O testemunho do Senhor foi interrompido?

A ideia de congregar fora dos sistemas denominacionais tem atraído a muitos. Na maioria das vezes as pessoas estão cansadas de todos os descalabros que encontram nas denominações e acabam fugindo delas para criarem grupos autônomos e independentes, considerando-se assim uma espécie de “igreja restaurada” ou “obra de restauração” da igreja, como se Deus estivesse recomeçando a partir do zero aquilo que deu errado no princípio.

Entendo que o testemunho do Senhor nunca tenha sido interrompido, ao longo dos mais de mil anos de domínio do catolicismo romano, e nem tenha sido restaurado no princípio do século 19, que é de quando temos registros de irmãos congregados ao nome do Senhor fora dos sistemas religiosos. O testemunho do Senhor sempre existiu, por mais tênue e tremulante que fosse sua luz, ao ponto de nem ter sido notado e anotado nos livros de história da Igreja. O que foi recuperado no século 19 foram as verdades sobre o corpo de Cristo, o arrebatamento da Igreja, as promessas para Israel, etc., mas tudo isso existia na Palavra de Deus e apenas estava oculto sob o entulho da religião, tanto católica quanto protestante. De modo semelhante como aconteceu com a verdade da salvação pela fé, encoberta durante séculos de papismo e recuperada por Lutero, Calvino e outros na Reforma Protestante.

Todavia, a ordem dada a Filadélfia não foi de renovar ou restaurar o testemunho à sua glória original, mas apenas de conservar ou guardar aquilo que já tinha “guarda o que tens”, diz o Senhor em Apocalipse 3:11. O testemunho de Deus sempre existiu neste mundo e é ele quem cuida para que permaneça, dando a alguns a responsabilidade de guardá-lo. Ao referir-se aos tempos antigos, Paulo atesta que Deus nunca deixou a si mesmo sem um testemunho neste mundo. “O qual nos tempos passados deixou andar todas as nações em seus próprios caminhos. E, contudo, não se deixou a si mesmo sem testemunho, beneficiando-vos lá do céu, dando-vos chuvas e tempos frutíferos, enchendo de mantimento e de alegria os vossos corações” (Atos 14:16-17).

Sendo assim, reconhecemos que não é nosso esforço restaurar algo, mas é nossa responsabilidade manter aquilo que o Senhor coloca em nossas mãos, e neste sentido falo do testemunho do Senhor de que há um só corpo. Quando o testemunho de uma maneira geral já tinha sido arruinado no início da história da Igreja, pois vemos o clericalismo e as más doutrinas permeando a cristandade logo após a partida dos apóstolos, Deus entregou o testemunho a um remanescente que lhe fosse fiel, como sempre fez no seu modo de agir ao longo dos tempos.

A segunda epístola a Timóteo é a última carta de Paulo e traz instruções para os últimos dias. Ela não foi escrita a uma igreja, como Romanos, Coríntios, Efésios e outras, mas a um indivíduo, e revela particulares proféticos em seu último capítulo, como o fato de todos terem abandonado o apóstolo. Portanto será bom olharmos para ela como instruções para dias de ruína como os nossos. Nela Paulo diz: “Não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor, nem de mim, que sou prisioneiro seu; antes participa das aflições do evangelho segundo o poder de Deus” (2 Tm 1:8).

No capítulo 3 Paulo discorre de como estaria a cristandade nos “últimos dias”, porque o assunto da epístola é a “grande casa” em que se tornou a “casa de Deus” de 1 Timóteo 3:15. Na “grande casa” haveria “homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afeto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos dos deleites do que amigos de Deus, tendo aparência de piedade, mas negando a eficácia dela” (2 Tm 3:1-5).

Se você é daqueles que acham que a cristandade atual está “uma bênção” e que a TV está cheia de “homens santos” colaborando para e expansão da Verdade de Deus, então é melhor nem continuar lendo o que vou dizer aqui. A verdade é que a “casa de Deus” está uma ruína e a ordem agora é apartar-se do mal. A ordem não é para decidir quem é ou não do Senhor, mas para apartar-se dos vasos de desonra e da má doutrina para ser um vaso de honra para Deus, como nos ensina 2 Timóteo 2:19-22:

“Todavia o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são seus, e qualquer que profere o nome de Cristo aparte-se da iniquidade. Ora, numa grande casa não somente há vasos de ouro e de prata, mas também de pau e de barro; uns para honra, outros, porém, para desonra. De sorte que, se alguém se purificar destas coisas, será vaso para honra, santificado e idôneo para uso do Senhor, e preparado para toda a boa obra. Foge também das paixões da mocidade; e segue a justiça, a fé, o amor, e a paz com os que, com um coração puro, invocam o Senhor”.

