O “ide por todo o mundo” não foi dado a Igreja?
Não, o “ide por todo o mundo” não foi uma ordem dada à igreja por uma razão bem simples: a igreja não existia antes de Atos 2. Portanto a ordem foi dada diretamente aos apóstolos em um tempo em que estavam na condição de discípulos judeus do Messias de Israel. Era uma ordem dada em um diferente contexto.
Existe muita confusão quando você aceita o que as denominações ensinam sem conferir no contexto do que cada coisa é ensinada na Palavra de Deus. A ênfase que muitas denominações dão ao evangelismo está fora de lugar se considerarmos que a igreja não é uma organização evangelística. Não é papel da igreja evangelizar, como se fosse uma organização missionária, e nem salvar o mundo da fome e da miséria, como se fosse uma ONG beneficente. A ocupação da igreja é com Cristo (não com incrédulos) em quatro atividades básicas, todas elas culminando na adoração:
(Atos 2:42) “E perseveravam na doutrina dos apóstolos , e na comunhão , e no partir do pão , e nas orações“.
E o evangelismo, não é importante? Sim, importantíssimo, mas a igreja é um corpo de adoradores, não de evangelistas. Os adoradores Deus procura, os evangelistas ele dá. A adoração é a ocupação com Deus, a evangelização é a ocupação com os incrédulos, no sentido de serem salvos para serem transformados em adoradores. Isso acontece “no mundo”, e não na igreja, que é uma corporação formada por salvos.
(Jo 4:21-24) “Disse-lhe Jesus: Mulher, crê-me que a hora vem, em que nem neste monte nem em Jerusalém adorareis o Pai. Vós adorais o que não sabeis; nós adoramos o que sabemos porque a salvação vem dos judeus. Mas a hora vem, e agora é, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade; porque o Pai procura a tais que assim o adorem. Deus é Espírito, e importa que os que o adoram o adorem em espírito e em verdade”.
Assim, o dom de evangelista é dado por Cristo a indivíduos para que saiam pelo mundo trazendo “matéria prima” para a igreja, ou seja, salvos. Os outros dons são voltados para os que já estão salvos.
(Ef 4:11-12) “E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas , e outros para pastores e doutores, Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;”.
Quando Paulo escreve a Timóteo e o exorta a fazer a obra de um evangelista isto pode significar que ele não tinha necessariamente o dom. Mas, como acontece com todas as “segundas epístolas”, a segunda carta a Timóteo também representa um tempo de ruína e abandono, quando Paulo é abandonado por todos no final. Em tempos assim é necessário aceitarmos a exortação como sendo para nós também em nossos dias e, assim, nos empenharmos em fazer a obra de um evangelista.
(2Tm 4:5) “Mas tu, sê sóbrio em tudo, sofre as aflições, faze a obra de um evangelista, cumpre o teu ministério”.
Porém, volto a repetir, esta continua sendo uma atividade individual e não corporativa da igreja. As denominações não compreendem o que é igreja, e o simples fato de serem denominações já demonstra isso (porque se compreendessem não teriam outro nome para identificá-las e nem agiriam como organismos independentes do corpo). Essa falta de compreensão também do que é adoração em assembleia faz com que fiquem quase sempre ocupadas com evangelismo, e isso pode chegar a um ponto tal que coloca um fardo sobre pessoas que não são evangelistas, isto é, não têm tal dom e são obrigadas a evangelizar. São traçadas metas, são feitos gráficos de crescimento, são feitos planos de alcance mundial e as pessoas são treinadas como uma tropa de choque. Tudo isso é planejamento humano, mas nada tem a ver com o dom que Cristo dá às pessoas.
A ordem de Jesus, “Ide por todo o mundo...” , foi dada aos apóstolos dentro de um contexto do judaísmo, e não da igreja que só seria fundada algum tempo mais tarde. Quer dizer que não devemos “ir” e evangelizar. É claro que devemos, porque tudo em Atos e nas epístolas nos mostra isso. Mas não podemos tirar um versículo do contexto para fazermos isso. Só entendemos corretamente as Escrituras quando as dividimos com a sabedoria que o Espírito nos dá. E é muito improvável que você entenda o caráter dos evangelhos se não entender corretamente as dispensações ou diferentes formas administrativas usadas por Deus ao longo da história.
(ACF) “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade”.
(Darby) “Strive diligently to present thyself approved to God, a workman that has not to be ashamed, cutting in a straight line the word of truth”.
