anos depois do texto original ter sido criado. Por isso chamamos de “Versões” as traduções que conhecemos da Bíblia. Uma versão é como se costuma fazer com um poema ou letra de música, só que no caso da música ou poesia é na rima e na métrica que estão o foco do tradutor, e no caso da Bíblia, o foco está no sentido original.
Por exemplo, nas versões atuais encontramos o termo grego Eklesia traduzido como igreja. O problema é que a palavra igreja já não tem o significado que tinha quando o Novo Testamento foi escrito, que era um agrupamento de pessoas. Hoje qualquer pessoa irá dizer que igreja é um edifício ou templo de uma religião ou uma organização religiosa. Por isso eu e muitos irmãos costumamos usar o termo assembleia que descreve melhor o sentido de Eklesia. E não são precisos milênios para alterar o sentido de uma palavra. A palavra inglesa “gentleman”, que hoje tem o sentido de um homem cordial e educado, era na sua concepção original medieval usada para identificar o senhor feudal, alguém que governava seu feudo com mão de ferro e podia exercer seu direito de ter a primeira noite com alguma jovem que viesse a se casar com um de seus súditos.
Uma tradução literal da Bíblia, palavra a palavra, nem sempre seria inteligível dentro do vocabulário que hoje utilizamos, por isso os melhores tradutores procuraram criar versões em que a palavra permaneça a mesma sempre que possível. Uma das melhores versões em inglês é a King James e em português a Almeida Corrigida Fiel, que usa os mesmos manuscritos originais da King James. Dependendo da edição você encontra nelas algumas palavras ou frases inteiras em itálico, indicando que aquilo não existe no original e só foi acrescentado para dar sentido à sentença. Você encontra algumas traduções da Bíblia palavra a palavra em inglês, geralmente usadas para estudos, como a de Young.
Portanto o melhor é escolher uma versão que esteja o mais próximo possível do texto original, o que já elimina versões como a Bíblia Viva e a Bíblia na Linguagem de Hoje. Ambas são péssimas porque, no primeiro caso, os tradutores se preocuparam apenas em passar a ideia que eles captaram do texto, o que acaba transformando a tradução numa interpretação. No segundo caso existia um número limite de palavras que deveriam ser usadas no vocabulário destino, ou seja, a versão final só poderia ter as palavras mais usadas por pessoas com um baixo grau de alfabetização ou vocabulário pobre. Já pensou se fizessem isso com os grandes poemas da literatura universal? Ou até mesmo com o Hino Nacional brasileiro?!
Tente reescrever o Hino Nacional de um modo que as pessoas menos alfabetizadas entendam e você terá de trocar palavras como “plácidas”, “retumbante”, “fúlgidos”, “penhor”, “vívido”, “resplandece”, “impávido”, “colosso”, “esplêndido”, “fulguras”, “florão”, “garrida”, “lábaro”, “flâmula”, “clava” etc., por algo dentro do vocabulário popular. Mas não pense que termina aí. Você terá ainda que explicar a pessoas com dificuldade para entender linguagem figurada que “berço esplêndido” não é caminha de bebê, “risonhos lindos campos” não é capim sorrindo e “verde-louro” não é papagaio. E também que “a imagem do Cruzeiro resplandece” não é garantia de que o time mineiro irá ser campeão. Depois tente cantar com sua nova letra e você terá uma ideia do que é ler a Bíblia numa versão na “Linguagem de Hoje” ou “Bíblia Viva”.
Agora entra em cena outra questão que é basicamente a origem de sua dúvida: Por que em algumas versões existem trechos que faltam em outras versões?
A razão está nos manuscritos originais que foram escolhidos principalmente para o Novo Testamento, mas quando digo “originais” estou me referindo a cópias de cópias de cópias, porque não temos mais os originais escritos pelo punho dos apóstolos. Aí você encontra basicamente duas abordagens diferentes: as que se originam no Texto Tradicional ou Textus Receptus, como a Almeida Corrigida e Fiel, as que se baseiam no Texto Crítico, que é formado por uma mistura de diferentes manuscritos, como o Alexandrino, o do Sinai e o do Vaticano, etc., além de análises (ou críticas) de especialistas modernos sobre esses manuscritos. Nesta categoria você poderia incluir as versões Almeida Atualizada, a da Imprensa Bíblica e mesmo a de J. N. Darby, mas mesmo estas não são puramente baseadas no Texto Crítico (assim como a Almeida Revista e Corrigida da SBB não é puramente baseada no Textus Receptus, mesmo sendo muito parecida com a Almeida Corrigida Fiel da Sociedade Bíblica Trinitariana ou com a King James).
