Deus ama apenas os salvos?

Segundo você, Deus não ama a todos sem distinção, mas “Deus ama aquele que o obedece, aquele que cumpre os seus mandamentos, aquele que foi regenerado e lavado no sangue do seu Filho amado, os eleitos, pelo qual morreu e se entregou para que fossem salvos.”

A verdade é que Deus ama a todos sim, e o famoso versículo em João 3:16 afirma isto: “Deus amou o mundo”. “Mundo” aí é “Kosmos” no grego e significa a totalidade, não uma porção (até hoje falamos em algo “cósmico” como todo abrangente). Lembre-se de que “Deus nos amou... Estando nós ainda mortos em nossas ofensas” (Ef 2:4), ou seja, quando não havia nada de obediência em nós.

O amor de Deus não é um ato de reciprocidade, que esteja condicionado à nossa condição de sermos eleitos ou obedientes aos seus mandamentos, mas algo que independe do homem. (1 João 4:10) “Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou a nós, e enviou seu Filho para propiciação pelos nossos pecados”. O amor de Deus por mim é anterior até mesmo à minha existência.

O jovem rico foi amado por Jesus mesmo tendo desprezado seu convite. (Mc 10:21) “E Jesus, olhando para ele, o amou e lhe disse: Falta-te uma coisa: vai, vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu; e vem, toma a cruz, e segue-me. Mas ele, pesaroso desta palavra, retirou-se triste; porque possuía muitas propriedades”.

Talvez você alegue que existem versículos que mostram que Deus odeia esta ou aquela pessoa. É verdade, mas é preciso entender em que circunstâncias essas passagens aparecem. Um exemplo está em (Sl 26:5): “Odeio o ajuntamento de malfeitores; não me sentarei com os ímpios”. Está correto e em conformidade com o caráter de Deus, que é de separação do mal. Ele os odeia em sua qualidade de malfeitores, por isso Cristo morreu para levar para a casa do Pai malfeitores e ímpios lavados por seu sangue. Deus agora pode ter comunhão no “ajuntamento” dos salvos, pois são ex-malfeitores e ex-ímpios. Mas, se não nos amasse quando ainda estávamos nessa condição, não teria perdido seu tempo e nem o sangue de seu Filho por nós.

No Salmo 139:21-22 o salmista parece indicar que o ódio contra determinadas pessoas é aprovado por Deus: “Não odeio eu, ó Senhor, aqueles que te odeiam, e não me aflijo por causa dos que se levantam contra ti? Odeio-os com ódio perfeito; tenho-os por inimigos”. Malaquias 1:3 também confirmam isso: “Eu vos tenho amado, diz o Senhor. Mas vós dizeis: Em que nos tem amado? Não era Esaú irmão de Jacó? disse o Senhor; todavia amei a Jacó, E odiei a Esaú”.

Romanos 9, porém, nos dá um entendimento melhor das circunstâncias e do significado da palavra “odiei”: “Como está escrito: Amei a Jacó, e odiei a Esaú. Que diremos pois? que há injustiça da parte de Deus? De maneira nenhuma. Pois diz a Moisés: Compadecer-me-ei de quem me compadecer, e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece”. Creio que o assunto é muito mais no sentido da compaixão do que do amor que Deus tem por suas criaturas.

Quando o presidente de um país onde existe a pena de morte decide conceder o perdão a um condenado no corredor da morte, isso não significa que goste mais daquele condenado do que dos outros, e nem que, ao deixar que os outros morram, ele esteja sendo injusto. Não, o que ocorre é que ele decidiu ter misericórdia daquele e sua atitude é louvável, já que TODOS estavam condenados e não mereciam perdão.

Então é preciso entender que Deus, pela santidade de sua natureza, precisa odiar o pecador no seu caráter de pecador. Mas, também por ser Deus, ele ama o pecador no seu caráter de ser humano, já que não existe diferença por todos terem pecado e serem igualmente réus merecedores do juízo.

Para entender melhor, vamos voltar a Romanos 9:21-24: “Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer (1) um vaso para honra e outro para desonra? E que direis se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados (2) para a perdição; Para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que para glória já dantes preparou, (3) Os quais somos nós, a quem também chamou, não só dentre os judeus, mas também dentre os gentios?”.

​(1) gr. poieo “fazer” / (2) gr. katartizo “preparar” ou “ajustar” / (3) gr. proetoimazo “encomendar” ou “preparar antecipadamente”.

