Um cristão pode processar outro?
O crente vive em duas esferas: a igreja e o mundo. Na igreja a ordem é clara quanto a apelar para a justiça do mundo no caso de algum litígio entre irmãos: a parte lesada deve estar pronta a sofrer o dano e a abrir mão de revanche. “Ousa algum de vós, tendo algum negócio contra outro, ir a juízo perante os injustos, e não perante os santos?... Na verdade é já realmente uma falta entre vós, terdes demandas uns contra os outros. Por que não sofreis antes a injustiça? Por que não sofreis antes o dano?“ (1 Co 6:1-9).
Mas o contexto mostra que mesmo assim o cristão pode levar a questão a julgamento, porém limitando-se a fazer isso entre os irmãos: “Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida? Então, se tiverdes negócios em juízo, pertencentes a esta vida, pondes para julgá-los os que são de menos estima na igreja? Para vos envergonhar o digo. Não há, pois, entre vós sábios, nem mesmo um, que possa julgar entre seus irmãos?“ (1 Co 6:1-9).
em Mateus 18 aprendemos que qualquer desavença entre irmãos deve inicialmente ser tratada entre as partes. Caso não se chegue a um acordo, recorre-se a uma ou duas testemunhas e, apenas em caso extremo, isso é levado ao juízo da assembleia congregada ao nome do Senhor, a qual irá deliberar segundo a autoridade que o Senhor deu a dois ou três congregados ao seu N ome. Neste caso as partes envolvidas deverão se sujeitar à decisão da assembleia, que tem o poder de “ligar“ (decidir) e “desligar“ (reverter uma decisão), o que é sancionado no céu.
(Mt 18:15-20) “Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só ; se te ouvir, ganhaste a teu irmão; Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois , para que pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja ; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles“.
Deve ser entendido que a situação particular apresentada em Mateus 18, de um litígio entre irmãos, é diferente da situação de 1 Coríntios 5, que engloba alguém envolvido em pecado moral. No caso de 1 Coríntios 5 não existe esse litígio entre irmãos, mas existe contaminação da assembleia por pecado. Aí a assembleia entra em cena diretamente, sem passar pelo processo de tentativa de conciliação entre as partes envolvidas, como era o exemplo dado em Mateus 18. Mas a assembleia possui a mesma autoridade delegada em Mateus 18 para tomar decisões relativas a julgamento de pecado e disciplina. No caso de 1 Coríntios 5 era um caso de pecado moral, mas ali há também uma lista incompleta de possibilidades: “... devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador” (1 Co 5:11).
A lista de pecados com os quais a assembleia poderia lidar em julgamento e disciplina não está limitada às coisas que normalmente consideramos faltas graves, mas pode incluir mentirosos (Ananias e Safira, Atos 5), pessoas que pregam má doutrina (Himeneu e Fileto, 1 Timóteo 2), aqueles que almejam uma posição clerical entre os irmãos (Diótrefes, 3 Jo 1), “amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus”, “Destes afasta-te” (2Tm 3), vagabundos que não querem trabalhar e que insistem em desobedecer à Palavra “Não vos mistureis com ele” (2Ts 3:11-14), fofoqueiras (1Tm 5:13), hereges (a palavra significa causadores de divisão ou que buscam discípulos para si, Tito 3:10), etc.
Outra lista em 1 Coríntios6:10 (onde o assunto é justamente as demandas entre irmãos) inclui devassos, idólatras, adúlteros, efeminados, sodomitas, ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes e roubadores. Mas a continuação do texto demonstra que até coisas lícitas podem se tornar pecado quando o crente se deixa dominar por elas. Poderíamos incluir aí pessoas que acabam negligenciando suas obrigações familiares e com a assembleia por estarem envolvidas demais com trabalho ou diversão. “Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma” (1 Co 6:12).
E quando o problema não é entre irmãos, mas entre o crente e o incrédulo ou entre o crente e uma empresa ou governo? Deus instituiu as autoridades neste mundo, e isso inclui os tribunais para julgarem os negócios desta vida.
(Rm 13:1-7) “Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. Por isso quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem”.
Em mais de uma ocasião vemos o apóstolo Paulo apelando para a justiça e a lei romana ao sentir-se injustiçado.
(Atos 16:37-39) “Mas Paulo replicou: Açoitaram-nos publicamente e, sem sermos condenados, sendo homens romanos, nos lançaram na prisão, e agora encobertamente nos lançam fora? Não será assim ; mas venham eles mesmos e tirem-nos para fora. E os quadrilheiros foram dizer aos magistrados estas palavras; e eles temeram, ouvindo que eram romanos. E, vindo, lhes dirigiram súplicas; e, tirando-os para fora, lhes pediram que saíssem da cidade”.
