Seriam os personagens de 1 Samuel figuras?
Sua dúvida é se Elcana, Ana, Penina, Samuel, Eli e seus filhos poderiam ser, além de pessoas reais que viveram há muito tempo, também figuras ou tipos de Israel e da igreja. As Escrituras nos ensinam que as coisas que encontramos no Antigo Testamento “são sombras das coisas futuras” (Cl 2:16-17), que algumas delas “servem de exemplo e sombra das coisas celestiais” (Hb 8:5), “foram-nos feitas em figura” (1 Co 10:6), e podem ser vistas como “figura do verdadeiro” (Hb 9:24).
Mas não devemos nos esquecer de que tudo isso é “a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas“ (Hb 10:1), portanto embora seja de muito consolo, ensino e exortação nos ocuparmos com os tipos, figuras, sombras e princípios do Antigo Testamento, jamais devemos buscar ali doutrinas para a igreja, pois ela nunca aparece em realidade no Antigo Testamento. A igreja, e tudo o que lhe diz respeito, foi um segredo ou mistério revelado apenas muito mais tarde a Paulo, portanto até mesmo os profetas que escreveram o Antigo Testamento não faziam ideia de que ela viria a existir. A doutrina para a igreja você encontra nas epístolas dos apóstolos.
Muita má doutrina existe hoje na cristandade por não se entender esta distinção e por se buscar no Antigo Testamento elementos para aplicar à igreja. Alguns extrapolam completamente a ordem de Deus transformando sombras e figuras em doutrinas, terminando em erros graves. Portanto devemos tratar as sombras como elas são e, por assim dizer, como um aditivo ao entendimento da Bíblia como um todo. Se você vê a sombra de uma pessoa querida chegando, fica alegre, mas isso não se compara à chegada da própria pessoa. Não é com a sombra que você quer se ocupar, mas com a realidade das coisas.
Tendo isto em mente, confesso que nem eu sabia se poderíamos enxergar, conforme você sugeriu, as pessoas de Elcana, Ana, Penina, Eli e seus filhos como figuras do atual estado de coisas envolvendo Israel e a igreja. Eu sempre caminho sobre ovos quando se trata de lidar com os tipos, sombras e figuras do Antigo Testamento, por isso fui buscar ajuda em autores antigos que tinham muito mais experiência do que eu tenho na Palavra. Descobri que vários falam disso, mas escolhi o comentário de John Nelson Darby chamado “Pensamentos em 1 Samuel 1 e 2” para traduzir e enviar a você. Aqui vai:
“Pensamentos em 1 Samuel 1 e 2”
J. N. Darby
O que é dito de Elcana, que tinha duas esposas, parece apresentar um tipo de Cristo e das duas dispensações (Israel e igreja). Ana representaria os judeus com os quais Deus volta a tratar em misericórdia; Penina, os gentios que são deixados de lado. É isto o que podemos distinguir na canção profética de Ana. Vemos também a corrupção do sacerdócio e o juízo de Deus pronunciado contra a casa de Eli. O sacerdócio de Arão e de seus filhos era um tipo da igreja.
As circunstâncias do povo judeu sob Samuel, o profeta, sob Saul e Davi, até Salomão ter subido ao trono, são uma figura dos eventos preparatórios que introduzem o reino do Messias. Ou seja, essas circunstâncias apresentam, na forma de tipos, os principais fatos que ocorrerão da época em que Deus recomeçar a agir por seu povo até Jesus vir para assentar-se no trono de Davi em Jerusalém.
A palavra de Deus pronunciada a Eli é o testemunho que Deus levanta contra seu sacerdócio antes de executar o seu juízo. A igreja, que tem o discernimento do que irá acontecer, deve também levar o testemunho de que Deus está prestes a julgar e rejeitar o corpo gentio cristianizado; o juízo de Deus está para ser cumprido naqueles que compartilham da corrupção que foi introduzida na igreja (Jd 5).
É sob o sacerdócio de Eli e seus filhos que o juízo começa a tomar lugar contra tal ordem de coisas. Como sacerdote, Eli já não tinha mais o discernimento que lhe era requerido. Em uma condição assim o ouvido já não está atento o suficiente para a pessoa poder ser corrigida. Além disso, o que é notável é que o sinal, que é proposto a Eli, é o próprio juízo que Deus está prestes a aplicar. (1 Sm 2:34).
O juízo contra a casa de Eli tem sua execução completa apenas nos tempos de Salomão ser elevado ao trono (1 Rs 2:27-35). O sacerdócio estabelecido por Salomão é, de acordo com a palavra de Jeová, pronunciado a Eli pelo homem de Deus, “um sacerdote fiel, que... andará sempre diante do meu ungido” (1 Sm 2:35). A concretização dessa figura apresentada sob a realeza de Salomão irá ter lugar quando Cristo estiver assentado em seu trono em Jerusalém; é o sacerdócio que é mencionado na descrição da ordem do templo em Ezequiel 44:15.
Aarão e seus filhos representavam o sacerdócio celestial no caráter e posição que Jesus assumiu por sua ressurreição; a posição da igreja que é de Cristo, o Homem glorificado diante de Deus Pai. Aquilo que é indicado como substituindo o que foi rejeitado é a expressão “perante o seu ungido” (1 Sm 12:3). Trata-se de um sacerdócio em diferente posição. O primeiro é celestial, que é o que é prefigurado no tabernáculo, “exemplo e sombra das coisas celestiais” (Hb 9:23-24). O outro sacerdócio é na terra para o templo em Jerusalém, na época quando o Messias estiver assentado no trono de Davi. Este sacerdócio não acabará, e o mesmo vale para o povo judeu restaurado, pois Cristo terá assumido o governo em suas mãos. Aquilo que foi colocado nas mãos do homem sob sua responsabilidade fracassou em cada uma das dispensações; mas Deus, conforme a sua graça, manteve sua eleição. A ele seja toda a glória.
Uma instrução da mais alta importância para nós gentios surge no capítulo 2:27-28 de 1 Samuel. Antes de executar o juízo sobre aquilo que está corrompido Deus sempre traz à memória a natureza da sua vocação em conformidade com sua graça, no que diz respeito à bênção colocada nas mãos dos homens que foram os objetos de sua bondade. Deus diz a Eli: “Não me manifestei, na verdade, à casa de teu pai, estando eles ainda no Egito, na casa de Faraó? E eu o escolhi...”. A casa de Aarão havia sido objeto de uma graça muito especial dentre as tribos de Israel. Mas eles haviam se esquecido dessa graça e, portanto, depois de haverem cessado de trazer à lembrança a bondade de Deus para com eles, haviam caído em um estado de completa corrupção. Como é de se esperar, o juízo é o último remédio que Deus aplica, seja para corrigir, seja para eliminar de vez.
O mesmo vale para a igreja. Ela também se esqueceu da bondade de Deus em conformidade com a vocação ou chamamento de sua graça, por isso esta dispensação está prestes a ser irrevogavelmente interrompida pelo juízo final sobre Babilônia (Ap 18). Portanto é da maior importância para o cristão não se esquecer da graça de Deus relacionada à sua vocação ou chamado inicial. Lembremo-nos de como Deus nos escolheu, a fim de escaparmos da consumação da ameaça feita por Jesus a Laodiceia: “Vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3:16) - [J. N. Darby, “Thoughts on 1 Samuel 1 and 2”, tradução Mario Persona].