Preciso entender para ser salvo?

A salvação não precisa ser “entendida” para ter efeito, porque se assim fosse haveria algo que dependeria de nós, de nossa inteligência e grau de conhecimento. Ao contrário, a salvação é recebida pela fé, não pela inteligência, e por isso Paulo resume de maneira tão breve a mensagem do evangelho em 1 Coríntios 15:1-4: “Também vos notifico, irmãos, o evangelho que já vos tenho anunciado; o qual também recebestes, e no qual também permaneceis. Pelo qual também sois salvos se o retiverdes tal como vo-lo tenho anunciado; se não é que crestes em vão. Porque primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e que ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras”. Da parte do homem pecador basta crer em Jesus, como mostram estas passagens:

”E, tirando-os para fora, disse: Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar? E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa. E lhe pregavam a palavra do Senhor, e a todos os que estavam em sua casa“ (Atos 16:30).

“Quem crer e for batizado será salvo; mas quem não crer será condenado“ (Mc 16:16).

“E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3:14-16).

”Mas que diz? A palavra está junto de ti, na tua boca e no teu coração; esta é a palavra da fé, que pregamos, a saber: Se com a tua boca confessares ao Senhor Jesus, e em teu coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Visto que com o coração se crê para a justiça, e com a boca se faz confissão para a salvação. Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido“ (Rm 10:8-11).

Agora vamos analisar estas passagens e compará-las com a falsa ideia de que seria preciso alguém entender a salvação ou mesmo ter a certeza absoluta de estar salvo antes de poder considerar-se salvo. Se o conhecimento da salvação fosse necessário para obtê-la, em Atos 16 Paulo e Silas deveriam ter dito algo mais ou menos assim ao carcereiro de Filipo: “Crê no Senhor Jesus Cristo e, quando você tiver certeza de sua salvação e do perdão de seus pecados serás salvo“... No caso de João 3 seria preciso que os israelitas no deserto entendessem como uma serpente de bronze era capaz de curar suas feridas, antes de serem efetivamente curados, o que levaria a uma salvação, não por fé, mas pela razão. Sem entendimento não haveria cura.

A passagem de Romanos 10 nos fala de crer no coração, portanto bem abaixo do cérebro e da razão e também em um lugar escondido onde estão guardados nossos sentimentos. Como não conhecemos o coração e os sentimentos íntimos de uma pessoa, não temos como julgar se ela crê ou não, a não ser pelo que sai de seus lábios ou pelos frutos de sua vida. Mas neste último caso também seria preciso esperar algum tempo antes de vê-los, lembrando que o ladrão na cruz não teve esse tempo e mesmo assim foi salvo. No caso dele e no nosso também a certeza de sua salvação não veio por entendimento das Escrituras ou por uma conclusão racional, mas pela fé na palavra do Senhor.

Antes de continuar é bom lembrar que apenas o Senhor conhece os salvos. De nossa parte podemos apenas deduzir que alguém seja ou não salvo por sua confissão da boca, por suas obras e seu andar. “Todavia o fundamento de Deus fica firme, tendo este selo: O Senhor conhece os que são seus“ (2 Tm 2:19).

A salvação do crente é mostrada em figura na salvação do povo hebreu no Livro de Êxodo. Os primogênitos israelitas são ali substituídos no juízo pela morte do cordeiro, atravessam o fundo mortal do mar, se veem num deserto e mais tarde entram na terra prometida. Do mesmo modo existem diferentes etapas no processo de salvação, porém sabemos que, uma vez que a pessoa tenha nascido de novo, isto é, recebido vida que vem do alto pela aplicação que o Espírito Santo faz da Palavra numa alma, essa não terá mais escapatória. O Senhor completará a boa obra que começou nela como fez com Cornélio, um homem nascido de novo, porém não salvo, ao menos até ouvir o evangelho da morte e ressurreição de Cristo, crer e receber o Espírito Santo.

