Não devo ser pobre nem rico?
A oração de Agur no capítulo 30 de Provérbios busca um caminho do meio entre pobreza e riqueza, dando suas razões para isso: Se for muito pobre poderá roubar, se for muito rico poderá se esquecer de Deus. O desejo de Agur é correto, mas não seria correto transformar isso em uma doutrina para a vida do cristão. Devemos sempre entender que o livro de Provérbios ensina a sabedoria e o bom senso para esta vida e para qualquer ser humano, seja ele convertido ou não.
Quando lemos a Bíblia devemos saber “manejar” ou “repartir” a “palavra da verdade” (2 Timóteo 2:15), isto é, entender a quem cada porção dela foi dirigida, e com que propósito. Aliado a isto, devemos entender que a revelação de Deus só ficou completa com o Novo Testamento, em especial com as epístolas dos apóstolos que trouxeram à tona mistérios desconhecidos até mesmo dos autores do Antigo Testamento.
Apenas a Paulo foram revelados ao menos nove mistérios que eram completamente desconhecidos antes: O mistério do evangelho da graça de Deus (Romanos 16:25-26); o mistério do endurecimento de Israel por um tempo (Romanos 11:25-27); o mistério do arrebatamento e da ressurreição do corpo de Cristo (1 Coríntios 15:51-53); o mistério do um só corpo, a Igreja (Efésios 3:1-9); o mistério da cidadania ou vocação celestial do crente no corpo de Cristo (Efésios 1:3; Filipenses 3:20-21); o mistério do propósito de Deus de reunir todas as coisas em Cristo na dispensação da plenitude dos tempos (Efésios 1:9-10); o mistério da graça de Deus (Romanos 6:14); o mistério da identificação do crente com Cristo (1 Coríntios 15:1-4); o mistério da iniquidade (2 Tessalonicenses 2:6-12).
Por isso devemos entender que existem diferentes patamares de conhecimento na Palavra de Deus, e quando encontramos uma verdade no Antigo Testamento devemos buscar no Novo se ocorreu, por assim dizer, um upgrade, como nas partes em que Jesus diz: ”ouvistes o que vos foi dito... eu porém vos digo”. Talvez uma figura que ajude a lidar com isto seria imaginar o Velho Testamento como a terra onde nossos pés ainda estão e o Novo Testamento como o céu onde nossa mente já está. Nós aprendemos no Velho Testamento princípios para o nosso andar aqui, mas é do Novo Testamento que vem o entendimento desse andar.
Portanto não se esqueça de que Provérbios é um livro de sabedoria para o homem natural vivendo na terra, ou seja, ali aprendemos a viver aqui no mundo de modo a evitar problemas, o que serve tanto para o crente quanto para o incrédulo. A ênfase demonstrada na repetição da frase ”filho meu” também demonstra termos ali princípios bastante apropriados para o homem na sua juventude, quando ainda não atingiu a idade adulta, ainda que isto não seja uma regra do texto.
Quando vamos para as epístolas temos um patamar mais elevado, pois a sabedoria ali é para o novo homem, que já não pede mais um meio termo entre riqueza ou pobreza, porém fica satisfeito com o que Deus determinar, inclusive com os extremos. O cristão já não avalia a si mesmo ou ao seu irmão com base no que tem ou não tem, pois Deus pode querer que uns tenham e outros não. O cristão vive no contentamento de ser suprido de acordo com a vontade de Deus, o que pode incluir apenas as suas necessidades, mas pode ser também de uma abundância que inclua as necessidades também de seus irmãos.
