O que tenho pode ser um dom espiritual?
Quando o Senhor andou neste mundo, ele fez vários sinais, milagres e maravilhas, como multiplicar os pães, acalmar tempestades, curar enfermos e ressuscitar mortos. Mas cada sinal ou milagre tinha um objetivo claro, primeiro de apresentar suas credenciais de Messias ao povo de Israel e, segundo, de exercer misericórdia para com aqueles que sofriam das privações e provações trazidas pelo pecado.
Mas uma terceira razão de seus sinais e milagres poderia ser a de exibir seus poderes para ganhar notoriedade. Porém isso ele não fez e nem podia fazer, pois seria contrário à sua natureza divina. Prova disso é que nós o vemos curando e ao mesmo tempo alertando o ex-enfermo a não divulgar aquilo.
(Lc 5:13-14) “E ele, estendendo a mão, tocou-lhe, dizendo: Quero, sê limpo. E logo a lepra desapareceu dele. E ordenou-lhe que a ninguém o dissesse“.
Depois de morrer, ressuscitar e ascender aos céus, Jesus deu dons aos homens com o objetivo claro de edificar o corpo de Cristo, e não de fazer desses homens e mulheres super-heróis ou mágicos de Las Vegas.
(Ef 4:10-14) “Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo; até que todos cheguemos à unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a homem perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo o vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente”.
Veja bem:
— É Cristo que dá os dons diretamente de seu lugar no céu, portanto não são dons dados por ordenação humana ou faculdades de teologia;
— O objetivo é o aperfeiçoamento dos santos e não o enriquecimento ou a possibilidade de se exibir do que recebe o dom;
— É para a edificação do corpo como um todo, e não de uma denominação religiosa;
— Seu objetivo é levar as pessoas ao conhecimento de Cristo, e não torná-las dependentes da pessoa que tem o dom, livrando-as justamente do “engano dos homens que com astúcia enganam fraudulosamente”.
Estes são os dons universais e quem os têm pode usá-los em todos os lugares. Um evangelista ou pastor ou mestre é evangelista, pastor ou mestre onde quer que esteja, e não apenas em sua assembleia local. Apóstolos e profetas são dons que ficaram restritos ao período de lançamento do fundamento ou alicerce da casa de Deus, portanto você já não os encontrará por aí. Os apóstolos tinham uma característica de terem estado com o Senhor e os profetas (às vezes um era também o outro) supriam a necessidade de comunicação de Deus para com os santos em uma época quando ainda não existia o Novo Testamento e as epístolas com a doutrina dos apóstolos para a igreja.
(Ef 2:19-22) “Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina ; No qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor. No qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito“.
Portanto, para este tempo da igreja temos o Senhor Jesus como a pedra angular ou de esquina (a primeira que se coloca no alicerce de uma construção), os apóstolos e profetas como fundamento ou alicerce , determinando onde começam e terminam as paredes, e finalmente as paredes, que é a parte hoje em construção e na qual atuam os dons de evangelistas (os que trazem matéria prima, as pedras individuais - Atos 11:19-21), pastores (que colocam a argamassa para que as pedras permaneçam unidas ao Senhor - At 11:22-24) e mestres ou doutores (que mantêm as paredes alinhadas e no prumo doutrinário - Atos 11:25-26).
Mas há os outros dons, de aplicação mais local e eventual, sempre “para o que for útil” , portanto nunca para exibicionismo ou inflar o ego.
(1 Co 12:7-11) “Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria ; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência ; E a outro, pelo mesmo Espírito, a fé ; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar ; E a outro a operação de maravilhas ; e a outro a profecia ; e a outro o dom de discernir os espíritos ; e a outro a variedade de línguas ; e a outro a interpretação das línguas. Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como quer”.
Aqui é o Espírito quem dá a cada um o dom “para o que for útil” , e ele reparte não segundo a nossa vontade ou a vontade dos homens, mas “particularmente a cada um como [ele, o Espírito] quer”. Isto nos ajuda a entender outra passagem geralmente mal compreendida:
(1 Co 12:31) “Portanto, procurai com zelo os melhores dons;”.
O apóstolo não está dizendo aí para nos esforçarmos para receber este ou aquele dom, mas para termos discernimento de buscarmos nos ocupar com os dons de outros irmãos que trazem maior benefício, os melhores dons. Se ler o capítulo 14, que é uma continuação do assunto, verá que ele está comparando o dom de falar em línguas estrangeiras ao dom de profecia (falar a Palavra de Deus), concluindo que o dom de profecia é muito superior ao dom de línguas, porque o primeiro edifica a todos e o segundo só ao que fala.
(1 Co 14:1-3) “Segui o amor, e procurai com zelo os dons espirituais, mas principalmente o de profetizar. Porque o que fala em língua desconhecida não fala aos homens, senão a Deus; porque ninguém o entende, e em espírito fala mistérios. Mas o que profetiza fala aos homens, para edificação, exortação e consolação“.
Repare que no caso de curar, não diz “o dom de curar” , mas “os dons de curar” , porque não é um poder permanente dado a alguém para usar quando bem entender, mas uma capacidade dada a diferentes pessoas conforme a necessidade do momento, para o benefício de diferentes pessoas em diferentes situações.
