Seria a ceia do Senhor um “engano de Satanás”?
Você enviou o link para um texto no qual o autor tenta anular a ordenança da ceia do Senhor, chamando-a desrespeitosamente de “um engano de Satanás” e justificando que “esse engano só não foi revelado há muito mais tempo pela igreja, caro leitor, porque estava soterrado sob liturgias e rituais provenientes da religiosidade pagã-romana”. Muitos cristãos cansados dos erros cometidos pela cristandade ao longo dos séculos acabam se separando dos sistemas religiosos e caindo em erros muito mais sérios como o do autor do texto. Geralmente isso acontece por tentarem ser diferentes em tudo das religiões cristãs tradicionais, inventando argumentos para anular até mesmo aquilo que essas religiões façam em conformidade com a Palavra de Deus.
É o caso da ceia, que muitos hoje tentam neutralizar para fazê-la parecer um mero símbolo da comunhão entre cristãos, algo como combinarmos de sair juntos para comer uma pizza. Embora a ceia seja, sim, uma atividade envolvendo pluralidade e comunhão dos irmãos, portanto não deve ser celebrada por uma só pessoa, ela tem objetivos declarados pelo Senhor nos evangelhos — “fazei isto em memória de mim” — e corroborados pelo apóstolo Paulo em 1 Coríntios 11:26 — “Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha”.
Estes aspectos jamais poderiam significar uma mera refeição em comum ou a pregação do evangelho. A ceia é um monumento à morte de Cristo e quando a celebramos estamos sendo observados por homens e anjos. Quando um país constrói um monumento à sua libertação do opressor, e mais tarde o inimigo consegue reconquistar o país, não é de espantar que ele irá querer destruir qualquer monumento que lembre a libertação. Com o diabo não é diferente em seus ataques à ordenança da ceia do Senhor. A expressão “até que venha” deixa claro que ela deve ser celebrada até a vinda do Senhor, muito embora o inimigo estará sempre se esforçando em fazê-la cessar, como parece ter conseguido ao influenciar o autor do artigo que chama a ceia do Senhor de “engano de Satanás”.
Às vezes uma rápida olhada pelos textos de um site com artigos como este que recebi ajuda a indicar as crenças de seus autores e neste caso há outros equívocos, além daquele envolvendo a ceia. Um aparece na declaração de fé onde diz que “na justificação a retidão de Cristo nos é imputado como único meio possível de satisfazer a perfeita justiça de Deus”.
Este é um erro comum na cristandade, ou seja, achar que Deus deposita em nossa conta a vida justa de Cristo para nos tornar justos. Embora esteja correto dizer que somos justificados pela fé, a Bíblia nunca diz que somos justificados pela justiça de Cristo. J. N. Darby comenta: “A Palavra diz simplesmente que justiça é imputada, ou que a fé é imputada por justiça, mas não diz que seja a justiça de Cristo” (J. N. Darby : Letters : Volume 2, number 99). Não somos justificados por Deus depositar as boas obras de Jesus em nossa conta zerada de obras próprias. A Palavra de Deus diz que somos “justificados gratuitamente pela sua graça” (Romanos 3:24), “justificados pelo seu sangue” (Romanos 5:9) e “justificados pela fé” (Romanos 5:1), mas em nenhum lugar encontro que sejamos justificados pelas justiças de Cristo.
A vida impecável de Cristo não poderia ajudar em nada na justificação do pecador. Se um criminoso condenado à morte comparecer diante do juiz, este não poderá livrar o condenado com base em seu próprio currículo de justiça, pois a lei exige que o réu seja morto. A vida justa do juiz só ajudaria a tornar maior e mais patente a injustiça do condenado. Mas suponhamos que alguém igualmente justo se voluntariasse a confessar como seu o crime do réu e sofrer a pena em seu lugar. Seria a execução do substituto, e não sua vida impecável, que garantiria o perdão e também a justificação do réu. Aos olhos da lei aquele que era réu deixaria de ser considerado criminoso, mas seria considerado inocente e justificado, já que o voluntário que confessou o crime já foi executado.
