Por que estas Bíblias não concordam entre si?
Você leu numa versão católica da Bíblia Isaías 42:1, que diz: “Eis meu Servo que eu amparo, meu eleito ao qual dou toda a minha afeição, faço repousar sobre ele meu espírito, para que leve às nações a verdadeira religião”. Ao compará-la com a versão de João Ferreira de Almeida surpreendeu-se com a diferença. Ali está: “Eis aqui o meu servo, a quem sustenho, o meu eleito, em quem se apraz a minha alma; pus o meu espírito sobre ele; ele trará justiça aos gentios”. Qual seria a correta?
Tudo indica que a mais precisa será a versão Almeida, mesmo porque se você comparar com outras versões católicas irá encontrar, como nesta da CNBB, “Eis o meu servo, dou- lhe o meu apoio. É o meu escolhido, alegria do meu coração. Pus nele o meu espírito, ele vai levar o direito às nações”.
Talvez o tradutor da versão católica que você utilizou quisesse “puxar a sardinha” para o seu lado ao dizer que o Servo do Senhor levaria “às nações a verdadeira religião”. Considerando que muitos católicos acham que a salvação se obtém estando naquela que consideram a verdadeira religião ou verdadeira igreja, talvez o tradutor estivesse entusiasmado demais com o papismo ao escrever.
Provavelmente a Bíblia de edição católica que você utilizou foi a “Ave Maria”, traduzida do grego, aramaico e hebraico, por monges beneditinos de Maredsous (Bélgica). Ela foi depois traduzida do francês para o português o que faz dela uma tradução de tradução, afastando seu texto consideravelmente dos originais.
Mesmo assim, quando surgiu nos anos 50, ela foi um marco por colocar uma Bíblia acessível nas mãos dos católicos brasileiros, os quais até então só tinham oportunidade de ouvir a Palavra de Deus da boca dos padres na hora da missa ou recorrer a edições importadas, mais caras. Foi nessa época que o Vaticano começou a dar abertura para a Bíblia ser lida por leigos, algo até então desestimulado pelo clero.
Mas quando vi sua mensagem da primeira vez achei que você estivesse se referindo às diferenças de subtítulo no início de cada capítulo quando compara diferentes versões e edições. Nem toda Bíblia os tem, pois é algo acrescentado pela editora da Bíblia, seja ela católica ou protestante. Algumas edições protestantes também têm erros graves nesses subtítulos, mas em nenhum caso trata-se de texto bíblico, mas de acréscimo a critério da editora.
Quer um exemplo? Tenho uma Bíblia Almeida Revista e Corrigida que traz no capítulo 54 de Isaías o subtítulo: “O progresso e a glória da Igreja”. Isso é um equívoco, pois a Igreja era um mistério oculto em Deus que só seria fundada e revelada ao apóstolo Paulo mais de setecentos anos mais tarde. Algumas versões já corrigiram o subtítulo colocando “A glória de Sião” ou algo assim, pois tudo aí tem a ver com Israel, não com a Igreja.
Quando ler alguma edição impressa, não dê atenção a esses subtítulos (geralmente em negrito no início de cada capítulo) porque mais atrapalham do que ajudam. Entenda também que no original não existiam capítulos e nem versículos, coisas bastante recentes. A divisão do texto em capítulos surgiu no século 13 e em versículos na metade do século 16.
Alguns assuntos seriam melhor entendidos se lêssemos o texto corrido sem parar no fim do capítulo, como é o caso desta passagem cuja continuação e sentido estão no capítulo seguinte. Quando Jesus disse que alguns discípulos não passariam pela morte sem que vissem o Filho do Homem no seu reino, estava se referindo à transfiguração, que é uma visão de como o Senhor estará no reino futuro, uma espécie de fresta no tempo:
“Em verdade vos digo que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam vir o Filho do homem no seu reino. Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, seu irmão, e os conduziu em particular a um alto monte, e transfigurou-se diante deles; e o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes se tornaram brancas como a luz. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com ele. E Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: Senhor, bom é estarmos aqui; se queres, façamos aqui três tabernáculos, um para ti, um para Moisés, e um para Elias. E, estando ele ainda a falar, eis que uma nuvem luminosa os cobriu. E da nuvem saiu uma voz que dizia: Este é o meu amado Filho, em quem me comprazo; escutai-o. E os discípulos, ouvindo isto, caíram sobre os seus rostos, e tiveram grande medo. E, aproximando-se Jesus, tocou-lhes, e disse: Levantai-vos, e não tenhais medo. E, erguendo eles os olhos, ninguém viram senão unicamente a Jesus” (Mt 16:28-17 :1-8).