Mas sua pergunta foi mais específica. Você quis saber se essa intuição para detectar se uma pessoa tem más intenções, mesmo sem conhecê-la, é um dom. Podemos considerar que você poderia ter o dom de “discernir os espíritos” (1 Co 12:10), que é o que Pedro, por exemplo, usou para detectar que Simão era um impostor:
(Atos 8:18-23) “E Simão, vendo que pela imposição das mãos dos apóstolos era dado o Espírito Santo, lhes ofereceu dinheiro, Dizendo: Dai-me também a mim esse poder, para que aquele sobre quem eu puser as mãos receba o Espírito Santo. Mas disse-lhe Pedro: O teu dinheiro seja contigo para perdição, pois cuidaste que o dom de Deus se alcança por dinheiro. Tu não tens parte nem sorte nesta palavra, porque o teu coração não é reto diante de Deus. Arrepende-te, pois, dessa tua iniquidade, e ora a Deus, para que porventura te seja perdoado o pensamento do teu coração; Pois vejo que estás em fel de amargura, e em laço de iniquidade”.
Em outro momento Paulo parece usar desse dom para detectar que a jovem que aparentemente queria ajudá-lo na propagação do evangelho escondia um espírito maligno por detrás daquelas palavras. Uma pessoa qualquer teria se surpreendido ao ver Paulo falar daquela maneira a alguém que parecia estar apenas querendo ajudar:
(Atos 16:16-18) “E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu”.
O discernimento de espíritos também pode ser usado, neste caso pelos varões (veja 1 Coríntios 14:34), nas reuniões da assembleia para detectar em que espírito um irmão está dizendo algo (porque às vezes alguém pode erroneamente usar da palavra para “mandar recados”) ou se existe má doutrina naquilo que fala.
É preciso entender que o que estou dizendo agora é no sentido de 1 Coríntios 14, numa reunião da assembleia (ou igreja) conforme os padrões bíblicos, quando o Espírito Santo tem a liberdade de escolher quem irá ministrar, e não no sentido denominacional, em que as reuniões são dirigidas por um homem à frente (o “pastor”, um modelo que não é bíblico).
Na reunião da assembleia falam os profetas, aqueles que têm algum dom de ministrar, como em 1 Coríntios 12:10 que diz “...e a outra profecia” , e não no sentido dos dons universais de Efésios 3 que já comentei. Veja um exemplo de profetas em ação:
(Atos 15:32) “Depois Judas e Silas, que também eram profetas, exortaram e confirmaram os irmãos com muitas palavras”.
Numa reunião da assembleia falam dois ou três profetas (e não há um “pastor” à frente dirigindo tudo e monopolizando o ministério da Palavra como fazem nas denominações) e os outros julgam. Esses que julgam podem estar exercendo o dom de discernimento dos espíritos.
(1 Co 14:29-33) “E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque t odos podereis profetizar, uns depois dos outros ; para que todos aprendam, e todos sejam consolados. E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas. Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz”.
É importante frisar que nesta passagem fala de um tempo quando ainda havia revelações (lembre-se de que eles não tinham ainda o Novo Testamento escrito), mas hoje uma reunião da assembleia funciona bem tendo a Palavra ou revelação escrita e o ministério dos profetas. E estes, como acontece também com os outros dons, têm seus espíritos sob controle , ou seja, ninguém entra em algum tipo de transe ou êxtase para ser usado pelo Espírito no exercício de seu dom. Uma reunião nos moldes de 1 Coríntios 14 é uma reunião de ordem e paz, e não de confusão e desordem.
Os Coríntios estavam sendo seriamente exortados pelo apóstolo, pois ao invés de usarem os dons “para o que for útil” como diz em 1 Coríntios 12:7, eles pareciam crianças que ganharam um brinquedo novo e assim só geravam desordem e escândalos no uso dos dons. Daí a advertência:
(1 Co 14:20) “Irmãos, não sejais meninos no entendimento, mas sede meninos na malícia, e adultos no entendimento”.
Mas talvez a aplicação mais direta e importante deste dom de discernir os espíritos possa ser a que é explicada nesta passagem:
(1 João 4:1-6) “Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus , porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo. Nisto conhecereis o Espírito de Deus: Todo o espírito que confessa que Jesus Cristo veio em carne é de Deus; E todo o espírito que não confessa que Jesus Cristo veio em carne não é de Deus; mas este é o espírito do anticristo , do qual já ouvistes que há de vir, e eis que já está no mundo... Nós somos de Deus; aquele que conhece a Deus ouve-nos; aquele que não é de Deus não nos ouve. Nisto conhecemos nós o espírito da verdade e o espírito do erro“.
É importante não confundir um dom espiritual com um talento, habilidade ou capacidade natural. Uma pessoa pode ser extremamente habilidosa em detectar más intenções em alguém, e as mulheres são campeãs neste sentido por terem uma intuição muito apurada. Há também pessoas que são treinadas em ler expressões faciais e linguagem corporal para detectarem se uma pessoa está mentindo. Policiais que trabalham em interrogatórios costumam passar por treinamentos assim. Pessoas que estudam psicologia, psiquiatria, neurolinguística e outras disciplinas adquirem habilidades semelhantes de leitura de comportamento e caráter. Há também os estelionatários e golpistas que são mestres na arte de escolher suas vítimas por uma série de indícios aparentes de comportamento. Nada disso, porém, tem a ver com o dom de discernir espíritos.
Talvez agora você tenha mais subsídios para detectar se aquilo que você tem é um dom espiritual ou uma intuição apurada para detectar as intenções das pessoas com base em indícios quase invisíveis de feições e comportamento. Se for o segundo caso, parabéns pela habilidade. Se for o primeiro, então toda a glória deve ser dada a Deus e você deve usar seu dom com parcimônia dentro daquilo “que for útil” para o corpo de Cristo.