Por que Jesus não deixa Maria Madalena tocá-lo?
Sua dúvida é: Por que Jesus ressuscitado não permite que Maria Madalena o toque por ainda não ter sido glorificado, se em Mateus ele tem seus pés abraçados pelas duas Marias e em João, pouco depois, ele próprio pede a Tomé que o toque para conferir se é ele mesmo? Vamos comparar as passagens:
(Jo 20:17) “Disse-lhe Jesus: Não me detenhas [toques] , porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.
(Mt 28:9) “E, indo elas a dar as novas aos seus discípulos, eis que Jesus lhes sai ao encontro, dizendo: Eu vos saúdo. E elas, chegando, abraçaram os seus pés , e o adoraram”.
(Jo 20:27) “Depois disse a Tomé: Põe aqui o teu dedo , e vê as minhas mãos; e chega a tua mão, e põe-na no meu lado ; e não sejas incrédulo, mas crente”.
Creio que o sentido da palavra em algumas traduções (“não me detenhas”) pode ajudar a entender a passagem de João 20:17, mas é preciso também levar em consideração duas coisas: o aspecto profético de cada evangelho e também o estado de Maria Madalena em seu encontro pessoal com o Ressuscitado no evangelho de João. Quando ler os evangelhos evite fazer isso como se lesse um simples relato cronológico de acontecimentos. Por exemplo, Lucas não é sempre cronológico, mas a sequência dos acontecimentos aparece numa ordem moral.
Procure perguntar o que Deus quis dizer em cada um deles dentro daquilo que é característico de cada evangelho. Ao contar um mesmo fato para uma criança e para um adulto costumamos adotar formas diferentes de comunicação, enfatizando o que pode ser interessante para cada um. Se eu contar de minha ida ao zoológico a uma criança, irei me concentrar nos animais, mas talvez ao falar da visita a um consultor em administração de empresas eu me concentre nos aspectos administrativos do zoológico, no atendimento ao cliente, etc.
Assim são os evangelhos. Um mesmo episódio pode ser relatado de maneiras diferentes ou até mesmo ser omitido, por não ter importância no contexto que Deus está tratando ali. Por esta razão em um evangelho você encontra dois gadarenos sendo libertos de demônios, e em outro evangelho apenas um, ou vê duas Marias na cena da ressurreição e em outro apenas Maria Madalena. Vamos ver o texto todo da passagem em Mateus:
(Mt 28:5-10) “Mas o anjo, respondendo, disse às mulheres : Não tenhais medo; pois eu sei que buscais a Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui, porque já ressuscitou , como havia dito. Vinde, vede o lugar onde o Senhor jazia. Ide pois, imediatamente, e dizei aos seus discípulos que já ressuscitou dentre os mortos. E eis que ele vai adiante de vós para a Galileia; ali o vereis. Eis que eu vo-lo tenho dito. E, saindo elas pressurosamente do sepulcro, com temor e grande alegria, correram a anunciá-lo aos seus discípulos. E, indo elas a dar as novas aos seus discípulos, eis que Jesus lhes sai ao encontro, dizendo: Eu vos saúdo. E elas, chegando, abraçaram os seus pés, e o adoraram. Então Jesus disse-lhes: Não temais; ide dizer a meus irmãos que vão à Galileia, e lá me verão”.
Do ponto de vista profético, Mateus é o único evangelho escrito em aramaico, a língua falada pelos judeus da época, e é também o que tem o maior número de citações do Antigo Testamento. Nele Jesus é apresentado como o Rei dos Judeus (em Marcos é o Servo, em Lucas é o Filho do Homem e em João o Filho de Deus). Esse caráter distinto de Mateus tem um objetivo: neste evangelho Jesus é apresentado ao remanescente judeu fiel que se converterá após o arrebatamento da igreja, durante a tribulação e antes de inaugurar o reino milenial na terra. As duas Marias que caem aos seus pés e os abraçam estão bem no espírito de servas na presença do Rei.
No evangelho de Mateus o anúncio da ressurreição é dado pelos anjos às duas Marias, o que é bem próprio da relação de Deus com Israel. Esse encontro é também coletivo e não individual, como é característico da relação do crente que faz parte do corpo de Cristo, a igreja, na atual dispensação da graça de Deus: o cristão tem uma intimidade com o Senhor (afinal, ele faz parte da Noiva de Cristo) que não será igual ao relacionamento de que desfrutarão os judeus durante o reino na terra. O remanescente judeu que se converterá na tribulação e participará do reino de mil anos Cristo, ainda em seus corpos naturais vivendo na terra, irá recebê-lo como Rei. Jesus não é o Rei dos cristãos; para nós ele é o Senhor.
