Somos o testemunho?
Não gosto muito da ideia de dizer coisas do tipo “somos o testemunho”, “o testemunho está conosco” ou “temos o testemunho”, como se fosse algo que dependesse da vontade do homem ou pudesse ser conquistado. Quando Deus olhava para Israel, depois de sua desobediência, ele via o remanescente que era o seu testemunho no mundo. (Rm 9:27) “Também Isaías clama acerca de Israel: Ainda que o número dos filhos de Israel seja como a areia do mar, o remanescente é que será salvo”.
Nas 7 cartas de Apocalipse, sabemos, Filadélfia nunca fala de si mesma coisa alguma, mas é o Senhor quem dá testemunho de que ela guardou a Palavra e não negou o seu nome. O melhor mesmo é humildemente buscarmos atender ao chamado do Senhor para nos apartarmos do mal e estarmos congregados ao seu nome, sem ficarmos nos preocupando se somos ou não somos alguma coisa. Já Laodiceia fala de si mesma como se fosse alguma coisa, mas a resposta que tem é que sua atitude causa náuseas no Senhor. Daí o cuidado que é preciso ter para não “se declarar” algo, porque aquele que diz ser alguma coisa aos seus próprios olhos geralmente não o é aos olhos de Deus.
Quando o Senhor disse aos discípulos para irem preparar a ceia, eles perguntaram: “Senhor, onde queres que a preparemos?”. Receberam do Senhor instruções específicas e a única evidência que tiveram de que tinham ido ao lugar certo foi o Senhor colocar-se no meio deles. Hoje não vemos o Senhor com nossos olhos em nosso meio, mas eu creio que ele está bem ali. Minha responsabilidade é fazer a sua vontade segundo as Escrituras e me deixar guiar pelo Espírito, e não me preocupar se sou ou não sou o testemunho. Ele vai dizer. Se eu me ocupar com “o testemunho” minha ocupação não estará sendo com o Senhor, mas comigo mesmo e com meus irmãos. Darby escreveu uma carta sobre o assunto, pois no século 19 alguns já estavam se orgulhando de “ter o testemunho”.
Acho que podemos entender melhor o assunto quando pensamos na reforma protestante. Não foi Lutero apenas quem trouxe à tona a justificação pela fé, uma verdade preciosa que estava enterrada debaixo de séculos de romanismo. Deus estava movendo outros em outros lugares no mesmo sentido, porém Lutero era uma figura proeminente e hoje parece que tudo estava concentrado nele. Não estava. Além disso, nos 1600 anos antes da reforma protestante as pessoas foram justificadas pela fé, mesmo sem saberem como colocar isso em palavras como Lutero e outros colocaram. Portanto Deus naquele momento estava restaurando uma verdade, porém essa verdade nunca tinha deixado de existir ou ser praticada até aquele momento; só que as pessoas não sabiam exatamente verbalizar aquilo.
No século 19 ocorreu algo semelhante, quando Deus restaurou certas verdades que estavam sob o entulho do romanismo há séculos, e a principal delas era a verdade da igreja, a doutrina dada a Paulo, que inclui também a verdade de que Israel e Igreja são povos distintos com promessas e destinos distintos. No “pacote” estava também a verdade da vinda do Senhor no arrebatamento, que já havia sido cogitada por um monge católico e por outros muitos anos antes.
Se Deus usou não apenas Lutero, mas também outros para resgatarem a verdade da justificação pela fé, não foi apenas Darby e alguns poucos irmãos mais versados nas Escrituras que enxergaram a verdade concernente à Igreja. Deus realmente usou aqueles homens de maneira extraordinária, mas muito da projeção que tiveram foi pelo fato de fazerem parte de uma elite na Grã Bretanha. A maior parte do que você encontra na Internet sobre Darby foi escrita por incrédulos, irmãos denominacionais ou irmãos abertos (uma divisão ocorrida em 1848 entre os irmãos congregados ao nome do Senhor). Por isso existe tanta ênfase em querer mostrá-lo como líder de um movimento e dizer que ele mandava e os seus seguidores obedeciam. Quem pensa assim nunca soube que o próprio Darby aprendeu sobre o lugar de reunião com outro irmão antes dele e que estava cercado de outros irmãos que tinham tanta ou mais bagagem bíblica do que ele. Um deles, William Kelly, que começou a congregar alguns anos mais tarde, era uma figura proeminente nos meios acadêmicos de então, e seu contemporâneo e conhecido pregador Spurgeon o criticava assim:
“[William Kelly] escritor eminente da escola exclusivista de Plymouth (...) expõe habilmente as escrituras, mas com um toque peculiar do seu partido teológico. (...). Kelly é um homem que, nascido para o universo, estreitou sua mente para um movimento”. Charles Haddon Spurgeon.
Quando você lê cartas de Darby e outros irmãos da época é interessante ver eles relatando que chegavam em uma determinada localidade e descobriam que ali havia uma assembleia partindo o pão nos mesmos princípios que eles. Não se tratava de uma divisão ou dissidência, apenas de irmãos que não se conheciam entre si. Deus estava movendo simultaneamente muitos no mesmo sentido e não se pode dizer que este ou aquele grupo tinha a exclusividade daquilo, pois Deus estava fazendo a obra, não homens.
A mesa do Senhor nunca deixou de existir, embora nem sempre tenhamos registros precisos durante os tempos de trevas em que a cristandade mergulhou sob o papado. Mas mesmo daquela época é possível aprender que havia irmãos que caminhavam numa senda marginal à de Roma e eram perseguidos e martirizados por isso. Eu visitei uma pequena cidade fortificada cujos habitantes cristãos foram dizimados pelos exércitos do Papa por não se sujeitarem à igreja de Roma.
Quem leu livros sobre os tempos da Reforma Protestante descobre que havia pessoas professando a justificação pela fé até dentro de conventos e mosteiros. Entenda que quando ocorre um movimento assim de restauração ou reavivamento, trata-se de um processo. Ao ler a literatura dos irmãos do século 19 você percebe isto, pois em textos mais antigos eles diziam uma coisa e nos mais recentes passaram a dizer outra. Não que tenham mudado de ideia, mas simplesmente porque enxergaram coisas que não tinham enxergado antes.
Sugiro a leitura do livro “Os irmãos”, escrito por Andrew Miller que ainda teve a oportunidade de viver parte daquele momento, embora fosse ainda criança quando os irmãos Darby e outros partiram o pão pela primeira vez juntos (Andrew Miller se juntaria a eles anos depois). Ele é autor de outro livro que também existe em português, “História da igreja”. E ambos podem ser encontrados para comprar na Web.
Mas tudo o que escrevi aqui obviamente não se aplica a divisões e dissidências. Hoje você encontra muitos grupos de irmãos reunidos sem denominação e dizendo ser alguma coisa. É importante nestes casos verificar a origem de cada um, pois em grande parte dos casos você descobrirá tratar-se de alguma divisão ou dissidência ocorrida no passado, ou seja, um grupo que se originou a partir de pecado ou da insubordinação à autoridade do Senhor dada à assembleia.