O que significa “pagar o último centavo”?
A passagem que gerou sua dúvida está em Lucas 12:54-59, e já posso lhe adiantar que ela nada tem a ver com alguma espécie de purificação pós-morte. A passagem diz: “E dizia também à multidão: Quando vedes a nuvem que vem do ocidente, logo dizeis: Lá vem chuva, e assim sucede. E, quando assopra o Sul, dizeis: Haverá calma; e assim sucede. Hipócritas, sabeis discernir a face da terra e do céu; como não sabeis então discernir este tempo? E por que não julgais também por vós mesmos o que é justo? Quando, pois, vais com o teu adversário ao magistrado, procura livrar-te dele no caminho; para que não suceda que te conduza ao juiz, e o juiz te entregue ao meirinho, e o meirinho te encerre na prisão. Digo-te que não sairás dali enquanto não pagares o derradeiro ceitil [ou centavo]” (Lucas 12:54-59).
Como estamos nos Evangelhos, e estes foram dirigidos primeiramente aos judeus que deveriam receber seu Messias, porém decidiram rejeitá-lo, é sempre importante entender o caráter dispensacional da passagem e sua relação com Israel. Jesus está se referindo à sua vinda, e depois de expressar os princípios que deveriam prevalecer em seu Reino, dirige-se certamente aos fariseus, pois começa a passagem chamando-os de “hipócritas”. William Kelly explica da seguinte maneira:
“Os homens eram bons para julgar os sinais do clima; eram sagazes o suficiente para formar uma opinião quanto àquilo que observavam, mas eram um tremendo fracasso em julgar aquilo que somos como seres humanos. O homem não consegue julgar aquilo que está moralmente acima dele; fazer um julgamento daquilo que lhe diz respeito em seu relacionamento para com Deus; em julgar o que concerne ao seu futuro eterno. Nestas coisas eles falharam miseravelmente, e eram hipócritas. Seu amor pelo mal tapava seus olhos com um véu de aparência religiosa e os tornava cegos. O amor por seus próprios interesses faziam com que fossem rápidos em discernir e praticar tudo o que dizia respeito às coisas desta vida. Mas falhavam completamente em suas consciências, e por isso o Senhor passa a reprová-los. O problema não estava apenas no fato de serem cegos para os sinais que Deus dava exteriormente, mas por que não podiam eles por si mesmos julgar aquilo que era o correto? Esta linguagem é peculiar de Lucas. Mateus fala dos sinais exteriores que Deus tinha prazer em apresentar a eles, mas não tinham olhos para isso. Somente Lucas fala de a responsabilidade de julgamento partir deles próprios, e não apenas basear-se num julgamento que já lhes chegava pronto de fora para dentro. A verdade é que tudo no interior deles estava errado, portanto não julgavam o que era certo.
Israel passava agora por seu julgamento, pois é aqui um obstáculo. Havia uma oportunidade de o povo ser liberto, mas será que iriam recusar? Será que jogariam fora essa oportunidade? Eles precisam aproveitá-la, já que não havia da parte deles diligência em serem achados dignos de merecer aquilo que Deus agora lhes garantia, pela presença de Jesus. Caso contrário a justiça seguiria o seu curso e eles seriam arrastados ao juiz, e o juiz certamente iria entregá-los ao meirinho e este lançá-los na prisão. O resultado seria que nunca poderiam sair dali até que tivessem pago o último ceitil. E isto é, na verdade, o que acabou ocorrendo com a história dos judeus. Eles continuam na prisão e não sairão dessa condição até que toda a dívida seja paga na forma de um castigo imposto por Deus, uma vez que o Senhor irá declarar que Jerusalém recebeu da mão de Deus o dobro por todos os seus pecados. Mas Deus não permitirá que Israel sofra mais. A misericórdia de Deus irá assumir a causa de seu povo no último dia, e sua mão irá executar plenamente aquilo que sua boca prometeu desde o princípio” - William Kelly em “Notes on the Gospel of Luke - The Bible Treasury”.
“Falai benignamente a Jerusalém, e bradai-lhe que já a sua milícia é acabada, que a sua iniquidade está expiada e que já recebeu em dobro da mão do Senhor, por todos os seus pecados“ (Isaías 40:2).
Se os judeus entendessem a importância do momento em que viviam, e estivessem prontos para identificar isso como identificavam as mudanças climáticas, iriam logo fazer as pazes com o adversário deles, no caso aqui representado por Deus, de quem todo ser humano é inimigo. “Porque se nós, sendo inimigos, fomos reconciliados com Deus pela morte de seu Filho, muito mais, tendo sido já reconciliados, seremos salvos pela sua vida” (Romanos 5:10). “E quanto àqueles meus inimigos que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui, e matai-os diante de mim“ (Lucas 19:27).
A Bíblia tem uma só interpretação, mas muitas aplicações. E podemos também pedir licença para usarmos a passagem de uma forma mais pessoal e evangelística, e não dentro do contexto dispensacional relacionado aos judeus, que foi a intenção inicial do Espírito que a inspirou.
Lemos aqui de “magistrado”, “meirinho”, “adversário”, “juiz”, “prisão” e “fiança”. A passagem usa termos extraídos dos sistemas judiciais humanos, porque é diante de um Juiz que todo aquele que não se converter irá se apresentar. Será um processo tão cristalino que não haverá qualquer dúvida de que o réu é culpado e digno de ser lançado nas prisões eternas, ou seja, no lago de fogo. A expressão “não sairás dali enquanto não pagares o derradeiro ceitil” é facilmente entendida quando lida no contexto de todo o plano divino, que mostra o homem pecador como não tendo condições de atender as santas demandas de Deus. Ou seja, ele nunca será capaz de pagar a tal fiança porque não possui recursos de si mesmo. Para todo pecador, nascido nessa condição por causa do pecado de Adão, vale o que foi dito ao Rei Belsazar em Daniel 5:27: “Pesado foste na balança, e foste achado em falta”.
Portanto, o significado aqui é de buscar o quanto antes a reconciliação com Deus porque se precisar enfrentar o Juiz não terá mais escapatória. A passagem nada tem a ver com um suposto purgatório ou expiação de pecados por meio de sofrimentos, orações ou boas obras. A doutrina católica do purgatório não é muito diferente do espiritismo e sua ilusão de reencarnação, e o diabo usa essas coisas para enganar as pessoas com a ilusão de que poderão purgar seus pecados depois ou voltar para pagá-los numa próxima vez. Uma vez vi o cartaz de um filme espírita que tinha um título mais ou menos assim: “Sempre existirá outra chance”.
Como todo ser humano gosta de deixar as coisas para depois nem é preciso dizer que preferem essas doutrinas. A grande preferência das celebridades pelo espiritismo é explicada pela vida dissoluta que muitas delas levam e não querem deixar de levar. Acham que deixando para depois, ainda que sejam conduzidas ao “juiz” e este as entregue ao “meirinho”, e o meirinho as “encerre na prisão, vivem na ilusão de que lá terão a chance de pagar a fiança, ou “o derradeiro ceitil”.
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, e eu vos aliviarei” (Mateus 11:28); “Respondeu-lhe, pois, Simão Pedro: Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna“ (João 6:68).