As “filhas dos homens” eram descendentes de Caim?
Não vejo grande problema em você considerar que a passagem em Gênesis 6 esteja se referindo simplesmente aos homens da descendência de Sete (que você identifica como os “filhos de Deus”) que decidiram se unir a mulheres da descendência de Caim (que na sua opinião seriam as “filhas dos homens”). Apesar de o princípio poder ser aplicado em nossos dias para alertar os convertidos a não se unirem com inconversos, não acredito que seja exatamente o caso de Gênesis 6.
Interpretar a passagem como sendo os “filhos de Deus” os descendentes de Sete, ou seja, da linhagem que começou a invocar o nome do Senhor, que teriam se envolvido com mulheres da linhagem corrupta de Caim (as “filhas dos homens”) deixa alguns “furos” para serem resolvidos. Por exemplo, por que de tais casamentos teriam resultado seres humanos diferenciados, ou “os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama” (Gn 6:4)? Não faria sentido casamentos mistos entre crentes e incrédulos produzirem um tipo diferente de pessoa, mais forte, corajosa ou até de maior estatura física (que não acho ser o caso aqui para a palavra “gigantes”).
Além disso, se TODOS os descendentes de Sete tomaram para si mulheres descendentes de Caim, teriam TODAS as “filhas de Deus”, por assim dizer, ficado solteiras? (Se chamarmos assim as descendentes de Sete, o que a Bíblia não chama). Não deveriam elas ter sido poupadas do dilúvio e estarem na arca com Noé e sua família?
Outra dificuldade é que o capítulo 6 começa dizendo que “como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas”, para depois identificar essas filhas como “filhas dos homens”, para mim parece muito claro que esses “homens” que se multiplicam no versículo 1 de Gênesis 6 são no sentido geral da humanidade. Tanto é que a palavra em hebraico usada aí é “adam”, o mesmo nome de Adão, que tem o sentido de humanidade. Uma leitura alternativa usando a palavra original hebraica seria:
(Gn 6:1-4) “E aconteceu que, como os descendentes de Adão começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as descendentes de Adão eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. Então disse o Senhor: não contenderá o meu Espírito para sempre com os descendentes de Adão; porque eles também são carne; porém os seus dias serão cento e vinte anos. Havia naqueles dias gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às descendentes de Adão e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os homens de fama”.
Os versículos que você citou não ajudam a sustentar sua opinião. 1 Reis 11:1-4 não está falando de “filhos de Deus”, mas de “filhos de Israel” em contraste com os gentios. Idem para Deuteronômio 7:1-4. Perceba que na Bíblia os únicos que são chamados de “filho de Deus” ou “filhos de Deus” são o próprio Senhor Jesus (Dn 3:25; Mateus 4:3, 8:9, 14:33 etc.), os anjos (Gn 6:2, 4; Jó 1:6, 2:1, 38:7), Adão (Lc 3:38) e os salvos na atual dispensação (Jo 1:12), ninguém mais. A única exceção talvez seja Isaías 45:11 mas fica claro pelo contexto que ali está falando de “filhos” no sentido de criaturas. Portanto você não encontrará ninguém no Antigo Testamento, exceto Adão (cuja menção como “filho” é feita só nos evangelhos), tendo a designação de filho de Deus senão os anjos (e o próprio Senhor).
A passagem a que se refere como mostrando ser impossível que anjos tomassem mulheres deixa claro que o Senhor está falando de como as coisas acontecem no céu, não na terra: “serão como os anjos de Deus no céu” (Mt 22:30). Ao descerem para a terra na forma humana os anjos comem, bebem e até são desejados pelos sodomitas, que querem ter relações sexuais com eles. Se Ló propõe entregar suas filhas virgens para serem estupradas pelos sodomitas é porque a forma humana que os anjos assumiram era de homens em corpos anatomicamente completo, ou não teriam sido desejados pelos sodomitas:
(Gn 19:1-8) “E vieram os dois anjos a Sodoma à tarde, e estava Ló assentado à porta de Sodoma; e vendo-os Ló, levantou-se ao seu encontro e inclinou-se com o rosto à terra; e disse: eis agora, meus senhores, entrai, peço-vos, em casa de vosso servo, e passai nela a noite, e lavai os vossos pés; e de madrugada vos levantareis e ireis vosso caminho. E eles disseram: não, antes na rua passaremos a noite. E porfiou com eles muito, e vieram com ele, e entraram em sua casa; e fez-lhes banquete, e cozeu bolos sem levedura, e comeram. E antes que se deitassem, cercaram a casa, os homens daquela cidade, os homens de Sodoma, desde o moço até ao velho; todo o povo de todos os bairros. E chamaram a Ló, e disseram-lhe: onde estão os homens que a ti vieram nesta noite? Traze-os fora a nós, para que os conheçamos. Então saiu Ló a eles à porta, e fechou a porta atrás de si, e disse: meus irmãos, rogo-vos que não façais mal; eis aqui, duas filhas tenho, que ainda não conheceram homens; fora vo-las trarei, e fareis delas como bom for aos vossos olhos; somente nada façais a estes homens, porque por isso vieram à sombra do meu telhado”.
A passagem que citou de João3:6 também não se aplica, porque ali Jesus está falando da diferença entre o que é nascido da carne e o que é nascido do Espírito Santo, e não de seres com corpos físicos e seres angelicais. “O que é nascido da carne é carne, e o que é nascido do Espírito é espírito” (Jo 3:6).
