Devemos ter tudo em comum como os primeiros cristãos?
É normal que alguns cristãos, principalmente recém-convertidos, se apaixonem pela ideia de venderem tudo e distribuírem entre os mais necessitados. Eu mesmo, quando vi o filme “Irmão Sol, Irmã Lua”, uma história romanceada da vida de São Francisco de Assis, acreditei que viver daquele jeito seria possível. Mas o próprio filme mostrava que o clero da época só acatou a ideia daqueles jovens despojados porque atraía mais fiéis para as missas, como faz o clero católico romano e também protestante em nossos dias ao fazerem vista grossa a padres, pastores e cantores “pop stars”.
A ideia de dar tudo para os pobres é muito bonita em tese, mas na prática devemos agir com sabedoria. Distribua todos os seus bens com os pobres e em um mês estarão todos pobres de novo, inclusive você. Quando escutar algum pregador constrangendo seus ouvintes a adotarem uma vida despojada, primeiro é bom verificar a vida que esse pregador leva para ver se ele pratica o que prega.
Mas, ainda que pratique, o argumento de que em Atos os cristãos vendiam tudo o que tinham e dividiam entre todos não procede e mostra um desconhecimento total do fato de o livro de Atos não ser um livro de doutrina, mas uma narrativa de uma época de transição entre o judaísmo e o cristianismo. Em Atos dos Apóstolos vemos exatamente isto, os Atos dos apóstolos (e dos primeiros cristãos) e às vezes ali são mostrados Atos errados também.
Analisando especificamente o ato de vender tudo e distribuir entre outras pessoas, primeiro vemos que era entre os irmãos que eles compartilhavam o que tinham, e não com o mundo pagão em geral. Segundo, aquilo era uma ação espontânea e não uma ordenança ou obrigação. O próprio apóstolo Pedro deixa bem claro que ninguém era obrigado a vender o que tinha para repartir com os irmãos. Ananias, que foi morto não por ter retido parte do lucro obtido com a venda de seu imóvel, mas por ter mentido ao Espírito Santo, poderia fazer o que quisesse com seus bens, inclusive conservá-los para si. É o que Pedro explica a ele:
(Atos 5:3-4) “Disse então Pedro: Ananias, por que encheu Satanás o teu coração, para que mentisses ao Espírito Santo, e retivesses parte do preço da herdade? Guardando-a não ficava para ti? E, vendida, não estava em teu poder?“ (Outra versão diz: “Acaso não o podias conservar sem vendê-lo? E depois de vendido, não podias livremente dispor dessa quantia?“).
A decisão dos primeiros cristãos de vender tudo e repartir com os irmãos acontecia em um momento em que a igreja vivia seu primeiro amor e desfrutava do poder de Deus agindo sem os impedimentos que hoje temos. Quais? O fato dos cristãos estarem divididos em milhares de seitas e o mal ter se infiltrado em seu meio. Hoje qualquer um se diz “irmão”, até o pregador da TV que só sabe pedir dinheiro. Você venderia tudo o que tem para dar ao pregador e ele comprar outro helicóptero ou reformar sua mansão?
Um olhar cuidadoso verá que mesmo no livro de Atos as condições iam mudando e se adaptando conforme o mal começava a se introduzir na igreja. Eles começam vivendo em comunidade, tendo tudo em comum e vendendo e distribuindo entre si seus bens:
(Atos 2:44-45) “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister”.
Então vemos em Atos 4 que já não dividiam mais entre si, mas passaram a trazer o que tinham aos apóstolos, para estes fazerem a distribuição. Lembrando mais uma vez que tudo acontecia dentro do círculo dos irmãos, e não era uma campanha para dividir tudo com todos os pobres dentre os pagãos. Entregue hoje seus bens aos pobres necessitados do Taleban no Afeganistão e eles venderão tudo para comprar armas.
(Atos 4:32-35) “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns... Não havia, pois, entre eles necessitado algum; porque todos os que possuíam herdades ou casas, vendendo-as, traziam o preço do que fora vendido, e o depositavam aos pés dos apóstolos. E repartia-se a cada um, segundo a necessidade que cada um tinha”.
