A assembleia se reúne para ler livros?
Embora seja salutar que os irmãos passem um tempo juntos lendo e comentando livros de autores cristãos que ensinam a sã doutrina, esta não é uma prática que encontramos na doutrina dos apóstolos como sendo uma das reuniões da assembleia. O que encontramos na Palavra é que os primeiros cristãos se reuniam ao nome do Senhor Jesus “e perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos 2:42).
A “doutrina dos apóstolos” é o ensino inspirado que eles nos deixaram. Evidentemente ao perseverarmos na doutrina dos apóstolos estaremos também buscando o ensino da Palavra de Deus como um todo, pois os apóstolos constantemente citavam o Antigo Testamento em suas cartas para apontar como aquelas “sombras” ou “figuras” do passado se cumpriam agora em Cristo. No início da igreja não existia o Novo Testamento e as cartas dos apóstolos eram a doutrina que circulava entre as assembleias, além de revelações oportunamente feitas pelo Espírito por meio dos profetas (como eram os próprios apóstolos). Paulo enviava cartas a uma assembleia e exortava que fosse lida em outra e vice-versa.
“E, quando esta epístola tiver sido lida entre vós, fazei que também o seja na igreja dos laodicenses, e a que veio de Laodiceia lede-a vós também” (Cl 4:16).
“Pelo Senhor vos conjuro que esta epístola seja lida a todos os santos irmãos” (1Ts 5:27).
Hoje não temos apóstolos ou profetas (no sentido de revelações fresquinhas vindas de Deus) mas temos a doutrina dos apóstolos e o Espírito Santo para nos guiar em toda a verdade. Foi com estas instruções que o apóstolo Paulo se despediu dos anciãos de Éfeso, entregando-os, não a algum sistema religioso, líder, dogma ou liturgia, mas a Deus e sua Palavra. “Agora, pois, irmãos, encomendo-vos a Deus e à palavra da sua graça; a ele que é poderoso para vos edificar e dar herança entre todos os santificados” (Atos 20:32).
Mas como seria hoje ensinada a “doutrina dos apóstolos” nas reuniões da assembleia? Por intermédio de irmãos que tenham algum dom de ministério da Palavra e nos moldes do que é ensinado em 1 Coríntios 14:26-40: “Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação. E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus. E falem dois ou três profetas, e os outros julguem. Mas, se a outro, que estiver assentado, for revelada alguma coisa, cale-se o primeiro. Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados”.
Como se pode perceber, tudo o que acontece em uma reunião da assembleia é em tempo real, ou seja, embora os irmãos que ensinam possam trazer o que aprenderam em seus exercícios individuais no estudo e meditação da Palavra, não trazem nada escrito para ler na reunião. O ministério é ao vivo e em cores.
Embora muitos irmãos possam exercer seus dons por meio da pregação e ensino em diferentes lugares, e usando diferentes meios como preleções, livros, folhetos e mais recentemente áudio e vídeo, na assembleia vemos que o ensino é feito na própria presença do Senhor, que está no meio, e do Espírito Santo que tudo dirige. “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mt 18:20). Não se trata de uma reunião informal, nem dirigida por um homem ou aberta a palpites. Tudo é feito com a decência, ordem e respeito de quem sabe que o Senhor está no meio e é o eixo em torno do qual todas as coisas giram.
Na Palavra de Deus não existe qualquer ideia de uma “igreja virtual” ou congregada virtualmente, ou de um ministério trazido pronto para apenas ser apresentado por meio impresso ou eletrônico. A palavra “assembleia” significa “reunião” e esta tem um lugar definido no tempo e no espaço, à semelhança de quando o Senhor determinou o lugar e hora de seu encontro com os discípulos: “E, chegada a hora, pôs-se à mesa, e com ele os doze apóstolos” (Lc 22:14). Ou quando se encontrou com os discípulos a portas fechadas e em um encontro reservado, com lugar e tempo bem definidos: “Chegada, pois, a tarde daquele dia, o primeiro da semana, e cerradas as portas onde os discípulos, com medo dos judeus, se tinham ajuntado, chegou Jesus, e pôs-se no meio, e disse-lhes: Paz seja convosco” (Jo 20:19).