E então, qual escolher? Bem, tirando as paráfrases e versões modernas, que realmente saíram do sério para tentar agradar o leitor, eu adotaria a Almeida Corrigida Fiel ou a Almeida Revista e Corrigida ou a Revista Atualizada, tendo a mesma visão que Darby tinha ao traduzir a Bíblia para o francês e alemão (depois ela foi traduzida e publicada em inglês por outros irmãos): ele continuou utilizando a versão King James (equivalente à nossa Almeida Corrigida Fiel) e aconselhava seu uso nas reuniões, enquanto indicava sua tradução apenas para estudos, mesmo porque ela é uma das mais ricas em notas de rodapé explicando variantes para a tradução dos termos hebraicos e gregos. Ele próprio esclarece no prefácio que não teve a intenção de produzir uma obra erudita, mas como teve o privilégio de ter acesso a manuscritos e livros que outros não tiveram, decidiu produzir sua versão com aquilo que também aprendeu desses manuscritos.
E o que fazer com os versículos que sobram na versão Almeida Corrigida Fiel e faltam nas outras versões? Nessa hora, o bom é recorrer aos comentários (uso as notas de rodapé da Bíblia na versão Darby, mas você pode encontrar notas e observações assim em outros autores) e lembrar que depois das primeiras traduções feitas a partir do Textus Receptus, como a de Lutero, muita água rolou e muitos manuscritos foram descobertos e escrutinados a fundo, permitindo que se estudasse com maior exatidão manuscritos às vezes anteriores aos utilizados na tradução feita por João Ferreira de Almeida ou King James.
Vamos ao versículo que você citou em 1 João 5:7-8:
Almeida Corrigida Fiel:
“...porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que testificam no céu: o Pai, a Palavra, e o Espírito Santo; e estes três são um. E três são os que testificam na terra: o Espírito, e a água e o sangue; e estes três concordam num”.
Almeida Atualizada:
“...porque o Espírito é a verdade. Porque três são os que dão testemunho: o Espírito, e a água, e o sangue; e estes três concordam”.
J. N. Darby:
“...For they that bear witness are three: the Spirit, and the water, and the blood; and the three agree in one”.
Em sua versão Darby comenta que “o que está omitido aqui não tem autoridade baseada nos manuscritos”. Alguns acham que por existir essa omissão a doutrina da Trindade poderia ser colocada em dúvida, mas não é nesta passagem que a doutrina da Trindade se baseia, mas em muitas outras e no contexto geral da Palavra de Deus. O próprio argumento faz com que seja plausível pensar que algum copista zeloso, porém não honesto, tenha acrescentado a expressão para deixar claro o que crê.
Isto não é difícil de ocorrer. Quando decidi traduzir novamente o livrete “A Ceia do Senhor” de C. H. Mackintosh descobri que o que existia até então, publicado em Portugal, omitia todas as passagens do original inglês que criticavam o catolicismo romano. Ou o tradutor de Portugal era católico romano (ou tinha uma esposa brava que era), ou as condições do país na época o obrigaram a isso, já que Portugal é conhecido pela censura que exerceu durante séculos e por ser um país extremamente católico.
O mesmo aconteceu quando decidi traduzir o livro “Vida através da morte”, um estudo de Romanos por Charles Stanley. Usei como leitura paralela a versão que já existia em espanhol e foi assim que descobri que quem traduziu para o espanhol corrompeu as explicações que o autor dava no original inglês sobre o novo nascimento ao comentar os capítulos 7 e 8 de Romanos. As alterações obviamente corrompiam o texto original mas estavam bem de acordo com a visão que os batistas têm do novo nascimento, o que me fez pensar que o tradutor ou era batista ou tinha sido influenciado por suas doutrinas ao ponto de acreditar que o autor do livro tinha se enganado.
