Devo parar de jogar futebol?

Nos evangelhos não vemos o Senhor criticando ladrões e prostitutas por roubarem ou se prostituírem: qualquer um sabe que roubar e prostituir é errado e ele nem precisava falar no assunto. Mas nós o vemos falando duro com os fariseus porque nem todo mundo percebe que a coisa mais perversa que existe aos olhos de Deus é o sentimento religioso de justiça própria.

Em nenhum lugar na Bíblia está escrito “Não jogarás futebol”, “Não assistirás TV” ou “Não beberás cerveja”. Mas temos passagens que falam contra mentir, agredir o próximo, falar palavras torpes, embriagar-se, etc. Não é preciso estar num jogo de futebol para fazer essas coisas, portanto o problema não é o futebol, mas o modo como as pessoas se comportam ali. Já vi muito esporte sendo praticado por grupos de irmãos de forma limpa e sadia, sem agressões ou palavrões. Parar de praticar o esporte porque ali alguém falou palavrão é como a piada do sujeito que pegou a mulher no sofá com outro e decidiu vender o sofá para resolver o problema.

Quando o Senhor conta a história do fariseu e do publicano no templo, dá para ver bem que o fariseu inventou uma prática (jejuar 2 X por semana) para se achar mais justo que o publicano. Somos propensos a inventar coisas para nos sentirmos superiores a outros que não fazem o mesmo. Repare que o que ele está fazendo não é uma oração ou adoração a Deus, mas um louvor a si mesmo: “...graças te dou porque EU não sou como os demais homens...” :

(Lc 18:10-14) “Dois homens subiram ao templo, para orar; um, fariseu, e o outro, publicano. Ó fariseu, estando em pé, orava consigo desta maneira: O Deus, graças te dou porque não sou como os demais homens, roubadores, injustos e adúlteros; nem ainda como este publicano. Jejuo duas vezes na semana , e dou os dízimos de tudo quanto possuo. O publicano, porém, estando em pé, de longe, nem ainda queria levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: O Deus, tem misericórdia de mim, pecador! Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque qualquer que a si mesmo se exalta será humilhado, e qualquer que a si mesmo se humilha será exaltado”.

Então o cristão que não bebe álcool vai olhar com aquele ar de superioridade religiosa para aquele que bebe (sem se dar conta de que o primeiro milagre de Jesus foi transformar água em vinho). O que usa terno para adorar a Deus aos domingos vai se considerar mais santo do que aquele que vai de jeans e camiseta, etc. O que não vê TV ou não vai ao cinema vai se considerar mais puro do que o que faz essas coisas. Muitos passam a fazer disso sua plataforma e acabam pregando leis, condutas e práticas ao invés do evangelho, o que não é diferente do que os fariseus faziam e o apóstolo Paulo condena em sua carta aos Gálatas. Nossa carne adora parecer religiosa.

Por outro lado, para essas coisas (como jogar futebol, tomar cerveja, usar roupa da moda, assistir TV, etc.) o crente deve ter sempre em mente que elas podem se tornar um tropeço quando ele próprio não souber controlar isso e ser moderado na forma como usa dessas coisas. Trata-se, portanto, de uma questão do exercício pessoal de cada um para com o seu Senhor, e não de se preocupar com uma lista do que “pode” e “não pode”.

Um cristão que pratique um esporte com amigos por diversão e saúde é bem diferente de um que esteja dominado pelo esporte, tornando-se fanático e negligenciando sua comunhão com Deus por causa do esporte. A todo o momento vemos torcedores brigando e matando uns aos outros. Obviamente essa idolatria pelo esporte deve ficar longe do cristão.

Um cristão que eventualmente tome um cálice de vinho ou um copo de cerveja durante a refeição não é a mesma coisa de um que esteja viciado em álcool e vive se encharcando de destilados nas festas, competindo com amigos para ver quem bebe mais ou se gabando da quantidade de latas e garrafas vazias em fotos nas redes sociais. A mesma passagem que condena a embriaguez também condena a glutonaria. Comer demais até a obesidade é tão pecado quanto beber demais até a embriaguez.

(Gl 5:19-21) “Porque as obras da carne são manifestas, as quais são: adultério, prostituição, impureza, lascívia, idolatria, feitiçaria, inimizades, porfias, emulações, iras, pelejas, dissensões, heresias, invejas, homicídios, bebedices, glutonarias , e coisas semelhantes a estas, acerca das quais vos declaro, como já antes vos disse, que os que cometem tais coisas não herdarão o reino de Deus”.

Uma mulher cristã (e aqui falo de mulher porque geralmente é onde a questão do vestir fala mais alto) que esteja usando roupas sensuais que possam servir de tropeço para os homens deve reavaliar seu modo de vestir diante do Senhor. Do mesmo modo aquela que se veste notoriamente para chamar atenção para seu modo “religioso” de vestir deve atentar para o que isso causa em si mesma. Se quiser ser vista como religiosa ela não será muito diferente daqueles que o Senhor critica nos evangelhos, os que fazem suas orações para serem vistos pelos homens.

