O cristão pode contar piadas?

Você perguntou se um cristão pode contar piadas ou se divertir ouvindo outros contarem. Minha opinião pessoal é que o senso de humor é uma das características naturais ao ser humano, e não uma aberração ou degradação causada pelo pecado. Mas, como acontece também com outros sentimentos e comportamentos humanos, existe também um humor que é fruto dessa degradação, do mesmo modo como existe o lado sinistro do amor, do prazer, da alegria, etc.

Na verdade a falta de senso de humor pode ser considerada uma anormalidade, aí sim resultado do pecado. Distúrbios mentais como a Síndrome de Asperger fazem com que alguns casos mais graves deixem a pessoa incapacitada de entender uma anedota, identificar sarcasmo, ironia, escárnio e frases de duplo sentido na linguagem ou perceber mensagens enviadas por expressões faciais e linguagem corporal.

Pessoas assim também têm dificuldade para entender metáforas, analogias e linguagem hiperbólica (por exemplo, “morri de ri”, “estou esperando há um século”), pois são pessoas extremamente literais na forma como percebem as coisas. Algumas acabam se tornando paranoicas, pois sua cegueira emocional impede que saibam distinguir quando alguém está brincando ou falando sério, e por isso podem se achar sempre perseguidas ou criticadas.

Obviamente todas essas incapacidades também ocorrem no sentido inverso, ou seja, são pessoas com grande dificuldade de relacionamento justamente por serem literais. Não são capazes de perceber nuances no comportamento dos outros para poderem consolá-los, e nem poderiam consolar alguém que não estivesse preparado para ouvir algo direto, pois não conseguem falar em rodeios e linguagem simbólica. Mesmo assim pessoas com esta síndrome podem ser extremamente inteligentes em algumas áreas, como também costuma ocorrer em casos de autismo.

Portanto, entendo que o senso de humor esteja também relacionado a essa capacidade humana de entender linguagem metafórica, ironia, sarcasmo, etc. e poder fazer uso disso na comunicação. Na Bíblia encontramos parábolas que só podem ser entendidas se tivermos algum senso de humor para interpretá-las como fantasias e não como uma realidade literal. No Antigo Testamento vemos linguagem poética descrevendo o aplauso dos rios (Sl 98:8), o cântico dos montes (Is 55:12) ou a conversa entre animais (Jó 12:7). Alguém com “cegueira emocional” não seria capaz de entender como rios poderiam aplaudir, montanhas cantarem ou animais dizerem algo aos homens.

Quando Filipe encontra-se com Natanael e fala de Jesus a ele, sua reação é de sarcasmo: “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” Obviamente não se tratava de uma pergunta literal, mas trazia o sarcasmo que também é usado em muitas frases de humor. Nazaré era considerada uma cidade de quinta categoria na sociedade da época.

Filipe então convida Natanael para encontrar-se com Jesus e nesse encontro não vemos qualquer reprimenda do Senhor pelo tipo de linguagem usada por Natanael, mas apenas um elogio: “Eis aqui um verdadeiro israelita, em quem não há dolo”. Quando Natanael pergunta de onde Jesus o conhecia, este responde com uma frase que pode ser de duplo sentido: “Antes que Filipe te chamasse, te vi eu, estando tu debaixo da figueira” (Jo 1:45-48). Se Natanael estava literalmente debaixo de uma figueira, ou se entendeu que Jesus estava falando do caráter genuinamente israelita do rapaz é difícil dizer, mas eu creio que eram as duas coisas.

O próprio Senhor usava de parábolas que alguém sem senso de humor e capacidade de interpretar linguagem simbólica não conseguiria entender. Como ele podia se comparar a uma porta? Quem seria louco de construir uma casa sobre areia? Ele critica a ausência dos extremos dos sentimentos humanos -- alegria e tristeza -- quando diz dos que o criticavam: “São semelhantes aos meninos que, assentados nas praças, clamam uns aos outros, e dizem: Tocamo-vos flauta, e não dançastes; cantamo-vos lamentações, e não chorastes” (Lc 7:32).

Quando nos lembramos de como é complexa a capacidade de percepção do ser humano, a qual inclui o senso de humor, fica difícil acreditar que Deus tivesse criado o homem à sua imagem e semelhança e que este acabaria possuindo uma qualidade que faltaria em Deus, ou seja, senso de humor. Um dicionário define senso de humor como “a capacidade de perceber, desfrutar ou expressar o que é cômico ou engraçado”.

Não é difícil enxergar algum senso de humor no que Deus fez com os filisteus que haviam roubado a Arca da Aliança e a colocado em seu templo pagão diante de seu ídolo Dagom. Deus poderia ter simplesmente feito o ídolo desmoronar, porém não. Quando os filisteus vão ao seu templo encontram o grande ídolo prostrado diante da arca, numa clara indicação de que até os deuses pagãos deviam honra ao único Deus verdadeiro. Depois de colocarem o ídolo de volta ao seu lugar, os filisteus voltam a encontrá-lo novamente prostrado diante da arca, com a cabeça e as mãos cortadas fora. A mensagem também era clara: o ídolo deles não era capaz de pensar ou agir pois lhe faltavam a cabeça e as mãos. (Veja 1 Samuel 5:1-5).

Mas qual seria a reação de Deus diante de tamanha tolice dos filisteus e de todos os que ousassem desafiar o Criador? Os Salmos nos dão algumas pistas de como Deus reage diante da insanidade humana: “Mas tu, Senhor, te rirás deles; zombarás de todos os gentios” (Sl 59:8). “Aquele que habita nos céus se rirá; o Senhor zombará deles” (Sl 2:4). Mas se Deus zomba da loucura humana, ele não zomba no homem no sentido de desprezá-lo, caso contrário não teria enviado seu Filho para morrer por nós, que não somos nem um pouco melhores que os filisteus de então.

