Quem pisa o Filho de Deus?
Sua pergunta foi mais no sentido de entender o que seria "fazer agravo" ou “ultrajar" o Espírito da graça, mas achei melhor responder incluindo toda a passagem onde aparece a expressão em Hebreus 10:29, pois o agravo é a terceira das três ofensas de um apóstata: "De quanto maior castigo cuidais vós será julgado merecedor aquele que pisar o Filho de Deus, e tiver por profano o sangue da aliança com que foi santificado, e fizer agravo ao Espírito da graça?".
O autor de Hebreus está falando aqui do apóstata, que é digno de "maior castigo" por causa da gravidade de seu pecado. O argumento é que, se a Lei de Moisés exigia a pena de morte para quem a transgredisse, Deus certamente irá tratar com maior rigor aquele que pecar contra o Filho de Deus, seu sangue e o Espírito da graça, já que são coisas infinitamente superiores à Lei. Esse pecado se dá em três aspectos.
Primeiro, ao "pisar o Filho de Deus" o apóstata (que abandonou a verdade) está insultando a Deus manifestado em carne. O apóstata não é um convertido e nem está salvo. É simplesmente alguém que um dia professou seguir Jesus, mas depois voltou para a lama como a porca lavada, pois nunca foi ovelha. Seja por palavras, seja por atos, ele acaba negando a Cristo como seu Salvador e o rejeita também como Senhor (ou aquele a quem deveria prestar obediência).
Segundo, ao considerar "profano o sangue da aliança com que foi santificado" o apóstata está desprezando a grande obra consumada pelo Filho de Deus na cruz do calvário. Considerar algo profano é dar pouco ou nenhum valor àquilo. Isto decorre como consequência de ter desprezado o Filho de Deus, pois foi para derramar seu sangue que Jesus consumou a obra que veio aqui fazer.
Alguém pode perguntar como tal pessoa pode não ter sido salva se foi santificada pelo sangue da aliança? Porque santificação não é sinônimo de salvação, e é fácil de entender isso por uma passagem em 1 Coríntios 7:14, que diz: "O marido descrente é santificado pela mulher; e a mulher descrente é santificada pelo marido". Isto não significa que o cônjuge descrente seja salvo, mas que está como que dentro de uma redoma que o separa do mundo e do resto das pessoas por viver em um lar com um cristão. Por causa da fé de sua esposa ou de seu esposo, tal pessoa acaba separada (ou santificada) de coisas que desagradam a Deus em razão do ambiente em que vive.
Terceiro, ao fazer agravo, ou desprezar, "o Espírito da graça", o apóstata estará desconsiderando a obra do próprio Espírito Santo que convence o mundo do pecado. Como poderia Deus tratar de outra maneira alguém que se faz surdo aos apelos do Espírito Santo em sua alma querendo convencê-lo do pecado? Como poderia ser salva a pessoa que, depois de ter sido iluminada (ou esclarecida) da verdade da graça de Deus, voltou as costas para a luz?
Esta passagem tem tudo a ver com aqueles que são mencionados em Hebreus 6:4-6, que o versículo diz que "uma vez foram iluminados, e provaram o dom celestial, e se tornaram participantes do Espírito Santo. E provaram a boa palavra de Deus, e as virtudes do século futuro, e recaíram". Deles a passagem continua dizendo que é impossível que "sejam outra vez renovados para arrependimento; pois assim, quanto a eles, de novo crucificam o Filho de Deus, e o expõem ao vitupério".
Esta passagem deve ser entendida no contexto da parábola do Semeador, na qual a semente cai em diferentes tipos de solo. Aquela parábola, embora seja bastante usada em evangelismo, não está falando de salvação, mas de como a semente da Palavra é recebida de maneiras diferentes por causa das diferentes disposições do coração. Na explicação da parábola em Mateus 13:19 vemos aquele que não entende a Palavra de Deus que lhe foi semeada, o que a recebe com alegria, porém sem convicção (o que chamamos de "oba-oba"), o que está tão ocupado com esta vida que, embora receba a Palavra esta fica infrutífera, e finalmente o que ouve, compreende e dá fruto.
Mesmo pessoas incrédulas podem reagir assim ao efeito da Palavra de Deus e até mudarem de vida, porque o assunto ali é o Reino dos Céus (e não o Céu), e lembre-se de que numa parábola seguinte ele irá dizer que no Reino existem pessoas que são joio e pessoas que são trigo.
Agora em Hebreus 6:7-8 temos uma ideia semelhante que fala também de semeadura e colheita: “Porque a terra que embebe a chuva, que muitas vezes cai sobre ela, e produz erva proveitosa para aqueles por quem é lavrada, recebe a bênção de Deus; mas a que produz espinhos e abrolhos, é reprovada, e perto está da maldição; o seu fim é ser queimada."
Veja que o assunto não é salvação, mas resultados, como é na parábola do Semeador. A distinção é feita no versículo seguinte: "Mas de vós, ó amados, esperamos coisas melhores, e coisas que acompanham a salvação, ainda que assim falamos” (Hb 6:9). Estes são os realmente salvos, pois mostram "coisas melhores, e coisas que acompanham a salvação".
É também o caso de Hebreus 10 onde, depois de descrever os apóstatas, que depois de terem professado a fé cristã (sem realmente crer), pisaram o Filho de Deus, tiveram por profano o sangue da aliança e fizeram agravo do Espírito. Destes o texto diz que "se ele recuar, a minha alma não tem prazer nele", porque alguém que recuou a este ponto é porque nunca realmente creu em Cristo. O versículo seguinte é o que fala dos verdadeiramente salvos: “Nós, porém, não somos daqueles que se retiram (ou recuam) para a perdição, mas daqueles que creem para a conservação da alma" (Hb 10:39).