Portanto é importante entender que, apesar de devermos estar sempre abertos a aprender dos irmãos, seja pelo ministério falado, escrito ou entregue por meios eletrônicos, quando a assembleia está reunida o caráter é outro. Ainda que Deus possa usar homens ali, não é para ouvir a homens que estamos ali, mas para recebermos o ministério da palavra pela direção do Espírito. E aqui entra algo muito importante sobre a palavra dita a seu tempo (e não enlatada), pois somente o Espírito Santo saberá quando é o momento de se trazer uma palavra de “edificação, exortação e consolação”, pois “o que profetiza fala aos homens, para edificação, exortação e consolação” (1 Co 14:3). “Que fareis, pois, irmãos? Quando vos ajuntais, cada um de vós tem salmo, tem doutrina, tem revelação, tem língua, tem interpretação. Faça-se tudo para edificação” (1 Co 14:26).
Mas será que quando uma assembleia é pequena e faltam dons de ministério da Palavra não poderíamos substituí-los pelo ministério escrito ou gravado? Entendo que esse tipo de ministério pode ser muito proveitoso se utilizado em outra maneira ou lugar, mas não na reunião da assembleia, por mais que humanamente falando ele possa trazer benefícios. Muitos erros na cristandade aconteceram por boa intenção. Colocar um homem à frente tinha a boa intenção de preencher a lacuna da falta de dons de ministério. Imprimir um “programa” ou liturgia com os textos previamente selecionados e explicados, como fazem em algumas igrejas católicas e protestantes, também tinha a boa intenção de evitar que algum ministrante inexperiente saísse dos trilhos. O problema é que essas “boas intenções” acabam esbarrando nesta ordem: “Não extingais o Espírito” (1 Ts 5:19). Há diversas maneiras de se “extinguir” o Espírito na reunião da assembleia.
Uma é colocando um homem à frente para que ensine, quer ele esteja inspirado ou não; quer ele esteja moralmente apto ou não. E isto nos leva a outra forma de se “extinguir” o Espírito, que é o pecado. Uma pessoa em pecado pode querer ou ser obrigada (no caso de um clérigo) a falar na carne e estará assim impedindo a ação do Espírito. As tradições, dogmas e liturgias previamente estabelecidas também não deixam margem para o Espírito agir com liberdade. É por isso que muitos cristãos nas denominações se sentem frustrados. Eles sabem que a Bíblia ensina uma coisa, mas não podem dizer aquilo ali porque a tradição e o dogma daquela “igreja” ensina outra, ou então a liturgia adotada não prevê improvisos. A falta de união entre os irmãos e as constantes intrigas também acabam apagando o Espírito, pois todos estarão tão ocupados uns com os outros que não terão ouvidos para escutar seu sussurrar.
Mas sua dúvida é se seria correto a assembleia congregar para o ministério da Palavra e, ao invés de ser este trazido por irmãos ali reunidos, alguém ler um livro, ouvir um áudio ou assistir um vídeo contendo o ministério de algum irmão vivo ou morto. Embora isso possa ajudar em muito a edificação dos santos (se for um material contendo a sã doutrina), não seria correto fazê-lo numa reunião com o caráter que tem a reunião de assembleia quando esta se reúne para “perseverar na doutrina dos apóstolos” por meio do ministério de diferentes dons de ensino, portanto não seria possível exercer o “falem dois ou três profetas, e os outros julguem... Porque todos podereis profetizar, uns depois dos outros; para que todos aprendam, e todos sejam consolados” (1 Co 14:29-31). Como poderíamos julgar em tempo real o que está sendo lido em um livro? Como tomar as medidas que às vezes são necessárias nesse julgamento, como por exemplo corrigir o irmão que disse aquilo?
Outro problema seria substituir o ministério de “dois ou três” ensinado em 1 Coríntios 14 pelo ministério de um líder, guru ou mentor, transformando seu ensino em um dogma a ser seguido, como fazem algumas denominações religiosas. Estas chegaram até a adotar os nomes dos homens que foram usados por Deus no passado, como a Igreja Luterana (Lutero), Igreja Wesleyana (Wesley), etc. É interessante lembrar que J. N. Darby, que nos deixou uma ótima tradução das Escrituras, alertava que esta deveria ser usada apenas para estudos particulares, pois ele próprio nas reuniões usava a Versão King James, como faziam os irmãos com os quais ele congregava e como fazem hoje também as assembleias dos irmãos reunidos ao nome do Senhor nos países de língua inglesa.