O fato de em Mateus serem os anjos que anunciam a ressurreição também pode indicar essa relação mais característica de Deus com Israel no Antigo Testamento, onde os anjos aparecem com frequência, tendo sido inclusive instrumentos na entrega da Lei àquele povo.
(Hb 1:14) “Não são porventura todos eles espíritos ministradores, enviados para servir a favor daqueles que hão de herdar a salvação?”.
(Atos 7:53) “Vós, que recebestes a lei por ordenação dos anjos, e não a guardastes”.
Em João vemos Jesus em um caráter distinto dos outros evangelhos: ele ali é apresentado como o Verbo, o Criador, o Filho de Deus. Neste evangelho é o próprio Senhor quem se dá a conhecer a Maria, porém agora em uma nova relação com seus discípulos. Nunca antes ele os havia chamado de “meus irmãos”. Essa nova relação ele já havia previsto quando mostrou que estaria rompendo até mesmo com seus vínculos de parentesco natural: “Quem é minha mãe? E quem são meus irmãos? E, estendendo a sua mão para os seus discípulos, disse: Eis aqui minha mãe e meus irmãos; porque, qualquer que fizer a vontade de meu Pai que está nos céus, este é meu irmão, e irmã e mãe” (Mt 12:48-50).
Acredito que o que Jesus quis impedir foi que Maria Madalena pensasse estar ainda no mesmo tipo de relacionamento que os discípulos haviam tido com Jesus antes de sua morte, quando o tocavam naquela condição. “...o que vimos com os nossos olhos, o que temos contemplado, e as nossas mãos tocaram da Palavra da vida” (1 Jo 1:1). O relacionamento que os discípulos haviam tido com Jesus até então tinha sido “segundo a carne” , mas a partir daquele momento eles teriam um novo tipo de relacionamento com um Jesus ressuscitado e glorificado nos céus.
(2 Co 5:16) “Assim que daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne, e, ainda que também tenhamos conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos deste modo“.
Agora, como ressuscitado, ele seria cabeça de uma nova criação (na primeira criação Adão havia sido cabeça e falhou). Os discípulos estariam a partir deste momento em um relacionamento espiritual e celestial com o Filho de Deus, ainda que mantendo uma certa distinção. Ele diz: “meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”. Repare que ele não diz “...nosso Pai”, mas “meu Pai e vosso Pai”. A filiação da qual Jesus desfruta é singular, pois ele é o Filho Eterno de Deus, e nós não. Fomos feitos filhos em algum momento no tempo e não temos a natureza divina como Jesus a tem, a qual é eternamente uma característica intrínseca de sua Pessoa divina.
Se Maria Madalena podia antes se relacionar com Jesus na terra e na sua condição de Filho do Homem caminhando aqui à semelhança de suas criaturas (mas sem pecado), e desfrutar de sua companhia terrena, agora ela precisaria aprender que iria se relacionar com um Homem na glória, na própria presença do Pai. Se as esperanças e bênçãos que enchiam o coração dela tinham sido, até ali, terrenas como eram todas a bênçãos e esperanças de uma israelita, a partir de então elas passariam a ser celestiais, como são as bênçãos e esperanças do cristão (mas não do remanescente judeu que irá se converter depois do arrebatamento da igreja para habitar no reino milenial). Daí a expressão “não me toques” ou “não me detenhas”. Talvez ele estivesse querendo dizer: “Não me toques, ao menos da mesma maneira como você me conhecia antes de minha morte, ressurreição e ascensão aos céus para ser glorificado à destra da Majestade nas alturas”.
(Jo 20:15-17) “Disse-lhe Jesus: Mulher, por que choras? Quem buscas? Ela, cuidando que era o hortelão, disse-lhe: Senhor, se tu o levaste, dize-me onde o puseste, e eu o levarei. Disse-lhe Jesus: Maria! Ela, voltando-se, disse-lhe: Raboni (que quer dizer, Mestre). Disse-lhe Jesus: Não me detenhas, porque ainda não subi para meu Pai, mas vai para meus irmãos, e dize-lhes que eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.