O autor do texto que combate a ceia do Senhor demonstra não conhecer a posição do cristão, ao dizer que “o dia do retorno do nosso Messias está muito próximo”. Cristo não é o Messias dos cristãos, ele é Messias para Israel e em nenhuma epístola ele é chamado assim. Para a igreja ele é Senhor e Noivo. Outro engano que ele comete no texto é dizer que a ceia do Senhor foi um “nome dado pelo catolicismo”, sem perceber que o próprio apóstolo Paulo usa a mesma expressão ao repreender os coríntios por não estarem celebrando a ceia de maneira digna: “De sorte que, quando vos ajuntais num lugar, não é para comer a ceia do Senhor” (1 Coríntios 11:20).
O desejo de distorcer a verdade pode ser visto também na expressão que o autor usa em seu texto ao dizer que “os padres católicos traduziram e criaram o livro 'Bíblia'“. Nenhum padre e nenhuma “igreja católica” criou a Bíblia. Ela é um conjunto de livros que inclui as escrituras usadas pelos judeus, às quais foram acrescentados os evangelhos e epístolas, que já circulavam pelas assembleias dos cristãos no início. O que aconteceu foi uma oficialização dessa reunião de textos que ficou conhecido como “Bíblia”.
Mas o autor continua sua coleção de equívocos quando diz que “o Novo Testamento se inicia, de fato, após a morte do nosso Messias, e não no nascimento, como foi colocado na Bíblia. Após sua morte, se iniciou uma nova aliança.” Na verdade, não existe um “Novo Testamento” no sentido de um livro, como também não existe um “Antigo Testamento”. Nenhum judeu chamaria suas escrituras de “Antigo Testamento”. O que ocorre é que Cristo veio, andou aqui, morreu e ressuscitou, o que foi documentado nos evangelhos. Para esta coleção acrescida das epístolas foi dado um nome apenas de referência de Novo Testamento ou Nova Aliança, mas o equívoco é achar que a Nova Aliança é para os cristãos.
Quando lemos os evangelhos estamos ainda na economia judaica, e ali temos um Templo, sacerdotes, dízimos, sacrifícios e tudo mais que fazia parte da adoração dada por Deus na Lei e nos Profetas. O sangue do verdadeiro Cordeiro de Deus é o “sangue da nova aliança”, mas é preciso entender que essa aliança não foi feita com os cristãos ou com a Igreja. É fácil entender isso porque nós, gentios convertidos a Cristo, nunca tivemos uma velha aliança. Deus fez suas alianças com Israel, não com a Igreja. Então ao fazer outra aliança chamou-a de “nova” para aqueles que receberam a “velha aliança”. E nós, cristãos, que somos membros do corpo de Cristo, o que temos a ver com a nova aliança? Bem, a nova aliança não foi feita conosco, mas desfrutamos dos benefícios dela pois foi feita com o sangue derramado do Cordeiro de Deus.
Foi por isso que, ao instituir a ceia nos evangelhos, Jesus disse: “Isto é o meu sangue; o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados” (Mateus 26:28). Ele estava dizendo aquilo aos discípulos judeus como representantes da nação de Israel, a qual Cristo voltará a reunir no seu reino milenial após o arrebatamento da igreja. Por isso ele continuou dizendo: “E digo-vos que, desde agora, não beberei deste fruto da vide, até aquele dia em que o beba de novo convosco no reino de meu Pai” (Mateus 26:29). Esta última declaração do Senhor, apesar de ter sido feita no momento da ceia, não está associada à ceia propriamente dita, celebrada com pão e vinho, mas refere-se apenas ao vinho. Ele não diz que não comeria do pão, mesmo porque ele pode ter comido pão com os discípulos. Ele também não disse aos discípulos que eles não beberiam mais do fruto da vide, como já vi alguns alegarem como argumento para cessar a celebração da ceia ou até mesmo para consumir vinho. Jesus disse que ele próprio não beberia do fruto da vide daquela hora em diante.