Mas a passagem de 1 João 5 não é a única que aparece ampliada nas versões baseadas no Textus Receptus, como a King James ou a Corrigida Fiel. Se você observar verá que na versão Darby não existe Atos 8:37, pulando do versículo 36 para o 38. Na versão Almeida Corrigida Fiel o versículo 37 diz “E disse Filipe: É lícito, se crês de todo o coração. E, respondendo ele, disse: Creio que Jesus Cristo é o Filho de Deus”. Na versão Almeida Corrigida Atualizada a passagem toda está entre chaves com a observação de não constar nos melhores manuscritos. E Darby e outros a excluem totalmente do texto como não sendo genuíno. É bem possível que tenha sido introduzido por copistas pela mesma razão que expliquei.
Se algum fanático defensor da versão Almeida Corrigida Fiel estiver lendo isto, a esta altura já deve estar com os cabelos da nuca eriçados e louco de vontade de fazer um aparte para dizer que qualquer tradução que não siga o Textus Receptus é do diabo (não estou exagerando, há quem diga isso mesmo). Então aqui vai uma pulga para esses colocarem atrás da orelha (ao lado dos pelos eriçados):
Almeida Corrigida Fiel:
“Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da circuncisão”.
J. N. Darby:
“See to dogs, see to evil workmen, see to the concision.” (“Cuidado com os cães, cuidado com os maus obreiros, cuidado com a concisão”).
Almeida Atualizada:
“Acautelai-vos dos cães; acautelai-vos dos maus obreiros; acautelai-vos da falsa circuncisão”.
Oh! Será que os tradutores da Almeida Corrida Fiel cometeram um erro?! Sim, apesar do excelente trabalho que fizeram nesta versão que também utilizo, eles perderam o passo aqui ao traduzirem “katatome” (“concisão”) como se fosse “peritome” (“circuncisão”). “Circuncisão” era o que os judeus faziam com os filhos, cortando e extraindo a carne do prepúcio. “Concisão” era meramente cortar, uma mutilação, sem tirar a carne. Isto faz toda a diferença e sentido no texto, se lembrarmos que “a carne para nada aproveita” (Jo 6) e que a passagem segue dizendo: “porque a circuncisão somos nós, que servimos a Deus em espírito*, e nos gloriamos em Jesus Cristo, e não confiamos na carne”.
Ou seja, existe a “concisão”, ou mera mutilação da carne sem extraí-la (podemos pensar nesses que praticam o autoflagelo), existe a “circuncisão” prescrita pelo judaísmo, que nenhum poder real tem sobre a carne, e existe a verdadeira e atual “circuncisão”, em oposição à “circuncisão” do judaísmo. O apóstolo está se referindo à “circuncisão” dos verdadeiramente nascidos de Deus, que gloriam em Jesus Cristo, não confiam na carne e adoram a Deus “*pelo Espírito” (como aparece na versão Darby, e não “em espírito” como na Almeida Corrigida Fiel, embora possa ser traduzido das duas formas).
Depois de publicar este texto recebi a seguinte informação sobre a Almeida Corrigida Fiel: “Na versão 2011 a ACF traduz Filipenses 3:2 com o seguinte texto: “Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da cortadura” (Fp 3:2 ACF). Assim, durante a última revisão foi observada esta diferença e o texto foi corrigido apropriadamente”.
Algumas outras versões, mesmo católicas, fizeram um melhor trabalho nesta passagem e aqui vão algumas:
(Almeida Corrigida Fiel) “Guardai-vos dos cães, guardai-vos dos maus obreiros, guardai-vos da circuncisão;”.
(Ave Maria) “Cuidado com esses cães! Cuidado com esses charlatães! Cuidado com esses mutilados!”.
(Sociedade Bíblica Britânica) “Acautelai-vos dos cães, acautelai-vos dos maus obreiros, acautelai-vos dos falsos circuncidados”.
(CNBB) “Cuidado com esses cães! Cuidado com esses charlatães! Cuidado com esses mutilados!”.
(NVI) “Cuidado com os cães, cuidado com esses que praticam o mal, cuidado com a falsa circuncisão!”.
(Almeida Revista e Atualizada) “Acautelai-vos dos cães; acautelai-vos dos maus obreiros; acautelai-vos da falsa circuncisão”.
Conclusão: Utilize regularmente uma boa tradução, como a Almeida Corrigida Fiel, mas não deixe de comparar com outras versões sempre procurando descobrir mais de como o versículo foi traduzido.