(Mt 6:5) “E, quando orares, não sejas como os hipócritas; pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas, e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão”.

A passagem que exorta a que “o enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de joias de ouro, na compostura dos vestidos; mas o homem encoberto no coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus” não está proibindo o frisado dos cabelos ou o uso de joias e vestidos chamativos, mas está dizendo que não sejam estas coisas o enfeite da mulher cristã ( “O enfeite delas não seja o exterior... ” ).

Para entender o que estou dizendo vou exemplificar parafraseando a passagem: “O enfeite delas não seja o exterior, na falta de maquiagem e adereços, no cabelo até os joelhos, na saia até o tornozelo; mas o homem encoberto no coração; no incorruptível traje de um espírito manso e quieto, que é precioso diante de Deus”. Acho que deu para entender que se uma mulher cristã quiser chamar atenção para o seu exterior ela vai conseguir, seja vestindo-se na moda atual ou como no século 19. Nos dois casos ela estará errando por querer chamar a atenção para seu exterior, e não para o que ela é interiormente como mulher cristã. Geralmente tentamos compensar a falta de uma coisa com outra, e isto vale também para a aparência.

Um cristão que saiba usar a TV para manter-se informado ou como lazer sadio é diferente daquele que fica grudado em programas de cunho sexual, jornais sensacionalistas e lutas de tirar sangue. No caso da TV é preciso ter em mente hoje que muitos programas religiosos são extremamente perniciosos para a fé, e também que a programação já não está mais restrita àquele aparelho da sala, como era no passado. Hoje tudo funciona como TV, desde o computador até o celular. Se nos dias atuais alguém argumentar que o cristão não deve ter TV em razão de conteúdo impróprio precisará também deixar de usar computador, tablet e celular.

Até aqui vimos o lado do próprio cristão, de como ele deve se cuidar para não descambar para o pecado a partir de coisas que, a princípio, são lícitas, ou partir para o farisaísmo na tentativa de querer mostrar para os outros que é mais santo.

(1 Co 6:12) “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma”.

(1 Co 10:23) “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm; todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas edificam”.

Mas há também o lado do testemunho. Se algo que você faz (seja praticar esporte, beber vinho, usar uma determinada roupa, etc.) serve de escândalo para algum irmão mais fraco e pode fazê-lo tropeçar, é melhor deixar de fazer essas coisas ou agir com moderação para não ser causa de tropeço. O amor é que nos motiva a agir assim, e não uma regra ou lei.

(Rm 14:1-8) “Ora, quanto ao que está enfermo na fé, recebei-o, não em contendas sobre dúvidas. Porque um crê que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come não despreze o que não come; e o que não come, não julgue o que come ; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu próprio senhor ele está em pé ou cai. Mas estará firme, porque poderoso é Deus para o firmar. Um faz diferença entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente seguro em sua própria mente. Aquele que faz caso do dia, para o Senhor o faz e o que não faz caso do dia para o Senhor o não faz. O que come, para o Senhor come, porque dá graças a Deus; e o que não come, para o Senhor não come, e dá graças a Deus. Porque nenhum de nós vive para si, e nenhum morre para si. Porque, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De sorte que, ou vivamos ou morramos, somos do Senhor”.

(Rm 14:21-23) “Bom é não comer carne, nem beber vinho, nem fazer outras coisas em que teu irmão tropece, ou se escandalize, ou se enfraqueça. Tens tu fé? Tem-na em ti mesmo diante de Deus. Bem-aventurado aquele que não se condena a si mesmo naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas, se come está condenado, porque não come por fé; e tudo o que não é de fé é pecado“.

(Rm 15:1-3) “Mas nós, que somos fortes, devemos suportar as fraquezas dos fracos, e não agradar a nós mesmos. Portanto cada um de nós agrade ao seu próximo no que é bom para edificação. Porque também Cristo não agradou a si mesmo“.

Resumindo: se você sente-se mal praticando um esporte, bebendo cerveja, vestindo-se de uma determinada maneira, assistindo TV ou fazendo qualquer coisa por isso estar interferindo em sua comunhão com Deus, pare de praticar tal coisa. “Portanto, se a tua mão ou o teu pé te escandalizar, corta-o, e atira-o para longe de ti... se o teu olho te escandalizar, arranca-o, e atira-o para longe de ti” (Mt 18:8-9). Se for o caso de isso estar levando alguém a se escandalizar, evite fazê-lo completamente ou ao menos quando essa pessoa estiver por perto. Se você já evitou tomar sorvete perto de uma criança que estava com gripe entendeu o que estou falando. Peça ao Senhor direção a respeito das coisas nas quais tem dúvida se deve ou não fazer.

Mas se essa abstinência criar em você um sentimento de superioridade em relação a outros cristãos, então você simplesmente trocou algo ruim por algo pior, que é a jactância, orgulho religioso ou farisaísmo.