O cálice da ceia deve ser apenas um?

Os símbolos usados na ceia são o pão e o cálice com vinho, e isto é muito claro nas várias passagens em que são mencionados, começando pelos evangelhos, quando o Senhor instituiu a ceia antes de ser levado à morte. Embora tenha sido instituída ali, aquela não é a ceia que os cristãos celebram, pois ali Jesus estava vivo e a igreja não tinha ainda sido formada. A ceia que celebramos é a que foi revelada pessoalmente por Cristo ressuscitado a Paulo (que não fazia parte de seus discípulos nos evangelhos) e que ele descreve em 1 Coríntios 11. Todavia, ambas trazem o mesmo significado e os mesmos elementos, pão e vinho, que são como fotografias do corpo e do sangue de Jesus.

(Mt 26:26-28) “E, quando comiam, Jesus tomou o pão, e abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; Porque isto é o meu sangue; o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados”.

(1 Co 11:23-26) “Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; E, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha”.

Em ambas as passagens vemos que a ceia foi celebrada com um único pão e um único cálice. O primeiro tem um duplo significado: primeiro, simboliza o corpo morto de Cristo no sacrifício realizado há dois mil anos na cruz. Nossos pecados foram colocados sobre o corpo de Jesus e ali ele foi feito pecado por nós. Aquele sacrifício foi único, não se repete, e seu valor e efeitos são eternos. Um pão partido nos fala de morte (“o meu corpo que é partido por vós”). O pão também é um símbolo do corpo de Cristo, a Igreja, composto por todos os salvos, mas este é um significado mais associado à mesa do Senhor do que com a ceia do Senhor.

O segundo símbolo é o cálice de vinho, o qual representa o sangue de Cristo e também é uma figura da morte de Cristo, pois na cruz o sangue foi separado do corpo, assim como na ceia o vinho está separado do pão. Se o pão tem a conotação de unidade, e por isso a doutrina dos apóstolos é clara em apontar a obrigatoriedade do uso de um só pão, o vinho não tem o mesmo sentido, tanto é que ele é líquido e só permanece “unido” se estiver em um recipiente. O cálice de vinho nos fala de comunhão, de algo que é tomado em comum por aqueles que também têm em comum a salvação, e isto aprendemos da passagem em 1 Coríntios 10, onde o assunto é a “mesa do Senhor”, enquanto a passagem do capítulo 11 mencionada acima trata da “ceia do Senhor”.

Que existe uma “mesa do Senhor”, tanto quanto uma “ceia do Senhor”, fica evidente em 1 Coríntios 10:21: “Não podeis beber o cálice do Senhor e o cálice dos demônios; não podeis ser participantes da mesa do Senhor e da mesa dos demônios”. Aqui ela é mencionada em contraste com a “mesa dos demônios”, uma mesa estabelecida para os ídolos pagãos (por detrás dos quais há sempre um demônio), como ele explica:

(1 Co 10:19-20) “Mas que digo? Que o ídolo é alguma coisa? Ou que o sacrificado ao ídolo é alguma coisa? Antes digo que as coisas que os gentios sacrificam, as sacrificam aos demônios, e não a Deus. E não quero que sejais participantes com os demônios”.

Existe também a possibilidade de uma mesa não ser nem do Senhor, nem dos demônios, mas de Israel, e é bom sempre lembrar que “mesa” tem o sentido de lugar de comunhão, de compartilhamento e também de apresentar nossa adoração a Deus. Paulo fala de Israel e menciona a sua comunhão:

(Rm 11:7-10) “Pois quê? O que Israel buscava não o alcançou; mas os eleitos o alcançaram, e os outros foram endurecidos. Como está escrito: Deus lhes deu espírito de profundo sono, olhos para não verem, e ouvidos para não ouvirem, até ao dia de hoje. E Davi diz: Torne-se-lhes a sua mesa em laço, e em armadilha, E em tropeço, por sua retribuição; Escureçam-se-lhes os olhos para não verem, E encurvem-se-lhes continuamente as costas”.

Mas o que dizer de uma mesa ou comunhão estabelecida na cristandade, porém fora dos princípios bíblicos? Seria a mesa do Senhor? Não, seria apenas uma mesa de homens. Eles, apesar de serem cristãos, estabelecem suas mesas, comunhões ou lugares de adoração sem que estejam fundamentadas na Palavra de Deus e nem reconheçam a unidade e interdependência existente no corpo de Cristo. O mais sério disso tudo está no fato de poderem também ser mesas onde a impureza, o pecado e a contaminação sejam admitidas por não existir um julgamento na recepção das pessoas à comunhão.

Se somos criteriosos ao convidarmos alguém para comer à mesa de nossa casa, quanto maior deveria ser nosso cuidado em receber alguém à mesa do Senhor, cuja responsabilidade de administrar foi dada aos cristãos. Uma analogia de como Deus enxerga o pecado associado a uma mesa pode ser visto nas palavras que fala aos “bêbados de Efraim”: (Is 28:8) “Porque todas as suas mesas estão cheias de vômitos e imundícia, e não há lugar limpo”.

