Devemos pregar o evangelho a cristãos?

A menos que você esteja empenhado em levar o evangelho à alguma tribo de nativos isolados nas Américas ou África, ou ainda às populações predominantemente islâmicas ou orientais, o mais provável é que estará pregando o evangelho a cristãos nominais. O mundo ocidental foi cristianizado há séculos e o nome de Jesus não é novidade para ninguém nestas partes do mundo.

Portanto, seu público, por assim dizer, será diferente daquele que os apóstolos ou os primeiros discípulos encontravam em seus esforços evangelísticos há dois mil anos. Ou eles pregavam a pagãos, que nunca tinham ouvido falar de um Deus único e muito menos do nome de Jesus, ou a judeus, que possuíam ao menos o conhecimento de Deus, porém ainda precisavam saber que em Jesus se cumpriam todas as Escrituras que hoje chamamos de Antigo Testamento. É destas duas classes que Paulo fala em Gálatas 2:7: “Antes, pelo contrário, quando viram que o evangelho da incircuncisão me estava confiado, como a Pedro o da circuncisão...”.

O mais próximo que temos de uma pregação a cristãos no Novo Testamento é o caso de Simão, o mago, em Atos 8:9-24. Seria bom você ler a passagem toda, mas basicamente ali encontramos um homem que ouviu o evangelho da boca de Filipe e creu, ao menos intelectualmente, no que Filipe dizia do reino de Deus e do nome de Jesus. (Atos 8:13) “E creu até o próprio Simão; e, sendo batizado, ficou de contínuo com Filipe; e, vendo os sinais e as grandes maravilhas que se faziam, estava atônito”.

Repare que ele foi batizado, como a maioria da população ocidental hoje é, e “ficou de contínuo com Filipe”, como muitos hoje vivem na companhia daqueles que lhes pregaram a Palavra de Deus ou de outros convertidos. A isto chamamos hoje de cristandade, a “grande casa”, mencionada em 2 Timóteo 2, na qual há vasos para honra e para desonra, crentes verdadeiros e falsos.

Embora a passagem de Atos 8 seja breve, podemos ver que por algum tempo Simão teve essa “vida cristã” na companhia de samaritanos que tinham genuinamente se convertido a Cristo. Enquanto Simão vivia seu cristianismo exterior misturado com aqueles que eram genuínos e receberiam o Espírito Santo, a notícia da conversão de samaritanos chegou a Jerusalém e Pedro e João foram visitá-los, quando também tiveram a oportunidade de testemunhar que aos samaritanos Deus também concedia o Espírito Santo. (Obs. O livro de Atos é um período de transição, portanto ali encontramos diferentes classes de pessoas: judeus, gentios e samaritanos, recebendo o Espírito em ocasiões e de maneiras distintas, uns antes de serem batizados nas águas, outros depois).

Mas voltando a Simão, o fim da história revela que, apesar de ter crido exteriormente e estar participando dos privilégios do cristianismo, ele era um falso professo que nem mesmo ousava pedir, de si mesmo, perdão a Deus por sua ganância de querer pagar para receber o Espírito Santo e depois lucrar com isso. O caso dele é muito semelhante ao dos judeus que tiveram contato com Jesus, os quais são descritos em Hebreus 6 e entre os quais inclui-se Judas, o traidor.

(Hb 6:4-6) “Porque é impossível que os que já uma vez foram iluminados [Judas foi], e provaram o dom celestial [Judas provou], e se tornaram participantes do Espírito Santo [o Espírito estava com os discípulos, mas não neles]. E provaram a boa palavra de Deus [Judas não perdeu um sermão de Jesus], e as virtudes do século futuro [o poder de curar e expulsar demônios que foi dado aos outros apóstolos, foi dado a Judas também], e recaíram, sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificam o Filho de Deus, e o expõem ao vitupério”.

Repare que a passagem não fala de pessoas que realmente creram e foram salvas de seus pecados, mas apenas participantes dos privilégios do cristianismo como é hoje o cônjuge incrédulo de alguém verdadeiramente salvo. (1 Co 7:14) “Porque o marido descrente é santificado pela mulher; e a mulher descrente é santificada pelo marido; de outra sorte os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos”.

Portanto, hoje ao pregar o evangelho, você estará pregando a cristãos. Eles já foram mais que expostos ao nome de Jesus, sem muitos deles nunca terem entendido ou crido no evangelho. É um conhecimento apenas intelectual, na maioria das vezes misturado com muitos erros herdados do catolicismo, do protestantismo e do pentecostalismo. Que erros são estes?