As reuniões contempladas na passagem que diz que “perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações” (Atos 2:42) são, portanto, ministério da Palavra, a ceia do Senhor e a reunião de oração. A ceia do Senhor é mais voltada para a adoração; a doutrina dos apóstolos é praticada pelo exercício local dos dons de ensino, e a reunião de oração permite que os irmãos tragam suas necessidades ou aquelas pertinentes à assembleia para compartilhá-las com os irmãos e, juntos, as apresentarem ao Senhor.
Estas são as ocasiões quando a igreja ou assembleia está congregada no caráter de “dois ou três reunidos” ao nome do Senhor. Não haveria como incluir nesse caráter as ocasiões quando os santos se reúnem, por exemplo, apenas para cantar hinos, ouvir gravações ou assistir vídeos de palestras da Palavra ou ler livros. São atividades muito salutares para o cristão ocupar-se com elas, mas não são reuniões da assembleia, pois os dons presentes não estão sendo exercitados como acontece quando cada reunião é descrita na Palavra. Além disso, o caráter de reuniões assim é informal, e não solene como quando o Senhor se põe no meio. Tenho certeza de que o clima era bem diferente quando os discípulos do Senhor se encontravam informalmente para comer ou conversar, daqueles momentos quando o Senhor se punha no meio deles para ensiná-los, ouvir suas necessidades ou ser contemplado e adorado.
É fácil enxergar a diferença se substituirmos as três reuniões - ministério da Palavra, adoração na ceia do Senhor e oração - por atividades que podem até mesmo parecer ter os mesmos objetivos:
Lermos um livro, ouvirmos uma gravação ou assistirmos um vídeo de ministério da Palavra seria a mesma coisa que deixarmos o Espírito Santo agir livremente e decidir quem ele quer usar para ministrar? Ter um programa previamente estabelecido, redigido por alguém que nem está presente, com um tema escolhido de antemão, seria a mesma coisa que o Espírito decidir se naquele momento a assembleia precisa de palavras de edificação, exortação ou consolação?
Assistirmos a um vídeo da ceia do Senhor seria a mesma coisa que participarmos dela, com pão e vinho e louvor? Ouvir uma banda, uma cantora ou uma gravação ou vídeo de hinos seria a mesma coisa que participarmos do canto conjunto e unânime dos santos reunidos? No céu o único que estará “no palco” será o Cordeiro de Deus, e o canto será de todos para ele, e não de alguém para uma audiência. Quando estamos reunidos em assembleia para adoração devemos pensar nisso como uma expressão na terra daquilo que faremos no céu.
Lermos orações previamente impressas em um livro de orações (se não estou enganado a Igreja Anglicana faz isso) seria a mesma coisa que apresentarmos as nossas necessidades a Deus, termos o “amém” de todos e darmos também ações de graça em uníssono?
Percebe como fica estranho pensarmos em algo assim no contexto de uma reunião da assembleia? Então como fazer em tempos de fraqueza como estes, quando talvez os melhores dons nem sequer estejam entre nós em uma pequena assembleia, mas espalhados pelas denominações e contaminados com ensino errôneo? Deveríamos mudar as bases estabelecidas por Deus em sua Palavra? Não. Devemos simplesmente reconhecer nossa fraqueza e fazer apenas aquilo que estiver dentro de nossas possibilidades.
Não há irmãos com conhecimento suficiente da Palavra para ministrarem numa pequena assembleia? Então o melhor não é tentar adaptar a reunião de ministério da Palavra transformando-a numa leitura de livro ou sessão de vídeo, mas simplesmente suprimi-la, ficando apenas com as reuniões da ceia do Senhor e de oração, já que estas não dependem de dons, pois todos somos igualmente sacerdotes com acesso a Deus para adorá-lo e também para levarmos as orações uns dos outros diante do trono da graça.
Mas nada impede que os irmãos promovam reuniões informais (que podem ser quando termina a ceia do Senhor ou a reunião de oração) para ler a Palavra acompanhada de livros de irmãos mais dotados, ouvir gravações de outras reuniões, assistir vídeos, cantar hinos, conversar, etc. Tudo deve ser feito com decência e ordem como convém aos santos, mas entendendo não ser aquela uma reunião da assembleia, que é quando o Senhor prometeu estar no meio de dois ou três congregados ao seu nome.