Portanto, antes de entrarmos no tema de sua pergunta, que tem a ver com a preocupação da contaminação e contágio por micróbios, quis dar esta introdução para apontar que o maior contágio com que os cristãos deveriam se preocupar é o contágio do pecado à mesa. 1 Coríntios 5 dá um exemplo claro de que todo pecado deve ser tirado da comunhão daqueles que estão congregados, e é isto que significa a palavra “excomunhão”. Uma pessoa que está em pecado não pode participar da ceia do Senhor pois isto contaminaria “toda a massa”, como diz o mesmo capítulo.

Aos olhos de Deus, uma pessoa que se diz cristã, porém vive na prática de pecado é pior e o contato com ela mais contagioso do que com um incrédulo que está sabidamente no mundo.

(1 Co 5:6-13) “Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa? ... Por isso façamos a festa, não com o fermento velho, nem com o fermento da maldade e da malícia, mas com os ázimos da sinceridade e da verdade. Já por carta vos tenho escrito, que não vos associeis com os que se prostituem; Isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do mundo. Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que, dizendo-se irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com o tal nem ainda comais.... Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo”

Lembrando agora que o pão simboliza o corpo de Cristo e o vinho o sangue, vamos à sua dúvida que é se existe a necessidade de se utilizar apenas um cálice na ceia do Senhor, o qual é compartilhado por todos os presentes, ou poderiam ser utilizados cálices ou copinhos individuais. Vamos à passagem que pode nos ajudar nisto:

(1 Co 10:16-17) “Porventura o cálice de bênção, que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que partimos não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Porque nós, sendo muitos, somos um só pão e um só corpo, porque todos participamos do mesmo pão”.

(1 Co 11:26) “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha”.

Repare que a ordem se inverte do capítulo 10 para o 11. Como já mencionei, o capítulo 10 fala da “mesa do Senhor” que é o lugar de comunhão, e para estar nesse lugar é preciso antes ter sido salvo. Por isso o vinho, símbolo do sangue, vem antes como também acontece em nossa salvação, e o pão, símbolo do corpo, vem depois, quando somos acrescentados por Cristo ao seu corpo. Vinho primeiro (o “sangue” para sermos purificados de nossos pecados) e pão (o “corpo de Cristo”, do qual passamos a fazer parte). No capítulo 11 temos a “ceia do Senhor” e o pão vem primeiro porque ali é uma celebração reservada aos que já foram salvos e agora pertencem ao corpo de Cristo, e o vinho vem depois.

Repare também que em 1 Coríntios 10:17 acima não diz que “participamos do mesmo pão e do mesmo cálice” porque o pão é símbolo do corpo, mas o cálice não. Este é símbolo de comunhão, de compartilhamento, portanto não existe a mesma necessidade de ser apenas um. Mas também não existe a possibilidade de serem individuais, porque ninguém pode dizer que está expressando comunhão ou comunicação se faz algo sozinho e para si apenas.

Por esta razão na ceia do Senhor o princípio que encontramos na Bíblia é do uso de um cálice, ou de dois, três, quatro, etc., dependendo da necessidade de se operacionalizar a distribuição no momento da ceia. Uma assembleia pequena pode muito bem compartilhar o mesmo cálice. Uma assembleia com algumas centenas de pessoas participando da ceia pode preferir ter meia dúzia de cálices para que este ato de comunhão não leve horas para ser realizado. Mas, repito, nunca cálices individuais, pois isto anularia o sentido que é o da comunhão.

Então vem a grande questão: e as doenças transmissíveis às quais ficamos sujeitos quando compartilhamos de um mesmo cálice ou copo durante a ceia do Senhor? Como evitar?

A prática cristã do uso de um cálice comum a todos (ou de alguns cálices, mas ainda assim compartilhados) só foi mudada nas igrejas de confissão protestante por volta de 1890. Não sei quando o cálice deixou de ser passado entre os participantes da ceia nas igrejas católicas, mas acredito que seu uso comum também tenha acontecido durante alguns séculos, antes de ficar restrito ao padre, distribuindo então aos fiéis apenas as “hóstias” (que obviamente não representam o um só corpo de Cristo por serem independentes umas das outras, por não serem “um pão”). Apesar de quase dois mil anos de compartilhamento de um mesmo cálice, os cristãos não foram extintos por doenças e epidemias, o que demonstra que, apesar do risco de contágio existir, eles se multiplicaram ao invés de morrerem todos.

Mas existe risco de contágio? É evidente que sim, pois a saliva é uma verdadeira sopa bacteriana. Na Wikipedia em inglês descubro que “Aqueles que cuidam de seus dentes e possuem uma boca relativamente limpa têm de mil a cem mil bactérias morando na superfície de cada dente. Aqueles que não têm uma boca higienizada têm entre cem milhões e um bilhão de bactérias em cada dente”.

