A Bíblia incentiva a venda da filha como escrava?

As palavras “escrava” e “escravidão” causam espécie em quem logo pensa nos horrores do tráfico e escravidão de negros na história recente do mundo e no Brasil colônia. Mas nos tempos Bíblicos a classe de escravos tinha outro status e alguns eram mais privilegiados do que muitos operários modernos que trabalham em condições precárias. O eunuco de Atos 8 era um tipo de escravo, porém com um cargo palaciano, servos e uma carruagem à sua disposição.

Fica muito difícil entender como era a escravidão nos tempos de Moisés quando Deus lhe deu o texto do Pentateuco, mais especificamente Êxodo 21:1-11, que é muito usado pelos céticos na tentativa de desacreditar a Bíblia. No entanto, a meu ver, o uso desta passagem com esta intenção só serve para desacreditar o próprio cético, por demonstrar sua completa ignorância em antropologia e história da humanidade.

Por exemplo, a mesma passagem que regulamenta a prática é clara em afirmar que “quem ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto” (Ex 21:12). O Novo Testamento também dá diretrizes para o tratamento humano dos escravos: “Vós, senhores, fazei o que for de justiça e equidade a vossos servos [escravos], sabendo que também tendes um Senhor nos céus” (Cl 4:1). A escravidão moderna (Brasil colônia e outros países) dava ao senhor dos escravos direito sobre a vida e a morte de seus escravos, os quais eram tratados como meros animais.

Outra evidência da singularidade da escravidão nos tempos bíblicos do Antigo Testamento é o fato dos patriarcas de 4 tribos - Dã, Naftali, Gade e Aser - serem filhos das escravas de Raquel e Lia (chamadas de servas ou concubinas de Jacó), Zilpa e Bila (Gn 29 e 30). O próprio Jacó foi obrigado por Labão, seu sogro, a comprar suas esposas Raquel e Lia.

Nem precisamos voltar alguns milênios no tempo para entender a quê estou me referindo. Nos anos 1990 estive em Portugal e conheci um irmão em Cristo, de origem alemã, que era casado com uma mulher da África do Sul. Até aí tudo parece muito normal, exceto pelo fato de que ele precisou comprar sua esposa para poder desposá-la. Ela pertencia a uma das muitas tribos da África e o costume tribal exigia que o pretendente comprasse a esposa de seu pai. Aquela mulher havia custado a meu amigo, algumas cabeças de gado e outros objetos de valor.

Eu e você ficaríamos horrorizados com tal ideia. Quem de sã consciência colocaria sua filha à venda? Mas experimente enxergar o costume tribal por outras lentes. Do ponto de vista tribal, a filha tem um valor tão alto para seu pai que ele se sente no direito de exigir um pagamento de alto valor por ela. Ao olhar o costume da sociedade moderna, aquele pai poderá pensar: “Que horror! Nos países modernos as filhas não têm qualquer valor aos olhos de seus pais! Eles as entregam de graça!”. Vamos ao texto bíblico:

(Ex 21:2-12) “Se comprares um escravo hebreu, seis anos servirá; mas, ao sétimo, sairá forro, de graça. Se entrou solteiro, sozinho sairá; se era homem casado, com ele sairá sua mulher. Se o seu senhor lhe der mulher, e ela der à luz filhos e filhas, a mulher e seus filhos serão do seu senhor, e ele sairá sozinho. Porém, se o escravo expressamente disser: Eu amo meu senhor, minha mulher e meus filhos, não quero sair forro. Então, o seu senhor o levará aos juízes, e o fará chegar à porta ou à ombreira, e o seu senhor lhe furará a orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre. Se um homem vender sua filha para ser escrava, esta não lhe sairá como saem os escravos. Se ela não agradar ao seu senhor, que se comprometeu a desposá-la, ele terá de permitir-lhe o resgate; não poderá vendê-la a um povo estranho, pois será isso deslealdade para com ela. Mas, se a casar com seu filho, tratá-la-á como se tratam as filhas. Se ele der ao filho outra mulher, não diminuirá o mantimento da primeira, nem os seus vestidos, nem os seus direitos conjugais. Se não lhe fizer estas três coisas, ela sairá sem retribuição, nem pagamento em dinheiro. Quem ferir alguém, de modo que este morra, certamente será morto”.

O sentido do texto não é de incentivar a escravidão, mas de regulamentar uma prática existente na época e perfeitamente aceita na sociedade de então. Seria algo como o chefe da tribo da esposa de meu amigo estabelecer preços mínimos e máximos para a compra e venda de esposas para evitar excessos ou a depreciação da mulher.

Lembre-se de que o próprio Moisés, e seu antecessor José, haviam sido escravos. Moisés era filho de escravos e foi adotado pela princesa do Egito, e José, escravizado e vendido por seus irmãos, vivia como um mordomo de luxo na casa de seu senhor Potifar, chefe da guarda de Faraó, tendo sido inclusive alvo de tentativa de sedução pela esposa de seu dono. O escravo José alcançaria mais tarde o posto de vice-rei do Egito, algo impensável em termos da escravidão moderna cujo critério era a cor da pele. Descobertas recentes revelam que até os construtores das pirâmides não eram escravos vivendo em condições miseráveis, mas uma classe de servos qualificados com sua própria vila (o equivalente às vilas operárias modernas) com uma estrutura social bastante organizada que incluía padarias e cervejarias.