O fundamento de Deus continua firme e mesmo com tanta apostasia a promessa do Senhor de que as portas do inferno não prevaleceriam contra a Igreja continuará valendo. O que Cristo edifica é permanente, mas aquilo que foi dado ao homem edificar foi arruinado pela iniquidade moral, doutrinal e eclesiástica, esta última diretamente ligada à expressão “grande casa”, um lugar onde há mistura de bom e ruim.

A pergunta que pode surgir aqui agora é: “Mas o que é o testemunho do Senhor”? Veja que não estou falando agora do testemunho de Deus, que ele pode dar até por intermédio das coisas criadas. Estamos falando do “testemunho de nosso Senhor Jesus Cristo” (2 Tm 1:8), do qual Paulo escreveu no contexto de toda a carta a Timóteo.

Quando uma pessoa parte para uma terra distante, ao chamar sua família para a despedida é provável que as últimas instruções que dê sejam as mais importantes. Quais foram as últimas instruções dadas pelo Senhor na Palavra de Deus, aquelas que nunca antes tinham sido mencionadas? E a quem ele deu essas últimas palavras ou doutrina? Certamente não estou falando do livro de Apocalipse, pois este não é um livro doutrinário para a Igreja, mas a revelação das coisas que irão acontecer no mundo envolvendo Israel e as nações, ainda que comece com instruções dadas à Igreja, porém num sentido amplo e profético.

Mas quando João recebeu a revelação das últimas coisas, a revelação do que era o testemunho de Deus já havia sido dada e encerrada por intermédio de outro apóstolo, Paulo. Em Apocalipse você reencontra muitas dessas verdades a respeito do testemunho do Senhor, mas foi Paulo o vaso escolhido por Deus para tornar esse testemunho conhecido. A Paulo foi revelada a verdade do corpo de Cristo, e esta só poderia ter sido revelada depois de Cristo morrer, ressuscitar, ascender ao céu e assentar-se à destra de Deus em glória.

Ora, é muito evidente, portanto, que o testemunho do Senhor é o próprio Senhor como Centro e a Cabeça da Igreja. Não estamos congregados a uma verdade acerca do Senhor, e também não estamos congregados ao corpo de Cristo, do qual fazemos parte, mas estamos congregados a Cristo dentro do princípio de que há “um só corpo”. Cristo no centro, como a Cabeça da Igreja, é o que nos leva a congregar. Se estivermos congregados a uma doutrina ou princípio, por mais bíblico que seja, seremos uma seita. Mas se estivermos congregados a Cristo, a Cabeça do corpo, podemos receber as palavras de encorajamento de Paulo a Timóteo: “Portanto, não te envergonhes do testemunho de nosso Senhor” (2 Tm 1:8).

Resumindo, o testemunho do Senhor compreende basicamente três coisas: Primeiro, a revelação do mistério que foi dada a Paulo, de que há um só corpo do qual Cristo é a cabeça; segundo, de que a mesa do Senhor é a expressão de comunhão nesse um só corpo e, terceiro, que a Igreja, a noiva do Cordeiro, é um povo celestial e distinto de Israel, e será arrebatada inteira para se encontrar com o Senhor nos ares. Na verdade, isto até mesmo resume toda a doutrina de Paulo, que o apóstolo exortava Timóteo a guardar.

“Conserva o modelo das sãs palavras (ou 'sã doutrina') que de mim tens ouvido, na fé e no amor que há em Cristo Jesus. Guarda o bom depósito pelo Espírito Santo que habita em nós. Bem sabes isto, que os que estão na Ásia todos se apartaram de mim; entre os quais foram Figelo e Hermógenes” (2 Tm 1:13-15).

Tratando agora diretamente de sua pergunta, que é se Deus manteve um testemunho assim desde o princípio até os nossos dias, a resposta é sim, pois esta é a maneira de Deus agir. Quando tudo mais falha ele cuida para que exista um remanescente que seja fiel em levar essa luz. No passado vemos isso ser feito na forma de indivíduos, quando tudo ao redor estava arruinado. É o caso de Abel, Enoque, Noé e Abraão. Elias foi um testemunho fiel a Deus individualmente, e precisou engolir seu orgulho quando Deus revelou que sete mil de seu tempo também não tinham dobrado seus joelhos a Baal e permaneceram fiéis a Jeová.