O “vinho alegra o coração do homem” (Salmos 104:15) e o que Jesus disse significava que ele não teria sua alegria completa enquanto o seu povo de Israel não for totalmente restaurado naquele dia quando vier estabelecer o seu Reino. Então ele voltará a ter comunhão com o seu povo em novas circunstâncias, mas antes disso haveria um intervalo que nem os profetas do Antigo Testamento puderam conhecer. Este intervalo seria o tempo atual da Igreja, um mistério que só seria revelado a Paulo algum tempo depois da criação da própria Igreja, e da qual existem apenas duas referências diretas no evangelho de Mateus, nos capítulos 16 e 18.
Um outro argumento do autor do texto contrário à celebração da ceia é o de que a prática e os elementos usados na ceia seriam apenas simbólicos, do mesmo modo como o lava-pés também seria simbólico. Mas naquela ocasião o Senhor celebrou a ceia com elementos materiais — pão e vinho — e também lavou os pés de seus discípulos com água real. Então, se repetimos a ceia por que não repetir também o lava-pés em nossos dias, como costumam fazer os católicos? Se você entendeu que o Senhor instituiu a ceia em circunstâncias judaicas, após a celebração da Páscoa judaica, para discípulos judeus vivendo no judaísmo, então não achará estranho ele ter lavado seus pés, pois essa prática era muito utilizada pelos hebreus e existem várias passagens que mostram isso. Você as encontra tanto nos evangelhos como no Antigo Testamento (Gênesis 18:4, 19:2, 24:32, 43:24; 1 Samuel 25:41).
Até onde me recordo, nas epístolas o lavar dos pés aparece uma vez em 1 Timóteo 5:9-10 como características que qualificariam uma viúva a receber auxílio da assembleia local: “Que tenha sido mulher de um só marido; tendo testemunho de boas obras: Se criou os filhos, se exercitou hospitalidade, se lavou os pés aos santos, se socorreu os aflitos, se praticou toda a boa obra”. Isso tudo se resume às qualidades de uma mulher hospitaleira e nada tem a ver com a instituição de uma ordenança como é o batismo e a ceia do Senhor. Hoje, ao agirmos com nossos irmãos como agiria essa viúva hospitaleira, estaremos ajudando a lavar seus pés do cansaço e das impurezas deste mundo. E se fizermos isso em um espírito de humildade estaremos imitando o Senhor que se curvou para limpar os pés de seus discípulos.
Portanto aquela ceia que o Senhor instituiu nos evangelhos antes de morrer tinha um caráter diferente da que celebramos hoje, primeiro porque ela foi instituída a judeus, e depois porque Jesus ainda estava vivo naquele momento. Neste sentido não é aquela ceia que os cristãos celebram, mas uma que foi depois revelada ao mesmo apóstolo ao qual foram reveladas verdades concernentes à igreja, as quais ainda eram um mistério até mesmo para os apóstolos do Senhor. A ceia que celebramos, como cristãos e membros do corpo de Cristo, é aquela que foi revelada diretamente a Paulo pelo próprio Senhor, a qual ele não aprendeu de ninguém mais. E quando Paulo ensina os coríntios como devem fazer as instruções são muito claras e, obviamente, não incluem um lava-pés como complemento.
A ceia é uma das atividades que encontramos entre os primeiros cristãos em Atos 2:42: “E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações”. Este mesmo capítulo nos ajuda a entender que a ceia não era uma figura da comunhão entre irmãos quando dividiam seus alimentos, pois é na continuação do texto que este aspecto da vida cristã em assembleia nos primeiros dias é revelado: “E todos os que criam estavam juntos, e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens, e repartiam com todos, segundo cada um havia de mister. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam juntos com alegria e singeleza de coração” (Atos 2:44-46). Esta sim era uma refeição comum. A outra, no versículo 42, era a ceia do Senhor. Repare que eles ainda iam ao Templo de Jerusalém quando ainda não sabiam o que era a Igreja, pois Paulo iria se converter algum tempo depois e receber a revelação do mistério do corpo de Cristo.
