As cartas dos apóstolos são para nós?
Sim e não. A primeira forma de identificar se uma carta foi escrita para você é observar o pronome usado. Se o apóstolo escreve “vós” ou “vocês” então ela foi escrita para muitas pessoas, e isso pode incluir “nós”. Se ele diz “tu” ou “você” então é uma carta pessoal e individual. Em ambos os casos podem existir particularidades apenas para aquele grupo específico de cristãos quando dirigida a uma igreja, ou coisas que são genéricas ou suficientes para também servirem para mim e para você numa carta pessoal. Para isso vale a instrução, dada a Timóteo, mas que nos pode ser útil: “Procura apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja [divide ou reparte] bem a palavra da verdade” (2 Tm 2:15).
Tome como exemplo o endereçamento da carta de Paulo aos Coríntios: “Paulo (chamado apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus), e o irmão Sóstenes, à igreja de Deus que está em Corinto, aos santificados em Cristo Jesus, chamados santos, com todos os que em todo o lugar invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso: Graça e paz da parte de Deus nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo” (1 Co 1:1-3). Repare que o endereçamento é, ao mesmo tempo, para a assembleia em Corinto (“à igreja de Deus que está em Corinto”), e também para nós que cremos em Cristo, não importa onde: “aos santificados em Cristo Jesus, chamados santos, com todos os que em todo o lugar...”.
Na carta o autor pode tratar de assuntos particulares à assembleia em Corinto, mas um pouco de discernimento irá mostrar que alguns problemas são comuns a todas as assembleias, portanto o modo de lidar com o problema pode servir também para todos. É o caso do capítulo 5 e de como lidar com alguém vivendo em pecado moral, mas que continua participando da comunhão na ceia do Senhor. A ordem do apóstolo é geral o suficiente para ser aplicada a todas as igrejas em todos os tempos e lugares.
“Já por carta vos tenho escrito, que não vos associeis com os que se prostituem; isto não quer dizer absolutamente com os devassos deste mundo, ou com os avarentos, ou com os roubadores, ou com os idólatras; porque então vos seria necessário sair do mundo. Mas agora vos escrevi que não vos associeis com aquele que, dizendo-se irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador; com o tal nem ainda comais. Porque, que tenho eu em julgar também os que estão de fora? Não julgais vós os que estão dentro? Mas Deus julga os que estão de fora. Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo” (1 Co 5:9-13).
Ele ensina duas coisas que servem para nós também. Primeiro, que não podemos evitar conviver com incrédulos ou devassos deste mundo, pois precisamos trabalhar, estudar ou às vezes até morar na mesma casa com eles. Mas quando se tratar de alguém “dizendo-se irmão”, a ordem é para que “com o tal nem ainda comais”. O ato de comer inclui tanto uma refeição casual como a Ceia do Senhor. Considerando que é à mesa do Senhor que expressamos comunhão, a conclusão é que aqueles que professam ser irmãos e estão vivendo em pecado devem ser excluídos da comunhão, isto é, devem deixar de participar da Ceia do Senhor. A ordem “Tirai, pois, dentre vós esse iníquo” (vers. 13) não deixa dúvidas quanto a isso.
Se na ceia você comunga com “aquele que se dizendo irmão, for devasso, ou avarento, ou idólatra, ou maldizente, ou beberrão, ou roubador” (1 Co 5:11), você está sendo contaminado pelo pecado dele. É por isso que o apóstolo começa falando do fermento, que é uma figura do pecado e contamina pelo contato. “Não sabeis que um pouco de fermento faz levedar toda a massa? Alimpai-vos, pois, do fermento velho, para que sejais uma nova massa, assim como estais sem fermento” (1 Co 5:6-7). Deixe uma massa com fermento tocar numa outra sem fermento e esta também fermentará. Este princípio, embora escrito para os irmãos em Corinto, vale para todas as assembleias. Você o encontra até nos preceitos dos profetas do Antigo Testamento:
“Assim diz o Senhor dos Exércitos: Pergunta agora aos sacerdotes, acerca da lei, dizendo: Se alguém leva carne santa na orla das suas vestes, e com ela tocar no pão, ou no guisado, ou no vinho, ou no azeite, ou em outro qualquer mantimento, porventura ficará isto santificado? E os sacerdotes responderam: Não. E disse Ageu: Se alguém que for contaminado pelo contato com o corpo morto, tocar nalguma destas coisas, ficará ela imunda? E os sacerdotes responderam, dizendo: Ficará imunda” (Ag 2:11-13).
Que as coisas que Paulo escreve em sua carta aos Coríntios e às outras igrejas pode ser bem aproveitadas por nós e por todos os cristãos em todas as épocas e lugares fica fácil de perceber pelo fato de ele instruir as igrejas a compartilharem mutuamente as cartas: “E, quando esta epístola tiver sido lida entre vós, fazei que também o seja na igreja dos laodicenses, e a que veio de Laodiceia lede-a vós também” (Cl 4:16).
