Você me perdoa?

Eu não preciso perdoar você porque simplesmente não vejo que tenha de algum modo me prejudicado ou ofendido. Às vezes dizemos coisas que momentaneamente podem nos causar algum sentimento de tristeza, o qual para alguns pode ser uma grande coisa, mas para outros acaba passando como uma neblina. Eu posso garantir a você que tenho pele grossa, isto é, dificilmente alguém consegue me atingir ao ponto de eu ficar “de mal” com a pessoa. É como mertiolate: se na hora arder, eu assopro até passar.

Se eu pensasse o contrário, nem continuaria publicando tudo o que publico na Web, pois a cada vídeo, áudio ou texto sempre vem alguém com os dois pés para cima de mim. Do jeito que existem doutrinas maléficas hoje no mundo já dá para imaginar com que frequência isto acontece. Já cansei de ler e-mails com frases do tipo “Você precisa se converter!” , “Peça a Deus perdão pelas coisas que escreve!”.

A questão com você não é de perdoá-lo ou não (ok, se você precisa ouvir de mim algo formal, então eu perdoo). A questão é que eu sempre prefiro evitar a comunicação com pessoas que transformam um simples pelo em cabeleira de ovo. Sinto ter de dizer isto a você (e mais uma vez ficar sujeito a levar uma retranca), mas acho você muito preocupado com coisas sem importância, e por isso fica magoado comigo ou acha que eu fico magoado com você. Atente para este versículo:

(2 Co 5:14-17) “Porque o amor de Cristo nos constrange, julgando nós assim: que, se um morreu por todos, logo todos morreram. E ele morreu por todos, para que os que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que por eles morreu e ressuscitou. Assim que daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo. Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”.

O que Paulo está dizendo aqui é que, de agora em diante (depois da conversão), não julgamos mais as pessoas pela aparência, pela posição, pela cor da pele, pelo gênero, pelo cargo que ocupa, ou seja, não julgamos mais de modo carnal, como fazíamos no passado em nossa natureza carnal. O cristão, que é agora nascido de novo, deve enxergar em cada um alguém por quem Cristo morreu, e naqueles que já creem, um irmão em Cristo. É evidente que podemos e devemos julgar as obras e o andar da pessoa, além das doutrinas que ela professa, caso contrário ficaríamos abertos a todo o lixo moral e doutrinário que muitos cristãos carregam, mas não devemos julgar a pessoa em si.

Até mesmo Cristo, que os discípulos haviam conhecido e visto como tantos outros de sua época tiveram a oportunidade de ver e conhecer, agora não é para ser conhecido daquele modo, ou seja, segundo a aparência exterior (ainda que Cristo fosse o Homem perfeito).

“Ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo”.

Agora nós que cremos já o conhecemos de outro modo, como o Senhor ressuscitado e glorificado nos céus à destra de Deus. Se nos evangelhos vimos Jesus andando por aqui como um pobre carpinteiro, esta é a visão que agora nós que cremos temos dele:

(Hb 2:9) “Vemos, porém, coroado de glória e de honra aquele Jesus que fora feito um pouco menor do que os anjos, por causa da paixão da morte, para que, pela graça de Deus, provasse a morte por todos”.

Quando a passagem diz que agora quem está em Cristo é nova criação (a tradução “criatura” não é a correta) não está falando de seu modo de vida, mas de sua posição aos olhos de Deus e em Cristo. Um viciado que acabou de se converter é nova criação, mesmo que ainda não tenha tido tempo de tirar a seringa pendurada em seu braço. É assim que ele deve ser visto, como pertencente à nova criação que é perfeita em Cristo.

É claro que, apesar de as velhas coisas já terem passado e tudo ter sido feito novo (porque está falando da posição dele, não da condição atual), ele ainda terá muitas coisas da velha criação penduradas nele. Mas o fato de tê-las não o tira dessa posição pela mesma razão que o não tê-las não dá a ninguém o direito de ser nova criação. Trocando em miúdos, uma pessoa não é nova criação porque deixou de praticar isso e daquilo e nem deixa de ser nova criação porque ainda não conseguiu deixar de praticar isso e aquilo.

Portanto, e é disto que o trecho continua falando, se Deus chegou aos extremos ao ponto de me reconciliar consigo por intermédio de Cristo, como poderia eu ou qualquer salvo por Cristo, que recebemos o “ministério da reconciliação”, ficarmos com picuinhas e melindres uns para com os outros? Como poderia um cristão recusar-se a se reconciliar? Agir assim seria agir na carne e enxergar o irmão pelos olhos carnais, tratá-lo como seria normal a carne tratar. Para os que seguem a Cristo reconciliação é assunto de urgência e precede a adoração a Deus. Somos ensinados a não continuarmos a segunda sem antes resolvermos a primeira.

