O dispensacionalismo tem erros graves?
Você disse que o site que visitou não está vinculado a nenhuma denominação, mas a verdade é que apenas o site não está vinculado. Seu autor e todos os demais autores ali são clérigos ou leigos ligados a algum sistema religioso denominacional. O próprio dono do site faz parte da liderança de uma igreja presbiteriana. A doutrina do site é presbiteriana em sua essência e os presbiterianos seguem a ”Teologia do Pacto”, sobre a qual estou traduzindo um livro de Bruce Anstey em www.dispensacao.blogspot.com.
Não é de surpreender que o presbiterianismo (cujos líderes são chamados de “Reverendos”) seja avesso ao dispensacionalismo, mas não pense que o problema deles está na escatologia. O cerne da questão é que quando irmãos do século 19 (como Darby, Kelly, Mackintosh, Bellett, Dennett, Fereday, etc.) resgataram a verdade da Igreja e de sua posição distinta em relação a Israel, resgataram também o ensino de como a igreja deve funcionar, revelando assim a falta de fundamento bíblico para cargos e posições como “reverendos” dirigindo a congregação, ou “pastores” formados por cursos de teologia e ordenados por homens (e não como um dom dado por Cristo).
É evidente que quando alguém contesta essa estrutura clerical e eclesiástica não faltarão clérigos que se sentem ameaçados de perder seus empregos e logo adotem uma estratégia de “demonizar” tudo o que os irmãos do século 19 escreveram sobre as dispensações e outros assuntos.
O artigo que você enviou, chamado de ”Os erros do dispensacionalismo”, e escrito pelo Reverendo Ronald Hanko, chega a ser engraçado pela ingenuidade com que distorce o dispensacionalismo para depois apontar o que supostamente seriam erros. Começa citando a “Bíblia de Estudo Scofield”, escrita por outro “reverendo” que meramente adotou parte do ensino dos irmãos do século 19, mas deixou de fora aquilo que obviamente comprometeria sua posição de líder de uma denominação.
Então fala dos ”erros flagrantes do dispensacionalismo”, entre os quais estaria o que chama de ”método falho de interpretar a Escritura”, a saber, que ”o dispensacionalismo segue um literalismo escrito que, como um escritor aponta, é realmente o literalismo dos fariseus, que não viram e não podiam ver que Cristo era um Rei espiritual, e assim o crucificaram”. O que ele está dizendo é que considerar a Bíblia como sendo a literal revelação de Deus é um ”método falho de interpretar a Escritura”. Porém o apóstolo Paulo, ao explicar a revelação que foi dada aos apóstolos, aponta a literalidade da revelação, palavra a palavra:
“Mas, como está escrito: As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, E não subiram ao coração do homem, São as que Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou pelo seu Espírito; porque o Espírito penetra todas as coisas, ainda as profundezas de Deus. Porque, qual dos homens sabe as coisas do homem, senão o espírito do homem, que nele está? Assim também ninguém sabe as coisas de Deus, senão o Espírito de Deus. Mas nós não recebemos o espírito do mundo, mas o Espírito que provém de Deus, para que pudéssemos conhecer o que nos é dado gratuitamente por Deus. As quais [coisas de Deus] também falamos, não com PALAVRAS de sabedoria humana, mas com as [PALAVRAS] que o Espírito Santo ensina, comparando as coisas espirituais com as espirituais” (1 Co 2:9-13).
Além de considerar a interpretação literal das escrituras como um ”método falho de interpretar”, o autor diz que o dispensacionalismo ensinaria que ”todo o Antigo Testamento e algumas partes do Novo Testamento são aplicados aos judeus e nos é dito não haver nenhuma aplicação aos cristãos no Novo Testamento, exceto talvez como um objeto de curiosidade”. Isto que ele faz é deturpar um ensino para depois dizer que o ensino é deturpado, e em seguida explicar que ”toda Escritura é proveitosa e aplicável aos cristãos” como se os dispensacionalistas não ensinassem assim.
Ora, nenhum irmão dentre os que creem nas dispensações ousaria dizer que o Antigo Testamento é apenas ”um objeto de curiosidade”. O Antigo Testamento é a Palavra de Deus, porém deve ser entendido em seu contexto e à luz da doutrina dada à Igreja e encontrada nas epístolas do Novo Testamento. E essa mesma doutrina nos ensina que o que foi escrito no Antigo Testamento foi escrito para nosso proveito, não para ser aplicado ”ipsis litteris” a hoje, mas como sombras e figuras que apontavam para a revelação completa que temos hoje em Cristo. A razão? Simples, os próprios apóstolos disseram que era para ser assim:
(Cl 2:16-17) ”Portanto, ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sábados, Que são sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo”.
(Hb 8:5) ”Os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais...”.
(Hb 10:1) ”Porque tendo a lei a sombra dos bens futuros, e não a imagem exata das coisas...”.
(1 Co 10:6) ”E estas coisas foram-nos feitas em figura, para que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram”.