Quando Paulo escreve: “Por esta causa vos mandei Timóteo, que é meu filho amado, e fiel no Senhor, o qual vos lembrará os meus caminhos em Cristo, como por toda a parte ensino em cada igreja” (1 Co 4:17), ele mostra que, mesmo nas cartas enviadas a indivíduos, como Timóteo, há coisas que podem servir para “cada igreja”. Mais adiante, quando Paulo vai tratar da ordem nas reuniões da igreja, e particularmente da posição a ser assumida pelas mulheres, ele começa dizendo: “Como em todas as igrejas dos santos...” e termina dizendo que “Se alguém cuida ser profeta, ou espiritual, reconheça que as coisas que vos escrevo são mandamentos do Senhor” (1 Co 14:33-37).
Nas cartas particulares, como as escritas a Tito ou Timóteo, existem instruções que podem valer tanto para nós individualmente, como para a igreja de Deus coletivamente. Temos boas pistas que nos ajudam a discernir o que é uma coisa e o que é outra. Por exemplo, veja o caso da escolha dos presbíteros (sinônimo de bispos ou anciãos). Sabemos que eles eram escolhidos pelos apóstolos: “E, havendo-lhes [Barnabé e Paulo], por comum consentimento, eleito anciãos em cada igreja, orando com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido” (Atos 14:23).
Isso acontecia mesmo em cidades onde já existiam igrejas, o que mostra que não era uma tarefa para irmãos que não tivessem o apostolado ou que não tivessem sido diretamente comissionados por um apóstolo, como fez Paulo com Tito ao deixá-lo em Creta: “Por esta causa te deixei em Creta, para que... de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei” (Tt 1:59). A ordem dada a Tito não era uma ordem dada a todos os cristãos, ou Paulo (acompanhado de Barnabé) não precisaria ter eleito anciãos em cada igreja por onde passava (Atos 14:23).
Quando os apóstolos partiram não deixaram ninguém (como Tito) comissionado para a tarefa, porém em sua despedida Paulo deu uma pista: Os presbíteros eram também escolhidos pelo Espírito Santo, como mostra Atos 20:28: “Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue” (Atos 20:28). Então, quando lemos ordens diretas em epístolas pessoais como a de Tito, não devemos assumir que aquilo foi dito a nós e nem pensarmos que temos procuração para eleger presbíteros, pois não temos.
Hoje, sabendo que o Espírito Santo também tem parte nessa tarefa, podemos descansar no fato de que ele continua elegendo irmãos responsáveis para cuidar do rebanho. Embora não existam mais presbíteros eleitos ou designados por homens, podemos reconhecer aqueles que o Espírito Santo escolheu. Como? Simplesmente observando sua conduta e seu empenho em cuidar das ovelhas. Aos Tessalonicenses Paulo exortou: “E rogamo-vos, irmãos, que reconheçais os que trabalham entre vós e que presidem sobre vós no Senhor, e vos admoestam” (1Ts 5:12). "Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas” (Hb 13:17). Em outra carta ele acrescenta que os irmãos deviam até mesmo se preocupar com as necessidades materiais desses: “Os presbíteros que governam bem sejam estimados por dignos de duplicada honra, principalmente os que trabalham na palavra e na doutrina; porque diz a Escritura: Não ligarás a boca ao boi que debulha. E: Digno é o obreiro do seu salário” (1 Tm 5:17-18).
Obviamente isso nada tem a ver com o modelo clerical adotado no cristianismo, que coloca um homem à frente de uma congregação. Nas Bíblia os presbíteros ou anciãos ou bispos são sempre no plural, e não ficam à frente da reunião dos irmãos, nas quais os dons são usados livremente pelo Espírito Santo e não ficam restritos a um homem à frente. O cuidado com as necessidades materiais também nada tem a ver com uma carreira profissional, mas é algo segundo a necessidade e uma iniciativa que parte dos irmãos, e nunca por solicitação daquele que trabalha. Nem preciso dizer que os irmãos que servem de coração na obra do Senhor não deverão trazer essa função como título, tipo “Ancião Fulano”, “Presbítero Sicrano” ou “Bispo Beltrano”. Fazer isso seria muita pretensão e uma tentativa de se sobressair sobre os demais irmãos, não é mesmo? Temos um caso assim em “Diótrefes, que procura ter entre eles o primado” (1 João 1:9).
Portanto, ao ler as epístolas sempre procure saber a quem aquilo está sendo dirigido, para não cair no erro de assumir para si uma tarefa que foi designada a outro (como é o caso da eleição de presbíteros dada a Tito). Mas talvez você encontre instruções que possam servir particularmente a você, se estiver com problemas de estômago, como tinha Timóteo. Paulo escreveu a ele, mas você pode aproveitar a receita: “Não bebas mais água só, mas usa de um pouco de vinho, por causa do teu estômago e das tuas frequentes enfermidades” (1 Tm 5:23).