Se não tenho o livre arbítrio como posso ser responsável por rejeitar?
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!” (Mt 23:37).
Você pergunta: “O que significa a referência acima da parte do Senhor Jesus: ‘tu não quiseste’? Mero jogo de palavras?”.
Não. Ela significa exatamente isso: eles não quiseram, a vontade deles era contrária à de Deus. A ideia do livre arbítrio está intimamente ligada à ideia de que não estamos completamente perdidos e arruinados, por isso poderíamos escolher fazer a vontade de Deus. Alguma parte de nós ainda poderia ter permanecido intacta. Essa ideia geralmente ocorre porque confundimos “pecado”, no singular, com “pecados”, no plural.
Se fizermos uma analogia ao nosso corpo físico, crer que somos pecadores porque temos “pecados” ou pensamentos e ações contrários à vontade divina ou independentes dela, é como olhar para o corpo humano que tem um tumor em algum órgão. Todavia, crer que somos pecadores porque temos em nós o pecado, o princípio ativo que nos faz pecar, é olhar o homem, não apenas com um tumor ou mesmo em um processo de metástase, quando o câncer invade todos os órgãos e já não há o que fazer, mas como já efetivamente morto. Não há o que fazer com um morto assim, nem mesmo aproveitar seus órgãos para transplante. Ele está todo arruinado.
Deus usa de todos os meios para convencer um pecador de seu estado arruinado e para salvá-lo, mas creio que isso seja uma forma de demonstrar sua completa impossibilidade de fazer qualquer coisa ou escolha (e inclua aí o livre arbítrio) que o leve a Deus. Veja que Deus não impede o homem de aceitar a Cristo como Salvador, mas apenas revela que ele não pode fazer isso de si mesmo, que a inclinação natural de sua carne é inimizade contra Deus. Caso contrário poderia haver no homem algo de bom que o fizesse inclinar-se em direção a Deus, mas aí as afirmações abaixo estariam equivocadas:
(Rm 3:10-12) “Como está escrito: Não há um justo, nem um sequer. Não há ninguém que entenda; Não há ninguém que busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há quem faça o bem, não há nem um só”.
(Rm 8:7) “Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser”.
Em sua maior parte, a cristandade hoje acredita que exista esperança para o homem, que ele possa ser restaurado à comunhão com Deus, e usa essa palavra “restaurar” não apenas como figura de linguagem, mas crendo efetivamente que a velha natureza possa ser reformada e se tornar aceitável a Deus, ou quem sabe até reformada por ele para esse fim. Isso é um engano. O que está morto está morto, é incapaz de desejar até mesmo vida.
Através da obra de Cristo, Deus condenou o pecado na carne, a velha natureza foi definitivamente descartada como algo irrecuperável. O velho homem estava morto, por isso foi necessária a obra de redenção por outro, a saber, Cristo, em quem não havia pecado, já que não havia no homem coisa alguma que pudesse ajudá-lo.
(Rm 8:3-8) “Porquanto o que era impossível à lei, visto como estava enferma pela carne, Deus, enviando o seu Filho em semelhança da carne do pecado, pelo pecado condenou o pecado na carne; Para que a justiça da lei se cumprisse em nós, que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito. Porque os que são segundo a carne inclinam-se para as coisas da carne; mas os que são segundo o Espírito para as coisas do Espírito. Porque a inclinação da carne é morte; mas a inclinação do Espírito é vida e paz. Porquanto a inclinação da carne é inimizade contra Deus, pois não é sujeita à lei de Deus, nem, em verdade, o pode ser. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus”.
Ao ser oferecida ao homem a escolha de crer, sua consciência irá revelar essa incapacidade, pois não há nele qualquer inclinação ou vontade nesse sentido.
O versículo que citou (Jo 3:16) efetivamente mostra que o amor de Deus está disponível para todos, e não podia ser diferente, porque Deus amou o mundo, deu o seu filho, e não tem prazer na morte do ímpio, e ainda quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Cristo é também o Cordeiro que tira o pecado do mundo, e a Palavra diz também que ele morreu “por todos”, quando levou sobre si o pecado de “muitos” (Is 53). Tudo isso para mostrar que a provisão de Deus é toda abrangente e o sacrifício de Cristo é infinito em seu poder de salvar.
Você pergunta: “Se de fato nós seres humanos não temos capacidade de atender ou rejeitar o evangelho, por que recai sobre nós a responsabilidade de o rejeitarmos se isso é tudo o que conseguimos fazer?”.
Na Palavra de Deus encontramos as duas coisas: a soberania de Deus em salvar quem ele quer e a responsabilidade do homem. E aí temos Deus, que quer salvar, e o homem, que não quer ser salvo. Mas por que Deus salva alguns e outros não, se são todos igualmente incapazes? Primeiro, é preciso entender que Deus não seria Deus se não fosse soberano. Quando um pecador questiona a soberania de Deus ele simplesmente revela ser um pecador, incapaz de entender seu estado de perdido e arruinado, já que acredita estar em condições de dizer se o que Deus faz está certo ou errado.
