Existe diferença entre os dons?
Sim, existem duas classes de dons: os dons do Espírito (1 Co 12) e os dons de Cristo (Ef 4). Os dons do Espírito descritos em 1 Coríntios 12 são capacitações temporárias dadas pelo Espírito Santo aos diferentes membros do corpo de Cristo, que é a Igreja. Os dons de Cristo de Efésios 4 são permanentes e incorporados aos que os recebem. Existe até uma sobreposição do que seja o dom e do que seja a pessoa, pois “ele mesmo deu uns [as pessoas] para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores”.
Sejam os dons do Espírito, sejam os dons de Cristo, eles são dados para a edificação dos membros do corpo. Vale lembrar que na Bíblia não existe a expressão “membros da igreja”, mas apenas “membros do corpo”. Isto porque Deus não faz distinção entre “igreja A” e “igreja B” porque foi o homem o autor dessa confusão de nomes existente hoje. Aos olhos de Deus todos os verdadeiros salvos são membros de um mesmo e único corpo, o corpo de Cristo.
É preciso fazer uma ressalva aqui: dons não são capacidades naturais. Portanto uma pessoa que tenha uma bela voz ou seja eloquente em seus discursos não quer dizer que tenha recebido algum dom. Incrédulos também têm boa voz e políticos são eloquentes. Uma pessoa poderá usar essas capacidades naturais no exercício de seu dom, mas sua capacidade será apenas o meio e não a fonte.
Voltando às diferenças entre os dons, em 1 Co 12 você encontra diferentes dons sendo distribuídos pelo Espírito Santo entre os diferentes membros do corpo, e isto segundo a vontade do Espírito e não de homens:
(1 Co 12:11) “Mas um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, repartindo particularmente a cada um como [o Espírito] quer”.
Os dons de 1 Coríntios 12 não estão ligados à pessoa que os recebe, pois são como ferramentas distribuídas a trabalhadores para exercerem seus diferentes ofícios. A pessoa não é detentora do dom e nem tem poder para escolher quando e como receberá o dom, embora ela possa privar-se de usá-lo ou fazê-lo de modo errado. O versículo “procurai com zelo os melhores dons” (1 Co 12:31) está mais no sentido de buscar aproveitar os melhores dons que são dados à igreja do que de escolher em um cardápio o melhor dom para mim mesmo. Por exemplo, no capítulo 14 o apóstolo faz uma comparação entre o dom de línguas e o dom de profecia e conclui que o dom de profecia é muito superior ao de línguas, porque a profecia edifica a igreja e as línguas no máximo aquele que fala. Então, se alguém pretende se ocupar com algum dom deve procurar aquele que traz maior edificação ao corpo de Cristo.
Ao contrário dos dons de Cristo de Efésios 4, que são incorporados nos que os recebem, os dons do Espírito são transitórios. Não existem pessoas que tenham o dom de curar ou de expulsar demônios como algo definitivo, mas o dom é eventualmente dado a alguém para uma função específica. Por exemplo, em Atos 19 vemos o Espírito Santo manifestando o poder de Deus através do apóstolo Paulo de maneira marcante e com o objetivo de mostrar suas credenciais como apóstolo dos gentios. Ali ele exercia os dons de curar e de expulsar demônios que lhe foram dados pelo Espírito Santo.
(Atos 19:11-12) “E Deus pelas mãos de Paulo fazia maravilhas extraordinárias. De sorte que até os lenços e aventais se levavam do seu corpo aos enfermos, e as enfermidades fugiam deles, e os espíritos malignos saíam”.
Quem ler esta passagem isoladamente pode achar que Paulo tinha o dom de curar e expulsar demônios permanentemente e podia fazer uso destes dons sempre que quisesse, mas não era assim. De outras passagens lemos que Paulo não foi capaz de curar Trófimo e Timóteo, porque o dom não lhe foi dado nessas ocasiões, e no episódio da jovem possessa de um espírito imundo ele foi obrigado a ficar muitos dias suportando aquilo até que o Espírito Santo o capacitasse a expulsar o espírito da jovem.