A dificuldade, como cristãos, de entendermos as diferenças sutis entre o humor sadio e inerente ao ser humano, e aquele que é mau em essência, é que muito do que hoje chamamos de humor não passa de linguagem chula, ofensiva e agressiva. Isto porque existe o humor que sempre exige uma vítima, seja ela a loira, o português ou o sujeito que bate a cabeça no poste ou leva a torta na cara. Este tipo de humor obviamente não é saudável pois deixa ressentimentos nas pessoas das quais rimos. Para este caso vale Colossenses 3:8: “Despojai-vos também de tudo: da ira, da cólera, da malícia, da maledicência, das palavras torpes da vossa boca”. Ef 4:29 mostra como devemos ser no falar: “Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que for boa para promover a edificação, para que dê graça aos que a ouvem”.

Há quem argumente que o cristão jamais deveria brincar, rir ou contar histórias engraçadas (anedotas) porque o Senhor nunca demonstrou fazer isso. É preciso, porém, lembrar que o Senhor veio ao mundo com a finalidade de morrer. Se eu e você estivéssemos no corredor da morte não acharíamos muita graça de nossa condição. Além disso, por ele ser santo e perfeito, sua percepção do mundo era muito diferente da nossa. Quando ele chorou diante do túmulo de Lázaro, não estava chorando especificamente pelo morto como fazemos em velórios, pois em cinco minutos ele traria Lázaro de volta à vida. Aquele morto não era o motivo de seu pranto; ele chorava de ver a ruína e morte que o pecado trouxe à criação de Deus. Estes sim eram motivos suficientes para tirar lágrimas dos olhos daquele Ser perfeito, além obviamente da empatia que sentia naquele momento pelas tristes Marta e Maria, irmãs do morto.

Um texto assinado apenas pelas iniciais E. N. C. que encontrei descreve o Senhor assim, no que diz respeito ao humor:

“O Senhor Jesus nunca é visto no Novo Testamento dando a parecer qualquer expressão de senso de humor ou participando de conversas tolas. Vemos Deus revelando que irá rir e zombar dos pagãos pecadores, mas isto é diferente de se tentar atribuir ao Senhor Jesus senso de humor... A Palavra de Deus mostra que enquanto estava no mundo o Filho de Deus era um rejeitado, Homem de dores e que sabe o que é sofrer. Ele estava aqui se derramando em lágrimas, pranteando sobre Jerusalém e por todos os que haviam caído vítimas das sutilezas de Satanás. Seu andar era marcado por choro e pranto. As Escrituras mostram que ele era um homem sociável, atendendo a todos e estando sempre disponível a cada um que necessitasse. Ele atendia ao pobre e fraco. Seu ministério era fazer o bem e suprir. Seu ministério verbal era de uma qualidade tal que as pessoas mais simples o escutavam de boa vontade. A inexplicável doçura de suas palavras é degradada pelo mero pensar de que Cristo poderia contar piadas. Nenhuma expressão trivial jamais saiu de seus lábios, e jamais alguém o escutou contar uma piada. Ele advertia seus ouvintes de que eles seriam julgados por cada palavra inútil que tivessem falado. Seu discurso era sobre coisas com peso e importância eternas, tudo o que o Pai lhe havia dado para falar. Ele tinha um conhecimento de primeira mão das coisas celestiais e eram estes e outros correlatos os temas de sua conversa. Ninguém jamais caminhou em um caminho tão estreito quanto o Senhor Jesus Cristo, e ninguém jamais teve um coração tão largo quanto o dele. Ele era o Deus bendito (que significa “feliz”), embora aqui estivesse como um estranho de luto entre os que estavam tristes e amedrontados. A alegria que ele trouxe era plena e duradoura, e não alguma expressão de alegria fugaz”.

Voltando ao assunto de o cristão contar ou não coisas engraçadas, um alerta precisa ser dado, principalmente em uma época de tanta leviandade para com as coisas de Deus. Em situação nenhuma um cristão deveria contar piadas sobre Deus, o Senhor Jesus ou qualquer assunto relacionado à Palavra de Deus. Quando falamos de Deus e das coisas relacionadas a ele estamos pisando em terreno santo e devemos tirar as sandálias, como o Senhor ordenou a Moisés. Qualquer piada ou comentário jocoso usando o nome de Deus ou de Jesus é vão, portanto pecado. Às vezes somos obrigados a dar um sorriso amarelo quando o chefe incrédulo conta uma piada de céu e inferno ou algo semelhante, mas quando é um irmão em Cristo que faz isso o correto seria interrompê-lo para que não caia em erro e venha também a perverter os ouvintes com sua linguagem.

Como a minha profissão de palestrante envolve o uso de humor nos exemplos e histórias que conto para fixar aquilo que é ensinado na palestra, por ser cristão sou obrigado a me manter vigilante para não ultrapassar a linha que divide uma situação engraçada de um humor chulo e ofensivo. Tenho alguns textos nos quais falo do humor na profissão de palestrante e dou mais detalhes sobre o assunto, mostrando principalmente que o humor que considero sadio em qualquer situação é aquele envolvendo situações engraçadas do dia-a-dia relacionadas a nós mesmos. Quando rimos de situações assim não ofendemos ninguém e nem deixamos mortos e feridos pelo caminho, pois rimos de nós e de nossas falhas. Não é o riso soberbo do zombador, mas o riso do que se dá conta de suas próprias fraquezas.