Se você quiser celebrar a ceia do Senhor que foi revelada ao apóstolo Paulo e que ele ensinava os cristãos a celebrarem em toda as assembleias, siga estes passos:
“Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha” (1 Coríntios 11:23).
Se escrevêssemos uma receita com os ingredientes e ações envolvidos na ceia do Senhor, teríamos:
-
No primeiro dia da semana (Atos 20:7).
-
Reúna-se com os irmãos para “o partir do pão” (Atos 2:42).
-
Certifique-se de que apenas os sem pecado irão comer e beber (1 Coríntios 5:6-13).
-
Pegue um só pão inteiro (1 Coríntios 10:17; 11:23; Mateus 26:26).
-
Dê graças (1 Coríntios 11:24; Mateus 26:26).
-
Parta o pão (1 Coríntios 11:24; Mateus 26:26).
-
Passe o pão partido para cada um comer do “mesmo pão” (1 Coríntios 10:17; Mateus 26:26).
-
Coma do pão partido (1 Coríntios 11:24; Mateus 26:26).
-
Pegue um cálice de vinho (1 Coríntios 11:25; Mateus 26:27)
-
Dê graças (1 Coríntios 10:16; Mateus 26:27).
-
Passe para que todos bebam do cálice em comunhão (1 Coríntios 10:16; 11:25; Mateus 26:27).
Mais simples, claro e direto que isso, só desenhando. Mas voltando ao autor do texto que chamou a ceia do Senhor de “engano de Satanás”, é importante notar que ao longo dos séculos a ceia foi uma ordenança que esteve sob constante ataque do inimigo. Primeiro, quando ela foi transformada em um misto de mágica e idolatria, ao ser considerada um ritual que tinha o poder de transmutar pão e vinho em carne e sangue, que eram então idolatrados como se fossem elementos reais do corpo do Senhor. Era como se os ministrantes gritassem: “Vejam todos! Conseguimos trazer Jesus de volta do céu e da ressurreição e o reduzimos a um corpo morto!”. Acontece que o Senhor ressuscitou e está em um corpo glorioso, o que torna impossível fazer com que a carne e o sangue de seu corpo natural reapareçam sob a invocação ou a magia de transubstanciação invocada por algum sacerdote.
Outro ataque de Satanás contra a ceia do Senhor foi desferido quando sociedades secretas, como a maçonaria, gnose e outros grupos espiritualistas, fizeram dela um símbolo de fraternidade ou uma forma mística de se alimentar de uma força superior. Aquilo não pode ser a ceia do Senhor, porque a mensagem que envia é “Vejam todos! Estamos todos irmanados em um só pensamento!”, ou “Vejam todos! Estamos recarregando nossas baterias com energia crística!”. As religiões ligadas à teologia da prosperidade inventaram uma ceia que segue a mesma volúpia egocêntrica de quem quer ser dono de tudo. Nelas a ceia é uma forma de ser abençoado e receber riquezas nesta vida.
Obviamente estas e todas as outras caricaturas da ceia, incluindo a lenda do “Santo Graal” ou cálice secreto que Indiana Jones tenta encontrar em seu filme “A última cruzada”, nada têm a ver com o propósito da verdadeira ceia do Senhor. A genuína ceia do Senhor é celebrada na simplicidade do pão e do vinho representando o corpo morto de Jesus e seu sangue derramado, que apesar de ser celebrada em comunhão plural entre os participantes, não é deles que fala, mas de Cristo em sua morte. Ela é o monumento que o Senhor erigiu para recordarmos a obra que colocou um fim ao poder do diabo e resgatou bilhões de pecadores para viverem livres e eternamente com Cristo. Obviamente o inimigo continua fazendo de tudo para detonar esse monumento e tudo o que ele representa.