Quando vejo alguns cristãos defenderem que devem ser pobres eu me lembro do caso de José de Arimateia em Marcos 15:43: ”Chegou José de Arimatéia, senador honrado, que também esperava o reino de Deus, e ousadamente foi a Pilatos, e pediu o corpo de Jesus”. José era um homem rico e influente, e é dele, e também de Nicodemos, que fala a profecia de Isaías 53:9, que diz: ”E puseram a sua sepultura com os ímpios, e com o rico na sua morte”. Foi no túmulo desse homem rico e influente que o corpo de Jesus foi sepultado, depois de preparado, às custas de Nicodemos, com 34 quilos de uma mistura de mirra e aloés? A passagem em João 19 não revela o custo dessa mistura, mas podemos imaginar que fosse de milhares de dólares em dinheiro de hoje. O frasco de alabastro que a mulher em Marcos 14 quebrou para derramar seu unguento e ungir a Jesus foi avaliado em 300 denários pelos discípulos, o equivalente ao salário de um ano de um trabalhador. Imagine o quanto Nicodemos gastou com 34 quilos de unguento.
A pergunta é: será que Pilatos teria recebido algum dos pescadores discípulos de Jesus? Provavelmente não. Mas um ”senador honrado” tinha acesso ao governador, e Deus proveu um discípulo assim para aquela hora e também para doar o túmulo e o lençol para o corpo de Jesus, além de Nicodemos para pagar por todo aquele unguento aromático. Por sua soberana vontade Deus possui diferentes pessoas em diferentes postos na sociedade, e a responsabilidade destes é aprenderem a se contentar com o que possuem, seja a riqueza, a pobreza, ou um meio termo, como desejava Agur no capítulo 30 de Provérbios. Mas se ficarmos apenas com os pés no chão, como Agur, buscando só a sabedoria para a vida aqui conforme é apresentada em Provérbios, perderemos de vista o patamar mais elevado ao qual o apóstolo Paulo nos conduz em sua epístola aos Filipenses:
(Fp 4:11-13) ”Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido, e sei também ter abundância; em toda a maneira, e em todas as coisas estou instruído, tanto a ter fartura, como a ter fome; tanto a ter abundância, como a padecer necessidade. Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece”.
O apóstolo Paulo mostra uma experiência que vai além da experiência de Provérbios, colocando-se numa condição na qual ele já não pede nem riqueza, nem pobreza, nem um meio termo, mas deixa tudo nas mãos do Senhor. Por isso ele diz que sabe estar contente em todas as situações. Se em Provérbios encontramos Agur, dizendo de si mesmo ser bruto e ignorante, dependendo da sabedoria de Deus para esta terra e esta vida, na epístola vemos Paulo se colocando em um patamar superior ao homem na terra, porque ele mostra de onde vem o poder para estar contente em qualquer situação.
Hoje muitos cristãos assumem para si as promessas de prosperidade feitas a Israel no Antigo Testamento, caindo no erro da cobiça e ganância. Querem ser ricos a todo custo e ainda buscam no Antigo Testamento versículos para tentar amparar suas concupiscências carnais. No outro extremo temos os que pregam a pobreza extrema, como algumas ordens monásticas do catolicismo. Não se engane: a carne gananciosa é tão ruim quanto a carne religiosa. Conheci um grupo que se reunia sobre a premissa de que todo cristão devia ser pobre, e cada um ali se esforçava para parecer humilde. Perguntei ao líder deles o que faria se Deus quisesse que ele fosse rico, e ele respondeu que nunca seria, mesmo que Deus quisesse! O grupo se desfez depois que esse mesmo líder abandonou esposa e filha para se juntar a uma colega do trabalho.
A passagem de Provérbios 30 pode servir de antídoto à inclinação da carne, da qual fala a continuação do texto ao citar a sanguessuga que é insaciável. O homem sempre irá naturalmente querer poder e riquezas. Mas, por outro lado, o homem é também naturalmente religioso e existem aqueles que querem ser pobres para serem vistos como mais piedosos do que os que tem alguma riqueza. Todavia, seja na abundância, seja na necessidade, o cristão que tem sua mente nos céus pode dizer: ”Posso todas as coisas em Cristo que me fortalece”.