(Atos 22:25-29) “E, quando o estavam atando com correias, disse Paulo ao centurião que ali estava: É-vos lícito açoitar um romano, sem ser condenado? E, ouvindo isto, o centurião foi, e anunciou ao tribuno, dizendo: Vê o que vais fazer, porque este homem é romano. E, vindo o tribuno, disse-lhe: Dize-me, és tu romano? E ele disse: Sim. E respondeu o tribuno: Eu com grande soma de dinheiro alcancei este direito de cidadão. Paulo disse: Mas eu o sou de nascimento. E logo dele se apartaram os que o haviam de examinar; e até o tribuno teve temor, quando soube que era romano, visto que o tinha ligado“.
(Atos 25:10-12) “Mas Paulo disse: Estou perante o tribunal de César, onde convém que seja julgado ; não fiz agravo algum aos judeus, como tu muito bem sabes. Se fiz algum agravo, ou cometi alguma coisa digna de morte, não recuso morrer; mas, se nada há das coisas de que estes me acusam, ninguém me pode entregar a eles; apelo para César. Então Festo, tendo falado com o conselho, respondeu: Apelaste para César? Para César irás“.
Mas é importante notar que a decisão de Paulo não causava dano a ninguém, e apenas procurava resguardar seus direitos e sua integridade física. Pode acontecer também de o cristão ter sido prejudicado pela empresa para a qual trabalha, pelo banco no qual tem conta ou pela loja na qual fez uma compra. Existem dispositivos legais para tratar de cada caso, mas o cristão não deve agir no piloto automático só porque as leis lhe dão proteção. O cristão deve orar sempre e buscar sabedoria de Deus. Em todos os casos é abominável que o cristão procure provocar situações e oportunidades legais, como pessoas que causam acidentes ou facilitam o roubo do carro para receberem indenização da seguradora.
Cada caso é um caso e o cristão deve orar a respeito, lembrando que uma ação legal pode ter desdobramentos que às vezes custam caro em termos de saúde, finanças e relacionamentos. Mas o prejuízo maior é sempre da impressão que ele, como cristão, causará nos incrédulos. Os desdobramentos de uma ação penal podem fazer com que o cristão deixe de ser visto como luz do mundo para ser considerado trevas, ou apreciado como sal, para ser sentido como fel no paladar dos incrédulos. Considerando que sermos testemunhas de Cristo neste mundo é a razão de termos sido deixados aqui, vale a pena ponderar cada caso para ver em quanto isso poderá danificar esse testemunho.
Portanto, volto a dizer, é preciso buscar sabedoria da parte do Senhor porque cada caso é um caso. Digamos que uma mulher cristã tenha sido violentada por um maníaco. Deveria ela manter-se em silêncio ou procurar as autoridades para evitar que outras mulheres sejam atacadas? Ou o cristão que é enganado por um estelionatário? Deve ele ir à polícia para impedir que o mesmo faça outras vítimas? Nestes casos nem seria um caso de reparação pelo crime sofrido, mas de consideração para com o próximo. Há situações em que o cristão é obrigado a envolver-se em questões legais, não por querer defender seus próprios direitos, mas os daquele a quem representa. É o caso de um procurador ou representante legal, guardião de menores, etc.
A questão de um crente buscar ou não dispositivos legais não é algo simples, daí não existir uma resposta do tipo “sim” ou “não”. A própria condição da cristandade atualmente faz com que um cristão genuíno nem sempre tenha a certeza de estar tratando com um irmão genuíno ou apenas com um mero professo. Por isso o melhor é fazer o trabalho prévio, isto é, orar sempre para não precisar ser envolvido em questões legais. Mas, quando isso acontecer, orar também por sabedoria de como agir, lembrando sempre que nossa função neste mundo é glorificar a Deus e testemunhar do nome de Cristo. E como é que o Senhor agiu quando passou por aqui? Temos boas pistas na própria Palavra de Deus para perceber que ele sempre foi o perdedor em todas as situações, e assim ensinava também seus discípulos.
“Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra; e, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa; e, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas”. (Mt 5:38-41).
“Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos , para levar-nos a Deus”. (1 Pe 3:18).
“Vós, servos, sujeitai-vos com todo o temor aos senhores, não somente aos bons e humanos, mas também aos maus. Porque é coisa agradável, que alguém, por causa da consciência para com Deus, sofra agravos, padecendo injustamente. Porque, que glória será essa, se, pecando, sois esbofeteados e sofreis? Mas se, fazendo o bem, sois afligidos e o sofreis, isso é agradável a Deus. Porque para isto sois chamados; pois também Cristo padeceu por nós, deixando-nos o exemplo, para que sigais as suas pisadas. O qual não cometeu pecado, nem na sua boca se achou engano. O qual, quando o injuriavam, não injuriava, e quando padecia não ameaçava, mas entregava-se àquele que julga justamente“ (1 Pe 2:18).
“De sorte que haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus“ (Fp 2:5).