Repare bem no que diz: todos os vasos são feitos (1) da mesma massa. Mas os vasos da ira estão preparados (2) para a perdição, mas não diz que tenha sido Deus que os preparou para tal. Eles estão preparados para perdição como todo ser humano que nasce neste mundo, porque nasce pecador e condenável. Mas quando fala dos vasos de misericórdia, aí sim, diz que Deus já dantes os preparou. (3) Igualmente, os condenados do corredor da morte estão preparados para morrer, mas o presidente decide preparar um para viver.

O Antigo Testamento nos ajuda a entender um pouco mais essa questão do caráter de santidade de Deus. Lá qualquer pessoa portadora de defeitos físicos era vedada de participar do culto no santuário:

Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a oferecer o pão do seu Deus:

(Lv 21:18-23) “Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membros demasiadamente compridos, Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada, Ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna, ou impigem, ou que tiver testículo mutilado. Nenhum homem da descendência de Arão, o sacerdote, em quem houver alguma deformidade, se chegará para oferecer as ofertas queimadas do Senhor; defeito nele há; não se chegará para oferecer o pão do seu Deus. Ele comerá do pão do seu Deus, tanto do santíssimo como do santo. Porém até ao véu não entrará, nem se chegará ao altar, porquanto defeito há nele, para que não profane os meus santuários; porque eu sou o Senhor que os santifico”.

Qualquer humanista hoje sentiria arrepios e consideraria essa medida discriminatória, e com razão. Acontece que para entendermos o Antigo Testamento é preciso entender o Novo Testamento. Na Lei Deus revela sua santidade e total aversão ao que é imperfeito, e assim deve ser. Até mesmo o Rei Davi odiava os coxos e a aleijados: “Porque Davi disse naquele dia: Qualquer que ferir aos jebuseus, suba ao canal e fira aos coxos e aos cegos, a quem a alma de Davi odeia. Por isso se diz: Nem cego nem coxo entrará nesta casa”. (2 Sm 5:8).

Todavia, o que vemos no mesmo livro de Samuel? Mefibosete, um coxo, desfrutando de lugar cativo na mesa do Rei, com seus pés coxos ocultos sob a mesa pela mesma graça que é capaz de lançar nossos pecados no esquecimento graças à obra de Cristo na cruz:

(2 Sm 9:6-13) “E Mefibosete, filho de Jônatas, o filho de Saul, veio a Davi, e se prostrou com o rosto por terra e inclinou-se; e disse Davi: Mefibosete! E ele disse: Eis aqui teu servo. E disse-lhe Davi: Não temas, porque decerto usarei contigo de benevolência por amor de Jônatas, teu pai, e te restituirei todas as terras de Saul, teu pai, e tu sempre comerás pão à minha mesa. Então se inclinou, e disse: Quem é teu servo, para teres olhado para um cão morto tal como eu?... Morava, pois, Mefibosete em Jerusalém, porquanto sempre comia à mesa do rei, e era coxo de ambos os pés.”

Foi a graça que proporcionou que Cristo morresse por todos, e não apenas pelos salvos. Se não fosse assim tão ampla a eficácia de seu sacrifício, ele não poderia tirar o pecado do mundo “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. Todavia sabemos que, apesar de seu sacrifício ser suficiente para salvar a todos, ele levou sobre si “apenas” os pecados de muitos, e não de todos. (Tirar o “pecado” do mundo, no singular, e levar “os pecados”, no plural, são diferentes aspectos de sua obra).

(2 Co 5:15) “E ele morreu por todos”.

(Hb 9:28) “Assim também Cristo, oferecendo-se uma vez para tirar os pecados de muitos”.

(Is 53:11) “...mas ele levou sobre si o pecado de muitos”.

Quando examinadas pela ótica da graça, até mesmo as afirmações do Atos precisam ser entendidas. Veja o que Jesus disse: (Mt 5:43-48) “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus... Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”.

Perceba que ser perfeito como o Pai é perfeito inclui amarmos nossos inimigos como Deus ama os inimigos dele. Depois de uma ordem assim dada por Jesus, se acharmos que Deus só ama os que fazem o bem ou os que foram eleitos por ele, estaremos considerando que podemos ser mais do que Deus neste aspecto, pois de nós é esperado que amemos a todos, sem distinção.