(Mt 5:23-24) “Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta”.

Sempre que algum sentimento carnal nos assaltar, e o sentimento de inimizade é carnal, devemos imediatamente colocar isso diante do Senhor e pedir por ajuda para nos livrarmos de mais esta “seringa” de droga carnal que ainda permanece pendurada em nós.

(2 Co 5:18-19) “E tudo isto provém de Deus, que nos reconciliou consigo mesmo por Jesus Cristo, e nos deu o ministério da reconciliação; Isto é, Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo, não lhes imputando os seus pecados; e pós em nós a palavra da reconciliação”.

Entenda que o que estou dizendo aqui é na esfera pessoal e individual, não na esfera governamental ou administrativa. Um juiz pode ser obrigado a condenar um malfeitor para fazer justiça, e depois ir todos os dias visitá-lo na prisão por ser seu amigo de infância. Isto é o que muitos não compreendem quando a questão é, por exemplo, a disciplina que uma assembleia aplica a alguém com a autoridade que o Senhor delegou a dois ou três reunidos ao seu Nome. A disciplina não é um instrumento individual e pessoal, mas administrativo.

Voltando ao assunto de seu e-mail, é por isso que faço ouvidos moucos àqueles que entram em um loop do tipo “me perdoa que eu te perdoo” ou “eu te perdoei e você não me perdoou” porque sei que isso não leva a nada. Esse bate e volta não passa de carne. Como cristãos, devemos sim perdoar e virar a página , e jamais ficar procurando o próximo pelinho no ovo para começar a jogar tônico capilar nele e termos outra cabeleira para pentear.

Se alguém não me perdoa, não devo me preocupar muito com isso porque sei que Cristo me perdoou. E se alguém acha que ainda precisa ter de mim o perdão, coloco este perdão em modo “default” , ou seja, “considere-se perdoado” , mesmo que eu ainda tenha que lidar com alguma mágoa ou ressentimento desta velha natureza que trago dentro em mim, da qual ficarei totalmente livre no arrebatamento ou ressurreição. Mas eu sei, como cristão, que estarei errando se fizer da ofensa recebida uma fortaleza, porque se agir assim meus muros ficarão cada vez mais altos, até ao ponto de eu não poder me dar bem com mais ninguém. Afinal, qual é a admoestação que temos do Senhor?

(Cl 3:13-14) “Suportando-vos uns aos outros, e perdoando-vos uns aos outros, se alguém tiver queixa contra outro; assim como Cristo vos perdoou, assim fazei vós também. E, sobre tudo isto, revesti-vos de amor, que é o vínculo da perfeição”.

Como foi que Cristo me perdoou? Completamente, definitivamente, sem reservas ou condições. É assim que sou exortado a perdoar também. Na lei eu devia perdoar para ser perdoado , mas agora nesta dispensação da graça eu devo perdoar porque fui perdoado.

Portanto, quer bater um bom papo comigo? Pare com essas lamentações, pare de cantar a música que era cantada por Agostinho dos Santos. Qual?

Ninguém me ama, ninguém me quer

Ninguém me chama de meu amor

A vida passa, e eu sem ninguém

E quem me abraça não me quer bem

Vim pela noite tão longa de fracasso em fracasso

E hoje descrente de tudo me resta o cansaço

Cansaço da vida, cansaço de mim

Velhice chegando e eu chegando ao fim.

Esta é uma das músicas de maior fossa do repertório da MPB, e se você viver cantando assim nunca será feliz. Portanto, quebre esse disco e aí teremos sempre um papo legal, falando das coisas do Senhor, olhando para ELE e não para nossos umbigos. Pessoas que se preocupam consigo mesmas, com o que os outros estão pensando, com ideias do tipo “...estão falando mal de mim...” acabam infelizes e deixando infelizes todos ao redor, porque o sentimento de auto piedade contamina e é também uma forma de idolatria: egolatria.

Lembro-me do caso de um empresário muito rico e influente, que era tão preocupado com essas coisas que chegava a se esconder no porta-malas de seu carro e pedir ao motorista para estacionar em frente ao café onde ficava reunida sua roda de amigos. Assim, de dentro do porta-malas (e num tempo quando não existiam dispositivos eletrônicos para isso) ele podia ouvir se alguém estava falando mal dele. Você pode imaginar que vida miserável levava aquele milionário: ele era incapaz de tirar o foco de seu próprio umbigo.

Quer ser feliz? Deixe de ser “encucado”, seja “light”, leve as coisas na esportiva, não fique transformando cada “cara feia” ou “olhar de esguio” em uma guerra. Isso aí é coisa de adolescente que fica guardando mágoa por qualquer besteira. Este não é de modo algum o modo de um cristão se comportar.