Esse “maneja” é no sentido de cortar corretamente ou repartir e colocar cada coisa no seu lugar. E o lugar dos evangelhos é o Antigo Testamento. Tudo ali é judaísmo, porque Jesus veio para os judeus ( “veio para o que era seu...” ). Exceto duas únicas menções da igreja (Mt 16 e Mateus 18), Jesus está tratando com judeus. Considerando que os judeus o rejeitariam: “...mas os seus não o receberam” (Jo 1:11), então se pode perceber que as instruções permanecem válidas para os judeus que irão se converter após o arrebatamento. Assim o “ide” é, em primeira instância, dirigido aos judeus convertidos que deverão pregar o “evangelho do reino” e não o “evangelho da graça de Deus”.
(Mc 16:15-20) “E disse-lhes: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura. Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado. E estes sinais seguirão aos que crerem: Em meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; Pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão. Ora, o Senhor, depois de lhes ter falado, foi recebido no céu, e assentou-se à direita de Deus. E eles, tendo partido, pregaram por todas as partes, cooperando com eles o Senhor, e confirmando a palavra com os sinais que se seguiram. Amém”.
Eles realmente “pregaram por todas as partes”, e sinais acompanharam sua pregação, o que aconteceu até nos primeiros tempos de Atos. Mas neste momento não foram pregar por todo o mundo. Para entendermos a Palavra é preciso discernir que também precisamos dividir a profecia referente ao mundo e a Israel. Por exemplo, quando você lê Daniel 9 precisará entender que existe uma divisão ali, um parêntese antes dos últimos sete anos “ou semana” da profecia, ou não terá como fechar a contagem de anos.
(Dn 9:24-27) “Setenta semanas estão determinadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para cessar a transgressão, e para dar fim aos pecados, e para expiar a iniquidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o Santíssimo. Sabe e entende: desde a saída da ordem para restaurar, e para edificar a Jerusalém, até ao Messias, o Príncipe, haverá sete semanas, e sessenta e duas semanas; as ruas e o muro se reedificarão, mas em tempos angustiosos. E depois das sessenta e duas semanas será cortado o Messias, mas não para si mesmo; e o povo [romanos] do príncipe, que há de vir [esse príncipe é o anticristo], destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será com uma inundação; e até ao fim haverá guerra; estão determinadas as assolações. [ entra aqui o período da igreja ] E ele [o príncipe do versículo anterior, que é o anticristo futuro] firmará aliança com muitos por uma semana; e na metade da semana fará cessar o sacrifício e a oblação; e sobre a asa das abominações virá o assolador, e isso até à consumação; e o que está determinado será derramado sobre o assolador”.
Quer ver outra profecia que o próprio Senhor mostrou que precisava ser dividida para fazer sentido?
(Lc 4:17) “E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías; e, quando abriu o livro, achou o lugar em que estava escrito: O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração, a pregar liberdade aos cativos, e restauração da vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos, a anunciar o ano aceitável do Senhor. E, cerrando o livro, e tornando-o a dar ao ministro, assentou-se; e os olhos de todos na sinagoga estavam fitos nele. Então começou a dizer-lhes: Hoje se cumpriu esta Escritura em vossos ouvidos”.
Repare que ele parou a profecia em um determinado ponto, porque o restante dela ainda se cumprirá no futuro. Se ler a profecia toda em Isaías 61:1 verá que Jesus parou em “Apregoar o ano aceitável do Senhor” , antes de dizer “... e o dia da vingança do nosso Deus”. Isto porque o dia da vingança ainda virá e entre uma coisa e outra entraria o período da Igreja.
Mais um exemplo? Pedro cita Joel em Atos como sendo aquilo que estava acontecendo naquele momento da fundação da Igreja:
(Atos 2:16-21) “Mas isto é o que foi dito pelo profeta Joel: e nos últimos dias acontecerá, diz Deus, que do meu Espírito derramarei sobre toda a carne; e os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão, os vossos jovens terão visões, e os vossos velhos terão sonhos; e também do meu Espírito derramarei sobre os meus servos e as minhas servas naqueles dias, e profetizarão; e farei aparecer prodígios em cima, no céu; e sinais em baixo na terra, sangue, fogo e vapor de fumo. O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes de chegar o grande e glorioso dia do Senhor; e acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo”.
Será que vimos o Espírito ser derramado sobre TODA A CARNE? Será que vimos “prodígios em cima, no céu, e sinais em baixo, na terra, sangue, fogo e vapor de fumo”? Será que vimos o sol se converter em trevas e a lua em sangue? Não, porque Pedro mencionou a profecia porque apenas uma parte dela estava se cumprindo naquele momento. Se não tivermos discernimento podemos querer aplicar as coisas na época e situação erradas, causando grande confusão.
O que os apóstolos pregavam era confirmado com sinais, era bem semelhante ao que o Senhor pregava, era a mensagem do Reino e aqueles que eram curados os apóstolos certamente diriam para irem ao Templo oferecer os sacrifícios conforme exigia a Lei, pois era assim também que Jesus agia ao curar alguém.