O primeiro que me vem à mente é a ideia absurda de que você é salvo fazendo parte de alguma igreja. Esta ideia foi popularizada pelo catolicismo romano e mais tarde abraçada por segmentos protestantes, principalmente neopentecostais. Raciocine assim: O que é a igreja? Biblicamente falando (e não no sentido denominacional) é o corpo de Cristo, o conjunto dos que foram salvos por Cristo. Localmente ela é representada onde estiverem dois ou três congregados pelo Espírito, no meio dos quais o Senhor promete estar. Não é uma organização ou instituição, mas o corpo místico de Cristo manifestado de forma visível nos salvos por ele.

Agora vamos ao absurdo do conceito de a salvação estar na igreja: como poderia alguém ser salvo pelos salvos? Sim, pois se alguém diz que você só pode ser salvo se estiver em uma determinada companhia de cristãos, à qual dá o nome de “igreja”, a salvação já não está no Salvador, mas nos salvos por ele. Mas será que a Palavra de Deus diz que devemos estar em algum lugar? Sim, devemos estar em Cristo.

(2 Co 5:17) “Assim que, se alguém está em Cristo, nova criatura é; as coisas velhas já passaram; eis que tudo se fez novo”.

Portanto, ao pregarmos o evangelho a cristãos devemos deixar claro que a igreja não garante a salvação, pois a igreja é o conjunto dos salvos. Não é a igreja que salva pecadores, mas é Jesus quem salva a igreja, o conjunto de pecadores salvos por Jesus.

(Ef 5:25-27) “Cristo amou a igreja, e a si mesmo se entregou por ela, Para a santificar, purificando-a com a lavagem da água, pela palavra, Para a apresentar a si mesmo igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem coisa semelhante, mas santa e irrepreensível”.

(Tt 2:14) “O qual se deu a si mesmo por nós para nos remir de toda a iniquidade, e purificar para si um povo seu especial,”.

Certamente nenhum apóstolo ou discípulo do primeiro século precisou enfrentar um problema como este, de pregar o evangelho para pessoas que achavam que, por estarem inseridas em um determinado agrupamento de cristãos, estariam por isso a salvo da perdição eterna.

O mais perto que podemos ver disso, além do caso de Simão, o mago, são os destinatários da epístola aos Hebreus. Ali temos cristãos, nominais ou genuínos, aos quais é endereçada uma carta para mostrar a superioridade do sacrifício e sacerdócio de Cristo em relação às sombras dos sacrifícios e sacerdócio do judaísmo. As palavras “melhor” e “melhores” aparecem onze vezes na epístola, e no final aqueles judeu-cristãos são convidados a saírem fora do arraial judaico para se encontrarem com Cristo e compartilharem de sua rejeição.

(Hb 13:10-13) “Temos um altar, de que não têm direito de comer os que servem ao tabernáculo. Porque os corpos dos animais, cujo sangue é, pelo pecado, trazido pelo sumo sacerdote para o santuário, são queimados fora do arraial. E por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, padeceu fora da porta. Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério”.

Hoje existe um “arraial” claramente visível na cristandade. Basta reparar no quanto de judaísmo existe impregnado em alguns grupos cristãos para entender. Templo, altar, vestes especiais, liturgia, sacerdotes, dízimo, incenso, música instrumental no louvor, levitas, etc., são elementos emprestados do judaísmo. Assim como o autor da epístola aos Hebreus fez um apelo a todos aqueles judeu-cristãos para que se apartassem de vez do judaísmo, cabe também convidar hoje os cristãos a saírem do arraial; a saírem a Cristo fora desse sistema judaico que Deus já deu por encerrado e que muitos cristãos ainda insistem em piratear. Nenhum de nós pode identificar quem é ou não verdadeiramente salvo, pois “o Senhor conhece os que são seus”, mas ao pregarmos o evangelho é bom discernir se estamos pregando a pessoas completamente alheias às Escrituras, ou a pessoas que até sejam versadas nelas, como eram os hebreus, porém dentro de uma ótica de um judaísmo cristão.