Já no capítulo seguinte vemos o mal agindo e Ananias e Safira fazendo o que obviamente acontece com todo coração humano: querer parecer mais do que é ou que faz mais do que realmente fez. Acaso não foi assim que terminaram as boas intenções de algumas organizações beneficentes mais antigas? Há muitas que hoje promovem jantares para homenagear os que contribuem, e às vezes esses eventos custam mais caro do que aquilo que vai efetivamente chegar nas mãos dos necessitados. Algumas ONGs gastam mais dinheiro com funções administrativas e de propaganda do que com os necessitados.
Mas vamos ver o que ocorre após o conhecido episódio de Ananias e Safira, que foi resolvido de forma radical com a morte dos que mentiram ao Espírito Santo. Em um período de grande poder no início da igreja, com os apóstolos fazendo sinais e milagres, havia também uma grande responsabilidade e uma grande perda quando esta falhasse. Não é à toa que os de fora já estavam relutantes em querer fazer parte daquela comunidade onde as consequências da mentira e dissimulação eram tratadas de maneira tão severa: com a morte dos mentirosos. Já pensou se a igreja hoje vivesse nesse mesmo poder?
(Atos 5:11-13) “E houve um grande temor em toda a igreja, e em todos os que ouviram estas coisas. E muitos sinais e prodígios eram feitos entre o povo pelas mãos dos apóstolos.... Dos outros, porém, ninguém ousava ajuntar-se a eles ; mas o povo tinha-os em grande estima”.
A passagem seguinte deixa muito claro que tudo aquilo era um processo: primeiro eles dividam tudo entre si, depois passaram a entregar aos apóstolos para que estes determinassem como dividir, e agora vemos que homens idôneos são designados especialmente para a tarefa, deixando assim os apóstolos livres para se dedicarem à Palavra. Isto porque os cristãos já não estavam na mesma disposição do princípio e agora agiam de forma egoísta, como vemos na passagem a seguir:
(Atos 6:1) “Ora, naqueles dias, crescendo o número dos discípulos, houve uma murmuração dos gregos contra os hebreus, porque as suas viúvas eram desprezadas no ministério cotidiano”.
Todos os que faziam parte da igreja eram judeus ou prosélitos convertidos a Cristo, mas alguns eram judeus helenistas, isto é, vindos de uma cultura grega. Estes estavam sendo prejudicados na distribuição dos recursos, o que fez os apóstolos tomarem a providência de escolher 7 homens íntegros para cuidarem disso.
(Atos 6:2-4) “E os doze, convocando a multidão dos discípulos, disseram: Não é razoável que nós deixemos a palavra de Deus e sirvamos às mesas. Escolhei, pois, irmãos, dentre vós, sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, aos quais constituamos sobre este importante negócio. Mas nós perseveraremos na oração e no ministério da palavra”.
Se você reparar na continuação da passagem todos eles têm nomes gregos: Estêvão, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Parmenas e Nicolau. Mesmo em situações de falha do homem Deus age em graça.
Isso tudo deixa claro que no livro de Atos nem sempre encontramos as coisas já bem estabelecidas, mas ocorria ali um processo. Hoje, quando não temos mais apóstolos e nem as condições de poder e unidade que existiam no princípio, não podemos ser ingênuos achando ser possível repetir o modo de vida da igreja primitiva.
Fazer o bem e administrar para os mais necessitados é algo que todo cristão deve fazer individualmente em seu exercício com o Senhor, e não algo que devemos impor sobre as pessoas. É um erro também acreditar que pelo exercício do altruísmo os cristãos criarão um mundo melhor e mais justo, pois a Bíblia deixa bem claro que não será assim sem a intervenção direta do Senhor em sua vinda para reinar.
Algumas religiões fundamentalistas acreditam que será pelo esforço dos cristãos em transformarem as condições do mundo em mais propícias que Cristo virá reinar, mas isto é acreditar que o homem possa ter sucesso em seus empreendimentos e que os cristãos conquistar o mundo inteiro para Cristo. O “ide por todo o mundo” levando o evangelho é muito bom e louvável, mas isto não significa que todo o mundo irá se converter a Cristo.
Aliás, o “ide” foi ordenado aos apóstolos ainda em sua condição de judeus, e não de igreja de Deus. O remanescente judeu que se converterá após o arrebatamento da igreja continuará esse trabalho nos anos de tribulação que se seguirão, e até anjos estarão empenhados em levar o “evangelho eterno” aos quatro cantos do mundo.