Não entender como pode a mesma Palavra falar de soberania, eleição e predestinação por um lado, e responsabilidade do homem por outro, é uma coisa. Mas deliberadamente questionar Deus é outra. Quando encontramos algo assim é melhor nos colocarmos humildemente na posição de quem não entende os desígnios de Deus, do que de contestá-los ou considerar Deus injusto. Soberania divina e responsabilidade humana andam juntas na Palavra de Deus, ambas estão lá. Podemos não conseguir explicar isso, mas não há como negar. O fato de sermos incapazes de explicar algo não invalida sua existência.
Em Apocalipse 22:17 diz: “e quem QUISER, tome de graça da água da vida”.
Como ninguém quer, então Deus decide fazer com que alguns queiram. Você se lembra da história que o Senhor contou?
(Lc 14:23) “Então o senhor disse ao servo: ‘Vá pelos caminhos e valados e obrigue-os a entrar, para que a minha casa fique cheia”.
Poderíamos dizer que aquele senhor foi injusto por ter obrigado esses a entrarem? Ou que foi injusto por ter permitido que outros não entrassem porque não queriam entrar? Nenhum dos que tinham escolha quiseram. Os pobres, aleijados, cegos e mancos estavam suficientemente conscientes de sua incapacidade para serem “obrigados” a entrar ou se deixarem levar. Eu posso até não concordar com o modo de Deus agir (falando como homem), mas não posso negar que seja isso o que encontramos na sua Palavra. Não cabe a nós tentar reconciliar a soberania de Deus (em eleger e predestinar) com a responsabilidade do homem (incapaz de querer ir a Deus). Nossa obrigação é simplesmente crer nas duas coisas, porque as duas estão bem ali, na Bíblia.
Mas, alguém poderia dizer, não se trata apenas de vontade para crer, mas de capacidade para isso. Como responsabilizar um incapaz?
Se alguém deve muito dinheiro a você e é incapaz de pagar, você não é injusto em processá-lo. Alguém poderia dizer: “Oh! Que injustiça! Será que não está vendo que o pobrezinho é incapaz de pagar?”. Veja que até na justiça dos homens não seria uma injustiça você processá-lo e não será uma injustiça o juiz condenar o devedor à prisão por ser incapaz de pagar. Vemos isso todos os dias nos tribunais.
Como questionar então quando Deus promete condenar aqueles incapazes de fazer a vontade dele? Pense também na possibilidade de serem dois os devedores e você decidir perdoar um e processar o outro. Não há injustiça alguma em seu modo de proceder, ao contrário, você, que devia processar os dois, foi misericordioso ao perdoar um deles e justo ao condenar o outro.
Veja a própria história de Israel? Não estava tudo bem determinado por Deus, quem ia ser o que e fazer o que em cada aspecto da história?
(Ml 1:2) “Eu sempre os amei, diz o Senhor. Mas vocês perguntam: ‘De que maneira nos amaste? .’Não era Esaú irmão de Jacó?, declara o Senhor. Todavia eu amei Jacó, mas rejeitei Esaú. Transformei suas montanhas em terra devastada e as terras de sua herança em morada de chacais do deserto”.
Aí está, isso é a soberania de Deus. Epa! Mas isso não se encaixa em nenhuma corrente ou pensamento teológico! E daí? A Palavra de Deus não é para se encaixar na teologia que os homens criam, a Palavra de Deus é para ser crida. Antes de me converter, questionava a Deus e sua forma de agir, até levar um “tabefe” dado pelos últimos capítulos de Jó, quando Deus coloca Jó no muro e passa a perguntar o quanto ele acha que sabe. Se prestar atenção, Jó nunca ficou sabendo a razão de Deus ter permitido tudo aquilo em sua vida (nós sabemos porque temos os dois primeiros capítulos do livro de Jó mas Jó mesmo não tinha). Mesmo assim ele creu e descansou em Deus.
Não somos chamados a crer naquilo que a teologia consegue explicar; somos chamados a crer na Palavra de Deus pelo que ela é. O Senhor nem sempre nos dará uma resposta às nossas perguntas. Ele responderá, sim, às nossas necessidades, mas há perguntas para as quais não teremos resposta aqui. Por exemplo:
(Lc 13:23-24) “Alguém lhe perguntou: Senhor, serão poucos os salvos? Ele lhes disse: Esforcem-se para entrar pela porta estreita, porque eu lhes digo que muitos tentarão entrar e não conseguirão”.
Percebe como o Senhor, ao mesmo tempo em que não responde diretamente à dúvida pergunta, responde à necessidade? Não somos chamados a entender, somos chamados a crer. Esqueça a teologia, livre-se dela. Deus não criou nenhuma escola de teologia ou corrente teológica. Calvinismo? Arminianismo? Qualquer outro ismo? Se perguntássemos a algum dos apóstolos se era calvinista ou arminianista, o que será que responderia? Eles tinham o suficiente para crerem e viverem como cristãos naquele tempo, e faziam isso muito bem sem Calvino ou Arminius. Nós também podemos muito bem ser assim.