(Mc 1:44) “E disse-lhe: Olha, não digas nada a ninguém; porém vai, mostra-te ao sacerdote, e oferece pela tua purificação o que Moisés determinou , para lhes servir de testemunho”.
(Lc 5:14) “E ordenou-lhe que a ninguém o dissesse. Mas vai, disse, mostra-te ao sacerdote, e oferece, pela tua purificação, o que Moisés determinou , para que lhes sirva de testemunho”.
Essa primeira “evangelização” dos apóstolos obviamente foi interrompida pois tudo passou a ser diferente. Veja que a promessa do Senhor era de que eles não terminariam de percorrer toda a terra de Israel antes que o Senhor voltasse. Fica muito claro que isto ocorrerá no contexto da grande tribulação, ou seja, é uma ordem dada para um tempo que não tem nada a ver com a igreja:
(Mt 10:23) “Quando pois vos perseguirem nesta cidade, fugi para outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que venha o Filho do homem“.
Os apóstolos estavam em uma condição muito diferente da que nós hoje estamos como igreja. E eles não tinham o Espírito Santo habitando em si, e a partir de Pentecostes já tinham. A própria mensagem de ir por todo o mundo não fazia muito sentido para aqueles judeus e basta lermos Atos para percebermos que houve muita relutância em entender que a igreja era um corpo formado por judeus e gentios igualmente salvos e com iguais privilégios. Foi somente com a revelação dada a Paulo do que era o corpo de Cristo que os outros apóstolos também passaram a entender a igreja.
Antes disso um gentio convertido ao judaísmo não tinha todos os privilégios que tinha um judeu. Por exemplo, o eunuco que se converte a Cristo em Atos 8 era um gentio convertido, um prosélito, que ia a Jerusalém adorar mas não podia nem entrar no templo, pois era eunuco (castrado) e a Lei não permitia seu acesso.
(Dt 23:1) “Aquele a quem forem trilhados os testículos, ou cortado o membro viril, não entrará na congregação do Senhor”.
Hoje não pregamos como os apóstolos faziam nos evangelhos. Não anunciamos que o Reino de Deus é chegado porque o Reino já está aqui, não em sua forma manifesta porque o Rei foi rejeitado. Mas virá a ser instalado no mundo quando Cristo voltar para reinar. O evangelho que pregamos hoje é o da salvação pela fé em Cristo. No período da igreja que vemos em Atos quando um apóstolo curava alguém, ele já não dizia para a pessoa apresentar-se ao sacerdote em Jerusalém e fazer as ofertas exigidas pela Lei para sua purificação, como o Senhor fazia antes. Dá para perceber que estamos vivendo em outra dispensação?
Após o arrebatamento da igreja as coisas voltarão a ser bem parecidas com as condições dos tempos dos evangelhos. Haverá um governo que em muito se assemelhará ao império romano, porém com a introdução da democracia nele. É por isso que o último reino da estátua vista por Daniel tem os pés de ferro e barro.
(Dn 2:33) “As pernas de ferro; os seus pés em parte de ferro e em parte de barro”.
O ferro era o mesmo material das pernas e representa o Império Romano, enquanto o barro nos fala de humanidade, pois o homem veio do barro. Democracia e o poder colocado nas mãos do povo, ou seja, o ferro do governo misturado com o barro da humanidade.
Nesse tempo (após o arrebatamento) as atenções se voltarão ainda mais para a Europa e Israel. É disso que fala praticamente todo o Apocalipse, com exceção dos primeiros 3 capítulos e dos últimos. Portanto, encare muito do que você encontra nos evangelhos como instruções que foram suspensas até que o mundo esteja novamente configurado para elas serem colocadas em prática.
O “ide” foi dado nesse contexto. Mas será que isto significa que não devemos “ir”? É claro que devemos, mas não como igreja, e sim como indivíduos, pregando o evangelho da graça de Deus e encaminhando aqueles que se convertem para estarem congregados onde o Senhor está no meio. O caráter individual (e não como “igreja”) da evangelização fica muito evidente em passagens como estas:
(Atos 8:4-5) “Mas os que andavam dispersos iam por toda a parte, anunciando a palavra. E, descendo Filipe à cidade de Samaria lhes pregava a Cristo”.
(Atos 11:19-21) “E os que foram dispersos pela perseguição que sucedeu por causa de Estêvão caminharam até à Fenícia, Chipre e Antioquia, não anunciando a ninguém a palavra, senão somente aos judeus. E havia entre eles alguns homens cíprios e cirenenses, os quais entrando em Antioquia falaram aos gregos, anunciando o Senhor Jesus. E a mão do Senhor era com eles; e grande número creu e se converteu ao Senhor”.