Se observar a primeira parte do texto de Êxodo verá que fala de escravos homens. Qualquer judeu podia se tornar escravo de vontade própria para pagar uma dívida ou restituir o produto de um roubo. Trabalhava por seis anos e ficava livre no sétimo. Havia um contrato, como quando você assina ao fazer um empréstimo bancário. Você fica “escravo” da instituição até ter devolvido o que tomou e pode sofrer penas severas caso não o faça. A diferença é que o escravo hebreu tinha por lei o limite de seis anos para servir, saindo depois livre, o que não acontece com a maioria das pessoas escravas de dívidas bancárias.

O trecho também regulamenta como proceder caso o escravo fosse casado de antemão ou viesse a se casar com uma escrava de propriedade de seu senhor. Não devemos perder de vista que o Antigo Testamento foi escrito também para nosso ensino e apresenta tipos e figuras de Cristo, uma das quais é este escravo que, por amor de sua esposa, prefere permanecer para sempre servindo seu Senhor a sair livre. Para isso ele se submete a carregar em seu corpo a marca de seu amor, no caso o furo feito em sua orelha com uma sovela, a qual marcava também a madeira da ombreira ou batente da porta da casa de seu Senhor.

Não é preciso muito para perceber que Cristo, por amor da Igreja, deixou seu corpo ser furado no madeiro e hoje, mesmo ressuscitado, leva em si as marcas dos cravos e da lança do soldado, constituindo-se assim na única pessoa que terá cicatrizes na eternidade.

“Sacrifício e oferta não quiseste; as minhas orelhas furaste ; holocausto e expiação pelo pecado não reclamaste” (Sl 40:6 ARCA).

O mesmo para o caso de uma mulher, exceto que ela não poderia sair livre se o seu “dono” tivesse se casado com ela, o que indica que o texto está apenas regulamentando uma das situações em que uma mulher poderia ser tomada como esposa. Leia o texto e verá que não se trata de uma ordem para escravizar, mas de uma regulamentação para garantir à serva (que é o significado da palavra aqui) certos direitos.

Se passearmos pelo Novo Testamento encontraremos escravos sendo tratados de maneira humana e digna, muito diferente da escravidão colonial. Em Mt 8 um centurião procura por Jesus para curar seu escravo e o desejo do oficial romano demonstra que para ele o escravo não era um mero objeto, mas uma pessoa importante na estrutura familiar. em Mateus 12 Jesus é chamado de escravo (significado da palavra “servo” em algumas traduções) na citação feita do profeta Isaías: “Eis aqui o meu servo [ escravo ], que escolhi, o meu amado, em quem a minha alma se compraz”.

Você poderá fazer um exercício bem proveitoso se substituir a palavra “servo” de muitas passagens do Novo Testamento por “escravo”, que é o sentido original, obviamente dentro do contexto de escravidão que expliquei aqui. Os tradutores usaram a expressão “servo” para suavizar o sentido, provavelmente por entenderem a distinção entre o escravo antigo e o moderno:

(Mt 24:45-46) “Quem é, pois, o escravo fiel e prudente, que o seu senhor constituiu sobre a sua casa, para dar o sustento a seu tempo? Bem-aventurado aquele escravo que o seu senhor, quando vier, achar servindo assim”.

(Lc 1:69) “E nos levantou uma salvação poderosa na casa de Davi seu escravo“.

(Rm 1:1) “Paulo, escravo de Jesus Cristo, chamado para apóstolo, separado para o evangelho de Deus”.

(Fp 2:7) “Mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo , fazendo-se semelhante aos homens;”.

(Tg 1:1) “Tiago, escravo de Deus, e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que andam dispersas, saúde”.

(2 Pe 1:1) “Simão Pedro, escravo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco alcançaram fé igualmente preciosa pela justiça do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo”.

(Jd 1:1) “Judas, escravo de Jesus Cristo, e irmão de Tiago, aos chamados, santificados em Deus Pai, e conservados por Jesus Cristo”.

(Ap 1:1) “Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus lhe deu, para mostrar aos seus servos as coisas que brevemente devem acontecer; e pelo seu anjo as enviou, e as notificou a João seu escravo ;”.

(Ap 15:3) “E cantavam o cântico de Moisés, escravo de Deus, e o cântico do Cordeiro, dizendo: Grandes e maravilhosas são as tuas obras, Senhor Deus Todo-Poderoso! Justos e verdadeiros são os teus caminhos, ó Rei dos santos”.

Se você é um crente em Jesus, é bom ir se acostumando com a ideia de ser um escravo de Deus. A menos que você considere injusta a escravidão da qual Moisés, João, Judas, Pedro, Tiago e Paulo faziam parte e esteja entre os que não se submetem à Bíblia, a Palavra de Deus, e a nenhum tipo de submissão ao Senhor.