Repare que até aqui já tratamos de dois aspectos de crenças falsas encontradas entre cristãos nominais: a salvação por meio da igreja e a salvação por meio de rituais e costumes emprestados do judaísmo. Em muitas religiões da cristandade estas duas coisas andam juntas. Porém as religiões pentecostais introduziram mais um ingrediente nessa salada do mundo cristianizado, e este é a incerteza da possessão garantida de salvação, o que basicamente é a mesma coisa que a salvação por obras.

A ideia é mais ou menos esta: você é salvo quando crê em Jesus, porém para permanecer salvo precisará cumprir uma série de requisitos, os quais variam de frequentar uma determinada denominação, ser batizado de uma determinada maneira, ou andar vestido dentro de um determinado padrão de “moda evangélica”.

Algumas vertentes mais sofisticadas desse evangelicalismo, sutilmente introduziram a salvação pelo senhorio, que basicamente é ser salvo, mas sem permanecer salvo, a menos que esteja sob o senhorio de Cristo, isto é, em um contínuo arrependimento e sob a direção do Senhor. O cristão só poderá considerar-se realmente salvo quando chegar ao final de sua jornada aqui ou se for hipócrita o suficiente para se iludir de que é 100% guiado pelo Senhor.

Mais uma vez a salvação acaba dependendo do homem, de sua obediência e perseverança, e não da obra completa de Cristo na cruz do calvário e da promessa inequívoca da Palavra de Deus, que nos dá a segurança de descansarmos em uma obra que do começo ao fim depende unicamente de Deus:

(Fp 1:6) “Tendo por certo isto mesmo, que aquele que em vós começou a boa obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo;”.

(1Ts 5:9) “Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para a aquisição da salvação, por nosso Senhor Jesus Cristo,”.

De tudo concluímos que, apesar de o evangelho ser simples e resumir-se às boas novas de que Cristo morreu por nossos pecados e ressuscitou para nossa justificação e, sabendo que ele é o poder de Deus para a salvação de todo o que crê, quem evangeliza o mundo cristianizado poderá precisar ajudar a drenar a mente do evangelizado para excluir toda a lama teológica acumulada durante séculos de catolicismo romano, protestantismo e pentecostalismo, para então derramar a água pura da Palavra de Deus.

(1 Co 15:3-4) “Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, E que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”.

(Rm 1:16) “Porque não me envergonho do evangelho de Cristo, pois é o poder de Deus para salvação de todo aquele que crê; primeiro do judeu, e também do grego”.

Mas, considerando que essas vertentes cristãs, catolicismo, protestantismo e pentecostalismo, também trazem em seu bojo a doutrina de que a salvação é pela fé em Cristo e em seu sacrifício consumado na cruz, como saber separar o que é lama e o que é água da mensagem recebida e incorporada por alguém cristianizado? Procurando filtrar aquilo que exalta a Deus daquilo que exalta o homem.

O evangelho puro, Cristo morreu, Cristo ressuscitou, exalta unicamente a Deus, que enviou o seu Filho para salvar. O evangelho misturado, que vai desde dizer que você é salvo por suas boas obras, até dizer que é salvo pela fé, mas se mantém salvo pela perseverança, exalta o homem, porque no final a salvação terá sido uma conquista do salvo e não um presente recebido por graça imerecida.

No verdadeiro céu os redimidos por Cristo darão toda glória a Deus e ao Cordeiro e cantarão um novo cântico: “Digno és de tomar o livro, e de abrir os seus selos; porque foste morto, e com o teu sangue compraste para Deus homens de toda a tribo, e língua, e povo, e nação” (Ap 5:9). No imaginário céu da religiosidade cristã, seus esforçados adeptos cantarão o velho cântico de Caim: “Digno sou ... porque por meio do fruto daquilo que com meus esforços plantei, cuidei e colhi aqui neste mundo conquistei e garanti o favor divino”.

Talvez aqui você diga que falando assim estou ofendendo católicos, protestantes e pentecostais. Considerando que no final não haverá católicos, protestantes ou pentecostais, mas Deus será tudo em todos (1 Co 15:28) não vejo a utilidade de se tentar defender coisas e rótulos que um dia deixarão de existir por terem sido inventadas por homens. Não é a Deus que você quer glorificar? Não é a Cristo que quer apresentar às pessoas para que sejam salvas? Então “por que gastais o dinheiro naquilo que não é pão? E o produto do vosso trabalho naquilo que não pode satisfazer? Ouvi-me atentamente, e comei o que é bom, e a vossa alma se deleite com a gordura” (Is 55:2).