A igreja é mais hospital que tribunal?

A dúvida está numa frase que circula nas redes sociais dizendo que “A igreja precisa ser mais hospital e menos tribunal”. Quando li a frase fiquei apreensivo. Primeiro porque ela estava assinada com o endereço do site de um cantor evangélico e ele certamente estaria se referindo à “igreja” como instituição ou denominação, ou seja, a organização que os homens criam, com seu clero, templo e departamentos, mas que não tem fundamento na Palavra de Deus.

Quando alguém que não conhece a sã doutrina, em especial a doutrina dos apóstolos dada à igreja, e tenta descrever o que é a igreja eu fico com um pé atrás. Ainda que o que ele diga possa parecer correto, nem sempre o que quis dizer será, pois, uma pessoa dentro de um sistema religioso denominacional irá enxergar e avaliar tudo com lentes denominacionais.

A frase é uma adaptação de outra de autoria de Agostinho, bispo de Hipona (que viveu entre os anos 354-430 da era cristã) e é considerado um dos “doutores da igreja”, obviamente a católica e alguns ramos do protestantismo. Ele escreveu que “A igreja é um hospital para pecadores e não um museu para santos”. Agostinho com certeza vislumbrava a igreja conforme a doutrina católica, de que fora da igreja católica não há salvação. Portanto os pecadores deveriam ser introduzidos na igreja católica para serem salvos. Sua frase, portanto, estava errada por não considerar que é em Cristo, e não na igreja, que os pecadores encontram a salvação. Muitas seitas evangélicas trazem a mesma doutrina quando pregam que é preciso pertencer a esta ou aquela seita para estar salvo, ou então quando enxergam a igreja como uma espécie de agência evangelizadora, quando a evangelização é tarefa de pessoas individualmente.

É um grande erro basear doutrinas naquilo que diziam os chamados “pais da igreja” ou “doutores da igreja”, que eram os bispos e autores dos primeiros séculos. Dentre eles os mais conhecidos são, além de Agostinho de Hipona, Ambrósio, Tomás de Aquino, Atanásio de Alexandria, Jerónimo, João Crisóstomo, Clemente de Alexandria, Inácio de Antioquia, Policarpo de Esmirna, Tertuliano e outros. Foram eles que cedo se apartaram da doutrina dos apóstolos e ensinaram doutrinas errôneas que deram origem ao papismo, clericalismo, monasticismo e tantos outros erros.

Quando Paulo se despediu dos anciãos de Éfeso ele avisou que isso aconteceria: “Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos” (Atos 20:29-30). Ainda que muitos desses homens chamados de “padres” ou “patriarcas” ou “doutores da igreja” possam ter sido fiéis a Cristo, mesmo assim eles estavam imersos no erro do clericalismo que foi um dos primeiros que tomou conta da igreja logo após a partida dos apóstolos.

Fui buscar alguma opinião entre os irmãos do século 19 que conheciam e praticavam a sã doutrina e encontrei este comentário de G. V. Wigram. Ele descreve sim a assembleia local como hospital, mas limitado ao povo de Deus e não a incrédulos. Ele coloca assim:

“A igreja é a casa de Deus, o corpo de Cristo, e serve em sua condição aqui como enfermaria, sala de aula, guarita de vigilância e hospital do povo celestial de Deus. Mas isto apenas para aqueles que são recebidos como pertencendo a Cristo e mediante um testemunho genuíno. E aqui, observe bem, não são os que buscam ou demonstram interesse que são chamados cristãos. São os salvos, os que podem ocupar seus lugares nessa companhia, que reconhecem a doutrina e comunhão dos apóstolos (Atos 2:42); e são de um só coração e de uma só alma (Atos 4:32) por meio da presença e do poder do Espírito”

Então, colocando as coisas nos devidos lugares, primeiro a igreja é o corpo de Cristo, do qual fazem parte todos os salvos. Ela é também a casa de Deus, que é o testemunho visível e responsável desse corpo, e neste sentido é que a assembleia local atua, recebendo os salvos à comunhão para perseverarem na doutrina dos apóstolos, partirem o pão na ceia do Senhor e elevarem a Deus suas orações (Atos 2:42). Mas, antes de ser esse hospital, que não é uma organização, mas um organismo no qual os próprios santos cuidam uns dos outros, a assembleia local funciona como um tribunal para julgar os que são recebidos à comunhão e tirar os que estão em pecado, como nos ensina 1 Co 5.

Portanto é errado dizer que a igreja é “... menos um tribunal”, pois para se participar da comunhão da igreja é preciso sim passar pelo escrutínio dos irmãos. Não entender isto é o que costuma levar a uma reação muito comum entre cristãos quando surpreendidos em algum erro, e dizem “Vocês não podem me julgar”! Os irmãos não só podem como devem julgar, pois o ato de julgar é bíblico. Não julgamos pensamento e intenções, mas julgamos atitudes, doutrinas e o testemunho de nossos irmãos.

“Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18:16-18).

“Porque, que tenho eu em julgar também os que estão de fora? Não julgais vós os que estão dentro? Mas Deus julga os que estão de fora. Tirai, pois, dentre vós a esse iníquo” (1 Co 5:12-13).

“Não sabeis vós que os santos hão de julgar o mundo? Ora, se o mundo deve ser julgado por vós, sois porventura indignos de julgar as coisas mínimas? Não sabeis vós que havemos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas pertencentes a esta vida”? (1 Co 6:2-3).