Por que Deus matou um homem bem intencionado?

Fico contente que tenha começado a ler a Bíblia e também por expressar suas dúvidas sobre a justiça de Deus. É verdade que quando começamos a ler nos deparamos com algumas passagens que parecem não fazer sentido como as que você citou. E aí começamos a questionar, como você fez:

1. Por que Uzá foi morto se ele só estava tentando ajudar para que a arca não caísse do carro de bois?

2. Por que Deus não o perdoou por sua boa intenção e perdoou e protegeu Caim por seu homicídio, colocando até uma marca nele para que ninguém o matasse?

3. Por que Deus fez de Davi, um adúltero e homicida, um grande rei, ao mesmo tempo em que permitiu a morte do inocente Urias marido daquela com quem Davi adulterou?

A primeira coisa que precisamos entender quando lemos a Bíblia é que nós não temos, como dizem os ingleses, “the big picture”, ou seja, a visão ampla. Deus tem. Então, ao lermos a Bíblia precisamos nos colocar em nosso devido lugar e reconhecer que nada sabemos, mas que Deus enxerga o fim do começo.

(Is 46:9-10) “Lembrai-vos das coisas passadas desde a antiguidade; que eu sou Deus, e não há outro Deus, não há outro semelhante a mim. Que anuncio o fim desde o princípio, e desde a antiguidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade”.

Portanto ainda que não entendamos alguma coisa, devemos confiar que Deus é justo e misericordioso em todos os seus desígnios, simplesmente pelo fato de ele ser Deus e nós criaturas cheias de imperfeições, inclusive em nosso julgamento dos modos e razões de Deus. Uma criança odeia sua mãe quando é levada para tomar vacina por aquele sofrimento da agulha não fazer qualquer sentido para sua mente infantil. Ela ainda não tem idade para compreender, e nós ainda não temos idade para compreender todas as coisas de Deus. Vamos ao caso de Uzá:

(2 Sm 6:3-7) “E puseram a arca de Deus em um carro novo, e a levaram da casa de Abinadabe, que está em Gibeá; e Uzá e Aió, filhos de Abinadabe, guiavam o carro novo... E, chegando à eira de Nacom, estendeu Uzá a mão à arca de Deus, e pegou nela; porque os bois a deixavam pender. Então a ira do Senhor se acendeu contra Uzá, e Deus o feriu ali por esta imprudência; e morreu ali junto à arca de Deus”.

O primeiro erro foi terem colocado a arca em um carro de boi. Ela nunca deveria ser carregada assim, mas sim do modo como Deus determinou em Êxodo 37:5, isto é, nos ombros apenas dos levitas (Nm 4:15), por meio de varas introduzias nas argolas que havia na arca. Além disso, ela deveria ser coberta para que ninguém olhasse para ela e também ninguém poderia tocá-la (Nm 4:5-6).

Mas se os filisteus não tomaram esses cuidados, por que não foram tratados por Deus da mesma maneira? Estas instruções certamente eram dirigidas aos israelitas, apesar de sabemos que os filisteus também sofreram por a terem roubado (veja 1 Samuel 5).

Há coisas que podem não ter efeito algum sobre um incrédulo quando praticadas por ele, mas que têm um grande significado e efeito para um crente em Jesus se este fizer a mesma coisa. Por exemplo, uma mentira na boca de um incrédulo pode não lhe trazer consequências imediatas. Afinal, ele é incrédulo e já está condenado ao lago de fogo, a menos que se converta a Cristo. Porém uma mentira na boca de Ananias e Safira custaram suas vidas (Atos 5). Esta é uma exortação importante principalmente para jovens crentes que costumam alegar que se fulano e sicrano fazem isso e aquilo, por que ele não deve fazer o mesmo?

Deus não trata o incrédulo com o mesmo rigor como trata seus filhos por estes serem filhos e não bastardos. A razão é a mesma de eu não tratar os filhos de meu vizinho com o mesmo rigor com que trato os meus. Os meus são disciplinados por mim, mas os de meu vizinho não estão sob a minha tutela. Leia Hebreus 12 para entender melhor este princípio.

Foram os Filisteus que decidiram que a arca devia ser levada em um carro de boi (1 Sm 6:7), portanto é bom aprendermos disso que a maneira dos incrédulos lidarem com as coisas de Deus não é necessariamente o modelo que devemos seguir, especialmente quando encontramos instruções claras e específicas como era o caso da arca. Portanto, ainda que o modo dos incrédulos possa não trazer consequências significativas para eles, a coisa fica diferente quando são crentes em Cristo que agem da mesma maneira.

Outra lição que Deus nos ensina desse episódio é que não basta ter boas intenções para agradar a Deus; é preciso saber se as nossas boas intenções encontram respaldo em sua Palavra. Davi tinha boa intenção ao trazer a arca de volta, o povo saiu para aclamar seu retorno e Uzá só estava tentando ajudar para que a arca não caísse. Estes versículos podem ajudar a entender o risco que corremos se seguirmos nossas boas intenções:

(Pv 16:25) “Há um caminho que parece direito ao homem, mas o seu fim são os caminhos da morte”.

(Pv 21:2) “Todo caminho do homem é reto aos seus olhos, mas o Senhor sonda os corações”.