(2Tm 4:20) “...deixei Trófimo doente em Mileto”.
(1Tm 5:23) “Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades”.
(Atos 16:16-18) “E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo. E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E na mesma hora saiu”.
O exercício destes dons não tem nada a ver com aquelas cenas de histeria que são vistas em alguns grupos cristãos, com pessoas fora de si e alegando que aquilo é o Espírito Santo. Não é, porque “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (1 Co 14:32), ou seja, ninguém fica fora de si ao exercer o dom que lhe foi dado, mas mantém-se no total controle de seu corpo e mente. Qualquer coisa diferente disto ou é ataque histérico, ou possessão demoníaca. Paulo escreve: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Rm 12:1). Ou seja, um culto racional é algo feito dentro do perfeito domínio da razão.
Embora os dons sejam diversos, o seu uso está sujeito à Trindade, ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, como é demonstrado nos próximos versículos.
(1 Co 12:4) “Ora, há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo”.
(1 Co 12:5) “E há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo”.
(1 Co 12:6) “E há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos”.
Isto significa que o poder ou capacitação para o exercício do dom vem do Espírito, e não de alguma junta de homens, líder religioso ou faculdade teológica. A ministração destes dons está sujeita ao senhorio de Cristo, pois tudo deve ser feito sob a direção dele. Finalmente, a operação do dom, ou seja, o resultado, vem de Deus, que é quem faz tudo em todos. Se um dom não vier do Espírito, não for ministrado sob o senhorio de Cristo e não tiver um resultado operado por Deus, não é um dom do Espírito. É importante lembrar do que diz Mateus em seu evangelho, que na linguagem popular tem o teor do alerta do tipo “não compre gato por lebre”:
(Mt 7:22-23) “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? E em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniquidade”.
Outra coisa importantíssima é que a manifestação do Espírito é dada com um objetivo utilitário, ou seja, não é mera exibição de poder ou algo como um número de mágico de circo. Também não tem nada a ver com as piruetas e malabarismos que são vistos em alguns grupos de cristãos rodopiando e jogando-se ao chão. Não precisa ser nenhum Einstein para ver que aquilo não procede de Deus. Basta a inteligência de um cérebro do tamanho de um amendoim para perguntar: “Que utilidade tem isso?”.
(1 Co 12:7-10) “Mas a manifestação do Espírito é dada a cada um, para o que for útil. Porque a um pelo Espírito é dada a palavra da sabedoria; e a outro, pelo mesmo Espírito, a palavra da ciência; E a outro, pelo mesmo Espírito, a fé; e a outro, pelo mesmo Espírito, os dons de curar; E a outro a operação de maravilhas; e a outro a profecia; e a outro o dom de discernir os espíritos; e a outro a variedade de línguas; e a outro a interpretação das línguas”.
A outra classe de dons você encontra em Efésios 4 e são os dons de Cristo (e não dons do Espírito como em 1 Coríntios 12). Os dons de Efésios 4 são incorporados àqueles que os recebem, ou seja, se em 1 Coríntios 12 os dons são dados às pessoas de forma temporária, em Efésios 4 as pessoas são incorporadas com estes dons, quer elas os pratiquem, quer não.
Outra diferença é que estes dons, ao invés de serem apenas para funções específicas e localizadas, são universais. Os que receberam o dom de apóstolo ou profeta eram apóstolos e profetas onde quer que estivessem, e não apenas em uma assembleia local. O mesmo para evangelistas, pastores e doutores (ou mestres).
(Ef 4:8-12) “Por isso diz: Subindo ao alto, levou cativo o cativeiro, E [Cristo]deu dons aos homens... E ele [Cristo] mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, Querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo;”.
Você terá de passar uma borracha no que aprendeu nas faculdades de teologia se quiser entender a passagem de Efésios 4, e não é preciso ser muito espiritual para entender que é Cristo, e não alguma junta de homens ou faculdade de teologia, que dá dons aos homens.