(Hb 9:24) ”Porque Cristo não entrou num santuário feito por mãos, figura do verdadeiro...”.
O artigo termina dizendo que ”é a oposição do dispensacionalismo à espiritualização que leva à sua negação do reino celestial e espiritual de Cristo. É a visão errônea das Escrituras adotada pelo dispensacionalismo que é a raiz de todos os seus erros”. Por “espiritualização” entenda que ele quer dizer que as coisas que estão na Palavra de Deus não devem ser consideradas em seu contexto histórico ou dispensacional (para serem aplicadas segundo seu contexto, quando foram ditas e a quem foram ditas), mas devem ser ”espiritualizadas”. Assim, sempre que você encontrasse “Israel” no Antigo Testamento deveria ”espiritualizar” a palavra e transformá-la em ”Igreja”. Mas se o autor do artigo tivesse lido o que está na primeira edição da Bíblia King James de 1535, teria visto este comentário de Miles Coverdale no prefácio: ”Será de grande auxílio para entenderes as Escrituras se atentares, não apenas para o que é dito ou escrito, mas de quem e para quem, com que palavras, em que época, onde, com que intenção, em que circunstâncias, e considerando o que vem antes e o que vem depois”.
A dificuldade da ideia usada pela ”Teologia do Pacto” de ”espiritualizar” a interpretação da Bíblia está em saber se devemos ”espiritualizar” também os verbos, porque quando o Senhor Jesus diz em Mt 16 ”edificarei a minha igreja” (Mt 16:18), porque qualquer pessoa com um mínimo de bom senso saberia que ele estava se referindo a algo ainda futuro, que seria edificado, e não que já existia em sua própria época (o período dos evangelhos).
Foi por ”espiritualizar” o Antigo Testamento e considerar as bênçãos e promessas a Israel como pertencentes à Igreja que o catolicismo e o protestantismo perseguiram os judeus e buscaram a conquista do mundo até com o uso de armas. Nessa visão Jesus só viria quando os cristãos tivessem levado o evangelho a todo o mundo e estabelecessem aqui o Reino. Portanto valeria tudo nessa empreitada, inclusive as “Cruzadas” e as guerras chamadas “santas”. Afinal, no Antigo Testamento Deus ordenava a Israel que dizimasse os exércitos inimigos.
O que pouca gente sabe é que essa doutrina ”espiritualiza” também a esperança do cristão de modo a colocá-la na terra, e não no céu. Ou seja, a “espiritualização” aí funciona mais como uma ”materialização” do que é ensinado, prometendo que a Igreja no futuro viveria numa terra restaurada (promessa feita a Israel no Antigo Testamento) e não nos ”novos céus” com Cristo, como vemos em Apocalipse. Por isso a igreja não estaria aqui no caráter de peregrina e estrangeira, mas apenas aguardando a oportunidade para tomar de assalto a terra e desfrutar das promessas feitas a Israel (ou devo dizer Igreja?) no Antigo Testamento. A consequência mais moderna e perniciosa dessa doutrina é a ”Teologia da Prosperidade”. Afinal, se Deus prometeu saúde e riqueza, por que razão não as reivindicar para o aqui e agora?
Mas não são todos os clérigos que têm essa aversão aos ensinos dos irmãos, como a demonstrada pelo autor desse artigo. O conhecido evangelista do século 19, D. L. Moody, disse que se todos os livros do mundo fossem queimados ele ficaria contente se lhe restassem uma cópia da Bíblia e uma coleção dos comentários de C. H. Mackintosh sobre o Pentateuco. C. H. Spurgeon disse de William Kelly que ele era “um escritor eminente da escola exclusivista de Plymouth (...) expõe habilmente as escrituras, mas com um toque peculiar do seu partido teológico. (...). Kelly é um homem que, nascido para o universo, estreitou sua mente para um movimento”. D.M. Panton (outro pastor protestante) disse que “o movimento dos irmãos e sua importância é muito maior que a Reforma”, e Griffith Thomas, clérigo anglicano, que “entre os filhos de Deus foram eles os mais capazes em dividir corretamente a Palavra da verdade”.
A título de curiosidade, vale lembrar que muitos clérigos e teólogos abraçaram em parte os ensinos dispensacionalistas dos irmãos do século 19. Os mais conhecidos são Cyrus. I. Scofield, D. L. Moody, Donald Grey Barnhouse, Charles E. Fuller, M. R. DeHaan, Jerry Falwell, Jim Bakker, Paul Crouch, Pat Robertson, Jimmy Swaggart, Billy Graham, Charles Ryrie, Dwight Pentecost, John Walvoord, Eric Sauer, Charles Dyer, Tim LaHaye, Grant Jeffrey e Hal Lindsey. Além de presidentes norte-americanos como Jimmie Carter e Ronald Reagan e organizações como Moody Bible Institute, Dallas Theological Seminary e International Christian Embassy, Jerusalém.