Portanto, do episódio envolvendo Uzá, podemos apenas fazer conjecturas sobre sua pessoa. Uma é que Deus conhecia o coração de Uzá e suas reais intenções, que talvez não fossem tão puras, enquanto nós só podemos ver seu ato de tentar segurar a arca, que nos pareceu uma boa ação. Neste caso Deus estaria sim tratando com Uzá, além de fazer dele um exemplo para nós aprendermos a não tratar com leviandade as instruções dadas por Deus em sua Palavra. Por exemplo: deveria um cristão ajudar uma instituição espírita que ajuda crianças? A intenção parece ótima, mas, resumidamente, se no espiritismo devo levar uma vida de esforços tentando subir uma escada cujos degraus são espaçados demais para minhas pernas, no cristianismo é Cristo quem me pega lá em baixo e me leva direto para o céu de um só passe. Portanto, a doutrina ensinada no espiritismo é inversa ao cristianismo e o que é pior, invalida o sacrifício feito por Jesus na cruz e ao ajudar tal instituição, estou concordando com seus ensinamentos.

Mas vamos às suas dúvidas. Primeiro é importante entender que o fato de alguém ser morto não significa necessariamente que sua alma se perderá. Todos os seres humanos morrem, a diferença é que alguns morrem com um propósito especial, outros não. Eu particularmente acredito que apenas na glória saberei se Uzá está lá ou não. A princípio penso que sim e que Deus apenas quis usá-lo como exemplo, apesar de ter aplicado nele a disciplina da morte física como fez com Ananias e Safira.

Então na Bíblia você encontrará pessoas que foram mortas por um juízo divino e cujas almas poderão ou não ter sido salvas (em muitos casos é difícil saber), enquanto outras foram mortas com o consentimento de Deus, ou porque cumpriram seu objetivo neste mundo ou por Deus querer usar sua morte como um exemplo para um objetivo (é o caso de Paulo e de outros mártires). Portanto, em alguns casos a pessoa envolvida foi apenas usada como um instrumento de Deus para um objetivo maior, e podia não ser ela necessariamente o foco.

(Rm 15:4) “Porque tudo o que dantes foi escrito, para nosso ensino foi escrito, para que pela paciência e consolação das Escrituras tenhamos esperança”.

Você já pensou na possibilidade de Uzá ter morrido porque Deus queria alertar você de algo?

(1 Co 10:11) “Ora, tudo isto lhes sobreveio como figuras, e estão escritas para aviso nosso, para quem já são chegados os fins dos séculos”.

Quanto à sua pergunta sobre a razão de Deus não ter condenado Caim e imediatamente ter colocado uma marca nele para que ninguém o matasse, vejo isso como um ato de misericórdia de Deus. Se Deus matasse Caim ele estaria perdido para sempre. Se Deus lhe desse uma chance ele ainda poderia se arrepender e ser salvo. Portanto o melhor seria conservá-lo vivo.

Embora Deus tenha amaldiçoado Caim por seu pecado, não foi da boca de Deus, mas de Caim, que saiu a frase: “É maior a minha maldade que a que possa ser perdoada” (Gn 4:13). Deus não disse isso. Deus disse que Caim seria errante, mas foi Caim quem decidiu ser algo mais que errante: “Da tua face me esconderei” (Gn 4:13).

“E o Senhor disse a Caim: Por que te iraste? E por que descaiu o teu semblante? Se bem fizeres, não haverá aceitação para ti? E, se não fizeres bem, o pecado jaz à porta, e para ti será o seu desejo, e sobre ele dominarás” (Gn 4:6-7). O Senhor mostrou a saída, mas Caim não resistiu até ao sangue, combatendo contra o pecado (Hb 12: 4).

O caso de Davi é outro em que Deus faz refulgir a Sua misericórdia mesmo que o homem venha a falhar miseravelmente. E Davi tinha ciência de quão pecador e desobediente ele era, mas que por graça e misericórdia Deus fazia aquilo com ele. Devemos nos lembrar de que o rei Davi é apenas uma fraca figura do verdadeiro Davi, Cristo, que virá reinar.

(2 Sm 23:1-5) “E estas são as últimas palavras de Davi: Diz Davi, filho de Jessé, e diz o homem que foi levantado em altura, o ungido do Deus de Jacó, e o suave em salmos de Israel. O Espírito do Senhor falou por mim, e a sua palavra está na minha boca. Disse o Deus de Israel, a Rocha de Israel a mim me falou: Haverá um Justo que domine sobre os homens, que domine no temor de Deus. E será como a luz da manhã, quando sai o sol, da manhã sem nuvens, quando pelo seu resplendor e pela chuva a erva brota da terra. Ainda que a minha casa não seja tal para com Deus, contudo estabeleceu comigo uma aliança eterna, que em tudo será bem ordenado e guardado, pois toda a minha salvação e todo o meu prazer está nele, apesar de que ainda não o faz brotar”.

Em outra passagem, David revela que reconhecia seu estado vil, mas também conhecia a misericórdia de Deus, ao dizer ao profeta Gade: “Estou em grande angústia; porém caiamos nas mãos do Senhor, porque muitas são as suas misericórdias; mas nas mãos dos homens não caia eu” (2 Sm 24:14). Em um contraste, vemos que Saul tentava, como Caim, agradar a Deus por meio das suas próprias ações, sendo repreendido pelo profeta Samuel: “Tem, por ventura, o Senhor, tanto prazer em holocaustos e sacrifícios como em que se obedeça à palavra do Senhor?” (1 Sm 15:22).