Abrão mentiu?
Você se refere ao capítulo 12 de Gênesis. Sim, Abrão mentiu. Quando foi tentar morar no Egito, para evitar que o matassem para ficar com sua bela esposa, combinou com Sarai para ela dizer que era sua irmã. Mas seu estratagema acabou sendo descoberto, e humilhado publicamente por seu pecado, Abrão foi deportado por Faraó. Vamos ao texto, observando que aqui Deus ainda não tinha mudado o nome de Abrão e Sarai para Abraão e Sara:
“E havia fome naquela terra; e desceu Abrão ao Egito, para peregrinar ali, porquanto a fome era grande na terra. E aconteceu que, chegando ele para entrar no Egito, disse a Sarai, sua mulher: Ora, bem sei que és mulher formosa à vista; e será que, quando os egípcios te virem, dirão: Esta é sua mulher. E matar-me-ão a mim, e a ti te guardarão em vida. Dize, peço-te, que és minha irmã, para que me vá bem por tua causa, e que viva a minha alma por amor de ti. E aconteceu que, entrando Abrão no Egito, viram os egípcios a mulher, que era mui formosa. E viram-na os príncipes de Faraó, e gabaram-na diante de Faraó; e foi a mulher tomada para a casa de Faraó. E fez bem a Abrão por amor dela; e ele teve ovelhas, vacas, jumentos, servos e servas, jumentas e camelos. Feriu, porém, o Senhor a Faraó e a sua casa, com grandes pragas, por causa de Sarai, mulher de Abrão. Então chamou Faraó a Abrão, e disse: Que é isto que me fizeste? Por que não me disseste que ela era tua mulher? Por que disseste: É minha irmã? Por isso a tomei por minha mulher; agora, pois, eis aqui tua mulher; toma-a e vai-te. E Faraó deu ordens aos seus homens a respeito dele; e acompanharam-no, a ele, e a sua mulher, e a tudo o que tinha” (Gn 12:10-20).
Mas a mentira não surgiu assim, do nada. É preciso entender como foi que Abrão foi parar no Egito, que é a história nos versículos que antecedem. Deus tinha chamado Abrão para que saísse de Ur e fosse para uma terra que Deus lhe mostraria só depois que desse o passo de fé para sair de onde estava, uma terra que lhe seria dada e à sua descendência. Abrão saiu por fé, caminhou por fé, e chegou à terra prometida por fé. No versículo 7 Deus revela que aquela mesma terra para onde tinha ido, sem que soubesse, é a mesma que lhe fora prometida. Abrão então constrói um altar e adora a Deus ali.
Até aí tudo bem. Mas então a jornada de fé termina e começa a jornada pela vista.
Como os cananeus ainda habitavam a terra, Abrão achou melhor continuar viagem e acabou seguindo em direção ao Neguebe, e era um período de fome (agora chamamos a isso “crise”). Ele não quis esperar Deus acertar as coisas, mas tomou uma decisão, segundo sua própria vontade, de ir morar no Egito. Mas para isso precisaria mentir para preservar sua mulher e sua própria vida. O resto da história é o que lemos há pouco, de como sua mulher foi tomada para fazer parte do harém do palácio de Faraó.
Esta é a ordem das coisas para nosso aprendizado. Deus nos chama para caminhar por fé e a dependermos dele por fé. Fazemos direitinho no começo de nossa conversão e aí se as coisas não saem exatamente como esperávamos; ou se achamos que Deus está demorando para nos valer, decidimos tomar as rédeas de nossa vida e é aí que entra areia na engrenagem. Isto porque quando decidimos dar um passo fora da vontade de Deus aquele passo exige outro passo, que exige outro passo... e quando percebemos estamos mais enrolados que novelo de tricô daqueles que você custa a encontrar a ponta.
O que aconteceu com Abrão depois de ter seu estratagema descoberto? Voltou do Egito para Betel, o lugar onde havia adorado a Deus, e ali volta a adorar a Deus. Não nos é dito que ele tenha feito isso no Egito, apesar de ter saído muito rico de lá graças aos favores alcançados de Faraó. Leia o capítulo 12 inteiro e depois o 13 de Gênesis para ter uma visão panorâmica de toda a história.
Em que ponto de sua jornada você está hoje? Você está onde Deus colocou você para poder adorar de consciência tranquila e livre de subterfúgios e enganação? Ou você está tentando a sorte no Egito, tendo para isso comprometido sua consciência e a Verdade a fim de conseguir alguns privilégios, riquezas e honra? Lembre-se da história de Abrão e lembre-se também da história de Isaque. Ora, o que Isaque tem a ver com isso? É que Abrão voltará a usar do mesmo estratagema no capítulo 20 de Gênesis quando vai morar em Gerar e o rei de lá, Abimeleque, sem saber, toma Sara para seu harém.
Um hábito pode acabar sendo transmitido de pai para filho, e foi isso que aconteceu com Abraão, que acaba sendo imitado por seu filho Isaque em circunstâncias semelhantes.
“E perguntando-lhe [a Isaque] os homens daquele lugar acerca de sua mulher, disse: É minha irmã; porque temia dizer: É minha mulher; para que porventura (dizia ele) não me matem os homens daquele lugar por amor de Rebeca; porque era formosa à vista. E aconteceu que, como ele esteve ali muito tempo, Abimeleque, rei dos filisteus, olhou por uma janela, e viu, e eis que Isaque estava brincando com Rebeca sua mulher. Então chamou Abimeleque a Isaque, e disse: Eis que na verdade é tua mulher; como, pois, disseste: É minha irmã? E disse-lhe Isaque: Porque eu dizia: Para que eu porventura não morra por causa dela. E disse Abimeleque: Que é isto que nos fizeste? Facilmente se teria deitado alguém deste povo com a tua mulher, e tu terias trazido sobre nós um delito. E mandou Abimeleque a todo o povo, dizendo: Qualquer que tocar neste homem ou em sua mulher, certamente morrerá” (Gn 26:7-11).
Na Bíblia encontramos ao menos duas outras vezes quando alguém usa de mentira para um determinado objetivo, mas são ocasiões onde o objetivo foi mais um ato de misericórdia do que a preservação da própria vida, como Abraão e Isaque pensaram estar fazendo, quando no final ficou demonstrado que Deus os protegia de qualquer jeito. Uma foi no caso das parteiras dos hebreus no Egito, que mentiram para Faraó visando salvar os meninos que Faraó ordenou que fossem mortos. Outra foi Raab, a prostituta, que mentiu para não revelar os espias israelenses que estavam escondidos em sua casa. Em ambos os casos o objetivo foi salvar vidas.
Em nenhum lugar Deus nos manda mentir ou permite a mentira, mas nestes dois casos o desejo de obedecer a Deus e salvar outras vidas foi maior que o de autopreservação, que foi a intenção no caso de Abraão e Isaque. Pense nos cristãos que esconderam judeus em suas casas durante a segunda guerra. O soldado entra na casa e pergunta: “Tem algum judeu escondido aqui?” O que seria um ato de compaixão, dizer ao soldado que sim sabendo que isso significaria a morte dos judeus, ou dizer que não na tentativa de salvá-los?
Existem situações em que é difícil determinar como agir. Por exemplo, conheci um homem que foi prisioneiro em um campo de concentração nazista na Segunda Guerra. Sua função era enterrar os judeus que eram fuzilados, mas às vezes ele precisava dar o golpe de misericórdia porque nem todos morriam dos tiros. Alguns ainda estavam vivos e, para não os enterrar vivos, ele batia com a pá na cabeça do moribundo até ter certeza de sua morte antes de enterrá-lo. Como você agiria?