Quando chegamos ao Novo Testamento vamos encontrar um pequeno testemunho de pessoas que permaneciam fiéis a Deus, como Maria, José, Isabel, João Batista e seus discípulos, Ana e Simeão no templo, e outros mais, sempre à margem do mundo e do sistema religioso predominante. Ao estabelecer as bases para o seu testemunho na terra, o Senhor não previu que seria algo grande, mas prometeu estar no meio de “dois ou três” (Mt 18:20). A igreja começou com apenas 120 pessoas reunidas em um cenáculo (aposento alto, acima do nível do chão) e logo ganhou três mil novos convertidos acrescentados ao corpo de Cristo através da pregação de Pedro, os quais igualmente receberam o selo do Espírito Santo, característico da presente dispensação. Mas não demorou em surgirem os falsos, como Simão, o mago, que apenas foram batizados, mas não tinham o Espírito. Assim a ruína foi se estabelecendo e caminhando a par e passo com o testemunho do Senhor. Paulo fala dos que o abandonaram, e o abandono da doutrina de Paulo é uma das principais características maléficas da cristandade de nossos dias.

Se não temos registros históricos de um remanescente que se guardou e foi guardado pelo Senhor nos primórdios da história da Igreja, mantendo-se à margem da corrente da religião cristã, temos nas sete cartas de Apocalipse2 e 3 indícios de que esse remanescente existia. As quatro últimas cartas são representativas das últimas quatro diferentes épocas do testemunho cristão no mundo, observando-se que todas elas permaneceriam até a vinda do Senhor para buscar sua igreja, pois apenas nestas o Senhor faz referência à sua vinda.

Aos de Tiatira, que representa o sistema católico romano, ele diz: “Mas o que tendes, retende-o até que eu venha” (Ap 2:24). Aos de Sardes, que representa a reforma protestante, ele alerta: “virei sobre ti como um ladrão” (Ap 3:3). Aos de Filadélfia, que tem como características ter pouca força, guardar a Palavra e não negar o nome do Senhor, ele encoraja: “Eis que venho sem demora” (Ap 3:11). Ao último e pior estado de toda a cristandade na terra, diz: “Eis que estou à porta” (Ap 3:20).

Nas mesmas quatro épocas representadas por estas quatro últimas cartas às quatro igrejas o Senhor revela possuir um remanescente fiel a si. Em Éfeso, Esmirna e Pérgamo o texto revela que a parcela menor era dos que não eram fiéis, como em Éfeso “os que dizem ser apóstolos, e o não são” (Ap 2:2), em Esmirna “os que se dizem judeus, e não o são, mas são sinagoga de Satanás” (Ap 2:9) e em Pérgamo “os que seguem a doutrina de Balaão” (Ap 2:14).

Mas na carta seguinte, a Tiatira, que representa justamente o início do catolicismo romano, quando o cristianismo foi transformado em religião oficial, é uma minoria ou remanescente que é encorajada: “Mas eu vos digo a vós, e aos restantes (remanescente) que estão em Tiatira, a todos quantos não têm esta doutrina... o que tendes, retende-o até que eu venha” (Ap 2:24). Em Sardes também existe um remanescente, identificado como “algumas pessoas que não contaminaram suas vestes, e comigo andarão de branco; porquanto são dignas disso” (Ap 3:4), e aos de Filadélfia o encorajamento é dado no sentido de guardarem o que tinham: “Guarda o que tens” (Ap 3:11). Já a Laodiceia, o último estado da cristandade na terra, esse testemunho é tão pequeno que é tratado ali como “alguém”: “Se alguém ouvir a minha voz, e abrir a porta, entrarei em sua casa, e com ele cearei e ele comigo” (Ap 3:20).

Por estas e outras razões é que acredito que o Senhor sempre teve um testemunho seu neste mundo e terá até a derradeira hora, quando chamar sua Igreja no arrebatamento para encontrá-lo nos ares, entre nuvens, para estar para sempre com ele. A partir de então ele terá outro remanescente para levar o evangelho e o testemunho do Reino que estará prestes a ser estabelecido, formado por judeus convertidos que ele considerará o verdadeiro Israel.

Mas uma coisa deve ser lembrada: Nas cartas às Igrejas em Apocalipse aqueles que são identificados como sendo o remanescente não dizem isto de si mesmos. É o Senhor quem testifica deles, como faz em Filadélfia, prometendo ainda que tinham diante de si uma porta aberta que ninguém poderia fechar: “Tendo pouca força, guardaste a minha palavra e não negaste o meu nome” (Ap 3:8). Não é Filadélfia que diz isto de si mesma, mas o Senhor que a enxerga assim. Por outro lado, Laodiceia fala de si e se considera grande coisa: “Rico sou, e estou enriquecido, e de nada tenho falta” (Ap 3:17). A opinião do Senhor a seu respeito é bem diferente: “Não sabes que és um desgraçado, e miserável, e pobre, e cego, e nu... vomitar-te-ei da minha boca” (Ap 3:16-17).