Esqueça aquela ideia de que evangelista é alguém enviado por uma junta de missões para pregar. O evangelista é enviado pelo Senhor aonde o Senhor quiser que ele vá e seja necessário seu trabalho de apresentar as boas novas de salvação. O único homem na Bíblia chamado de “evangelista” é Filipe (Atos 21:8), portanto ele é um bom exemplo de como são enviados os evangelistas:
(Atos 8:26-final) “E o anjo do Senhor falou a Filipe, dizendo: Levanta-te, e vai para o lado do sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza, que está deserta. E levantou-se, e foi; e eis que um homem etíope, eunuco, mordomo-mor de Candace, rainha dos etíopes, o qual era superintendente de todos os seus tesouros, e tinha ido a Jerusalém para adoração...”.
Esqueça também a ideia de que “pastor” é um homem que fica à frente de uma congregação dirigindo o culto. Não existe tal ideia nas Escrituras (se não acredita, pode procurar). O pastor é um dom dado por Cristo à igreja como um todo (e não a uma assembleia em particular) e seu papel é cuidar do rebanho no sentido de suprir suas necessidades, curar suas feridas, encorajar as ovelhas, etc. Ele visita, consola, restaura e não há exemplo melhor para ele seguir do que o do verdadeiro Pastor das ovelhas, Cristo.
Antes que você alegue que há várias passagens que falam de se sujeitar aos pastores da assembleia é preciso lembrar que são passagens que falam de anciãos ou presbíteros (ou bispos), sempre no plural, que não são dons, mas ofícios administrativos de cuidar localmente do rebanho (por isso é absurda a ideia de um bispo regional, nacional ou mundial).
Mas, embora os bispos, presbíteros ou anciãos (depende do lugar é usada uma palavra no original, mas todas para a mesma função) tenham esse cuidado local do rebanho, eles não dirigem as reuniões da assembleia e você poderá conferir isto na descrição de uma reunião em 1 Coríntios 14:26 em diante, que começa com “Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais...”. Em outras palavras ele está dizendo como fazer quando reunidos e aí você não encontrará ninguém além do Espírito a dirigir a reunião.
O quinto dom, de mestre ou doutor, é também um dom dado por Cristo, não por alguma faculdade de teologia. Ele aprende da palavra e de outros dons e ensina, seja em particular, seja em assembleia. Vale lembrar que os dois primeiros dons desta lista já não existem: apóstolos e profetas. Eles tiveram o importantíssimo papel de lançar os fundamentos da igreja por meio de seu trabalho ao vivo e da continuidade dele por seus escritos. Ninguém em sã consciência colocaria material de alicerce na construção da parede, pois são de naturezas diferentes, e assim é na casa de Deus. Os dons que restam hoje são evangelistas, pastores e mestres.
(Ef 2:19-22) “Assim que já não sois estrangeiros, nem forasteiros, mas concidadãos dos santos, e da família de Deus; Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina; No qual todo o edifício, bem ajustado, cresce para templo santo no Senhor. No qual também vós juntamente sois edificados para morada de Deus em Espírito”.
Resumindo, o Senhor é a pedra angular ou de esquina e os apóstolos e profetas formam o alicerce. Sobre o alicerce (Cristo e a doutrina dos apóstolos e profetas) a igreja vai sendo edificada como morada de Deus. Mas só permanecerá aquilo que for edificado sobre o alicerce ou fundamento, ou seja, aquilo que estiver em conformidade com a doutrina dos apóstolos. Qualquer coisa edificada fora disso cairá, como acontece com qualquer construção onde um pedreiro decide assentar os tijolos sobre a terra fofa, e não sobre o alicerce sólido, porque acha que vai ficar melhor do seu jeito.
Infelizmente é o que está sendo feito por muitos homens hoje na cristandade, fazendo cada um aquilo que lhe apraz. É este o espírito da cristandade atual, mostrada profeticamente em Apocalipse como o período de Laodiceia, palavra que significa “juízo feito pelo povo”, ou seja, uma época quando é o homem quem decide o que é bom ou não, independente do que diz a Palavra de Deus.