Outro dado aterrador é saber que 90% das células de seu corpo não são suas, mas são células de bactérias, fungos e outros seres vivos microscópicos. Só 10% das células são suas e nelas há 23 mil genes, contra mais de um milhão de genes que você carrega em seu corpo e não são seus. Isto significa que a massa de corpo realmente seu representa 97 a 99%, enquanto a de bactérias varia de 1 a 3%. Uma pessoa de 80 quilos pode estar carregando quase dois quilos e meio de bactérias em seu organismo. O problema é que não existe um regime que nos faça perder apenas bactérias, e nem poderia, pois não sobreviveríamos sem elas. Pense na vaca: a carne e o leite que ela produz dependem de um processo bacteriano, pois a vaca não se alimenta realmente de capim. O capim é apenas a matéria prima, que será quebrada pelas bactérias que moram em seus estômagos e transformadas nos nutrientes necessários à sobrevivência do animal.

Portanto nem todas as bactérias causam doenças, mas podemos ter na boca micro-organismos que podem nos matar se caírem na corrente sanguínea. Por causa de um problema que tenho nas válvulas do coração, meu cardiologista me aconselha a sempre tomar antibióticos antes de fazer alguma intervenção dentária mais profunda, para evitar a possibilidade de um desses micro-organismos entrar na corrente sanguínea e causar um problema grave de coração.

Isto tudo significa que beber do mesmo copo nem pensar, não é mesmo? Não é bem assim, pois se eu fosse ficar preocupado com a possibilidade de adoecer por contágio de saliva nunca mais engoliria minha própria saliva e nem dormiria pensando na possibilidade de um bichinho que mora em minha boca entrar na corrente sanguínea e detonar meu cérebro ou coração. Pessoas morrem todos os dias no mundo inteiro em razão de infecções dentárias. Felizmente nosso corpo possui mecanismos de proteção e combate que são usados tanto para as bactérias alojadas em nosso corpo como para as visitantes.

A troca de saliva pode transmitir algumas doenças graves, e a grande quantidade de artigos sobre os perigos do beijo demonstra isso (certamente o número de pessoas que se beijam na boca é infinitamente maior do que as que compartilham de um mesmo cálice na ceia do Senhor). Na maioria dos casos, o perigo de adoecer está muito mais na condição da pessoa que recebe a bactéria do que no simples contato com a doença. Afinal, estamos 24 horas por dia expostos ao ar, que é o veículo de transmissão de doenças, como a gripe, tuberculose, meningite, poliomielite e sarampo. Você certamente nunca pensou em evitar respirar para precaver-se destas doenças.

O compartilhamento do cálice na ceia se torna uma ameaça ainda menos séria, do ponto de vista de contágio, quando descobrimos que 80% das doenças não são transmitidas pela saliva ou pelo ar, mas pela pele. Suas mãos são os principais veículos de transporte de bactérias para a boca, e aí não estamos falando apenas de doenças vindas apenas de seres humanos doentes, como é o caso da saliva, mas daquelas que dão em aves e animais, inclusive os domésticos. As mãos também estão continuamente contaminadas com todo tipo de fezes e fungos com os quais temos contato direto todos os dias.

Portanto, sua preocupação não deveria estar tanto no cálice compartilhado na ceia, mas muito mais no pão, pois todos pegam nele, tanto aquele que o parte na hora de dar graças, como cada um que tira dele um pedaço para levá-lo à boca com uma mão que provavelmente não acabou de ser lavada. Será que todos lavaram as mãos com sabonete bactericida antes de se sentarem ali? Acredito que não. O mais provável é que, antes de se dirigirem ao local de reunião para participarem da ceia do Senhor, além do contato das mãos com infinitas fontes de contágio, separaram o dinheiro que iriam colocar na coleta.

Em um artigo que li, uma análise feita com 68 cédulas de um dólar revelou que cinco continham bactérias que poderiam causar infecção em pessoas perfeitamente saudáveis e 59 (87%) deixariam doentes pessoas com baixa imunidade, como as que tem câncer ou HIV. Apenas 4 cédulas não continham bactérias patogênicas. Veja você que o simples ato de usarmos dinheiro todos os dias já nos coloca em contato com esses bichinhos mortais que andam por aí, mas não temos nenhuma intenção de deixar de usá-lo.

Assim como dependemos do Senhor para nos guardar de nos contaminarmos a nós mesmos com bilhões de bactérias que vivem em nossa boca, ou com aquelas que nos chegam pelo ar, pela água, pelos alimentos e pelas mãos, devemos depender dele também na hora de fazermos o que ele pediu: “Tomai e bebei”. Se isto seria um risco tão grande assim para nós, certamente o Senhor não teria deixado a ordenança para ser celebrada do jeito que deixou.

“E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos”.