Se ler com atenção Judas 1:6 verá que ali fala de anjos caídos, mas não de todos eles, apenas dos que deixaram sua habitação ou “tabernáculo”. A palavra grega é “oiketerion”, a mesma que Paulo usa ao referir-se a deixar seu corpo humano para assumir um corpo celestial em 2 Coríntios 5:2 “E por isso também gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação, que é do céu”. Os anjos de Jd 1:6 não são todos os anjos, no sentido genérico da queda dos anjos, já que ali fala que estão em prisões eternas até o dia do juízo, o que obviamente não é a atual condição de TODOS os anjos caídos.
O próprio contexto da passagem fala de abandonar a condição determinada por Deus para agir de modo diferente, pois a passagem de Judas 1:6 é seguida do evento de Sodoma e Gomorra, onde os homens não apenas tinham deixado sua condição natural de homens, buscando ter relações sexuais com outros homens, mas até tentaram fazer o mesmo com os anjos de Deus que tinham sido enviados para lá.
E veja como existem semelhanças entre as passagens de Judas, 2 Pedro e Romanos no sentido de fazerem referência ao juízo que vem de se deixar a condição original da criação de Deus para ter relações sexuais com seres de outra condição. Sempre que existe uma corrupção da natureza dos seres criados, sejam eles anjos ou humanos, pode-se esperar um juízo.
(Jd 1:6-7) “E aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia; assim como Sodoma e Gomorra, e as cidades circunvizinhas, que, havendo-se entregue à fornicação como aqueles, e ido após outra carne, foram postas por exemplo, sofrendo a pena do fogo eterno”.
(2 Pe 2:4-6) “Porque, se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no inferno, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo; e não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé, pregoeiro da justiça, com mais sete pessoas, ao trazer o dilúvio sobre o mundo dos ímpios; e condenou à destruição as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinza, e pondo-as para exemplo aos que vivessem impiamente”.
(Rm 1:26) “Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro”.
William MacDonald comenta a respeito de Gênesis 6, 2 Pe 2 e Judas 1: “Parece nas Escrituras que ocorreram ao menos duas apostasias de anjos. Uma quando Lúcifer caiu e provavelmente envolveu um exército de outros seres angelicais em sua rebelião. Esses anjos caídos não estão presos atualmente. O diabo e seus demônios estão ativos em guerrear contra o Senhor e Seu povo. A outra apostasia de anjos é a de que fala Judas e também Pedro (2 Pe 2:4). Existe uma considerável diferença de opiniões entre estudiosos da Bíblia quanto ao evento citado aqui. O que sugerimos é uma opinião pessoal e não uma asserção dogmática de um fato.
Acreditamos que Judas esteja se referindo ao que está registrado em Gênesis 6:1-7. Os filhos de Deus deixaram sua condição natural como seres angelicais, desceram à terra na forma humana, e uniram-se às filhas dos homens. Essa união marital foi contrária à ordem de Deus e uma abominação a Ele. Pode ser que o versículo 4 sugira que esses casamentos contrários à natureza produziram seres de grande força e maldade. Seja isto verdade ou não, fica claro que Deus estava completamente descontente com a impiedade do homem nessa época e determinou destruir a terra com um dilúvio.
Existem três objeções a este ponto de vista: (1) A passagem em Gênesis não fala de anjos, mas apenas de “filhos de Deus”; (2) Os anjos são assexuados; (3) Os anjos não se casam. É verdade que a passagem não fala especificamente de anjos, mas também é verdade que o termo “filhos de Deus” se refere a anjos nas línguas semíticas (veja Jó 1:6, 2:1). Não existe qualquer afirmação na Bíblia de que os anjos sejam assexuados. Os anjos às vezes apareceram na terra na forma humana, possuindo membros e apetites humanos (Gn 18:2-22, 19:1, 3-5). A Bíblia não diz que os anjos não se casam, mas apenas que no céu eles não se casam e nem se dão em casamento (Mt 22:30)” [traduzido de “Believer's Bible Commentary”, William MacDonald].
F. B. Hole comenta assim:
“Ao abrirmos Gênesis 6:1-22, somos transportados aos últimos séculos da era antediluviana, quando a população tinha aumentado consideravelmente e a maldade humana chegou ao seu clímax. Muitos têm entendido o termo “filhos de Deus” como se referindo aos homens da linhagem de Sete, a linhagem da fé, que teriam caído de sua posição e se casado com as filhas da linhagem de Caim, mas nós concordamos com os que aceitam o termo como significando seres de caráter angelical, como isso é claramente indicado em passagens como Jó 1:6, 2:1 e 38:7. Como tal conexão possa ter acontecido, resultando na descendência de super-humanos em tamanho e força, nós não sabemos, mas cremos que Judas 1:6-7 confirma o que estamos dizendo. Sodoma e Gomorra foram atrás de “carne estranha”, cometendo assim um enorme pecado como seria proibido em Êxodo 22:19, e estes filhos de Deus fizeram o mesmo em princípio, quando foram atrás das filhas dos homens. Eles, portanto, apostataram, deixando sua condição original e, para que não repetissem tal ofensa, estão presos em cadeias eternas nas trevas até que lhes venha a perdição eterna. Eles serão finalmente julgados no grande dia do grande trono branco.
Todavia em Gênesis nos é mencionado apenas o terrível efeito disso no mundo dos homens. Os homens monstruosos que foram produzidos eram monstros de iniquidade, enchendo a terra com violência e corrupção. Porém o homem é tão caído que esses monstros, ao invés de terem sido considerados homens infames, foram tratados como homens de renome. Sem dúvida alguma eles foram os que deram origem às lendas de “deuses” e “deusas” e “Titãs” etc. que chegaram até nós nos escritos da antiguidade. Elas são normalmente consideradas meras fábulas, mas ao que parece possuem um fundamento bem maior em fatos do que muitos gostariam de admitir”. [Traduzido de “Genesis”, Frank Binford Hole].