Traduzi um resumo que encontrei que talvez ajude a mostrar esses estágios. É inegável que uma pessoa que professe fé em Jesus, porém não tenha certeza do perdão de seus pecados, não estará vivendo completamente liberta ou na plena liberdade que Cristo lhe assegura. Mas se a sua fé for genuína é apenas uma questão de tempo até que ela perceba que já estava liberta e só não tinha entendido isso. Quando o guarda destranca a porta da cela, o preso ali está tecnicamente liberto, ainda que demore um tempo até ele perceber isso e caminhar até o lado de fora da prisão. Ninguém ousaria dizer que ele não foi libertado só porque está confuso e não entendeu ainda o que aconteceu.

Tenho para mim que a maioria dos salvos só irá obter a certeza de sua completa libertação no leito de morte ou no último segundo. Mas que Deus não deixará de salvar alguém que invoca o nome de Jesus, isso é líquido e certo. Afinal, estamos falando de um Deus que entregou o seu Filho para morrer por nós e não vai querer que se perca uma alma sincera, ainda que simples e sem grandes conhecimentos, só porque não teve capacidade intelectual de racionalizar sua salvação ou preencher algum formulário com todas as respostas corretas.

Um exemplo maravilhoso de salvação é o de Nicodemos, um homem que foi levado pelo Espírito Santo a ouvir a Palavra em João 3, nasceu de novo e passou a se preocupar com os interesses do Pai defendendo Jesus no final do capítulo 7 do mesmo evangelho e finalmente se apresentando de forma corajosa e destemida (enquanto outros fugiam) para ajudar a sepultar Jesus (Jo 19). Obviamente Nicodemos ainda não fazia parte da igreja que só seria formada em Atos 2, mas quando olhamos o caso de Cornélio temos o processo completo: ele era nascido de novo, e por esta única razão podia buscar a Deus, ouviu o evangelho completo de Pedro, incluindo a morte e ressurreição de Cristo, creu e recebeu o Espírito Santo.

Este texto que encontrei parece resumir bem o processo da salvação de uma alma, a saber, o novo nascimento, o selo com o Espírito, a convicção de estar morto para os seus pecados, para a lei, para a carne e para o mundo, e o desfrutar do fato de estar assentado, em Cristo e com Cristo, nos lugares celestiais.

“Em quem também vós estais, depois que ouvistes a palavra da verdade, o evangelho da vossa salvação; e, tendo nele também crido, fostes selados com o Espírito Santo da promessa. O qual é o penhor da nossa herança, para redenção da possessão adquirida, para louvor da sua glória” (Ef 1:13-14).

1. Nascemos de novo, recebemos vida eterna, e nos tornamos filhos de Deus pela fé na Pessoa de Cristo (Evangelho de João, 1 João e Gálatas). Somos, ao mesmo tempo, convertidos, vivificados e santificados pela ação da Palavra aplicada em nós pelo Espírito.

2. Nossos pecados são remidos, e somos lavados e justificados, e somos selados com o Espírito Santo quando colocamos fé na morte de Cristo e em seu sangue derramado na cruz. (Romanos, 1 jo 1, Efésios e Atos 10).

3. Precisamos nos considerar mortos para o pecado com base no fato de Cristo ter morrido por nós para sofrer o juízo, e pelo fato de termos morrido com ele. (Rm 6).

4. Obtemos a libertação de nós mesmos, depois de termos passado na prática por Romanos 7) e entendermos nossa incapacidade de nos ajudarmos a nós mesmos. Nossa libertação é igualmente obtida pela fé na morte de Cristo em nosso lugar e em sua ressurreição, com base na qual receberemos completa libertação na ressurreição do corpo, e com base em que obtemos a libertação presente, enxergando o pecado em nós como já tendo sido julgado na morte de Cristo, e caminhando por fé na liberdade em que somos colocados em Cristo. (Rm 7-8:11).

5. Existem outros pontos posteriores não abordados neste resumo, como nossa posição na casa de Deus e no corpo de Cristo, além do arrependimento. (T. Roberts).

A carta aos Romanos é o evangelho explicado, portanto ali podemos ver mais detalhes de como Deus trabalha na alma que foi vivificada pela Palavra aplicada pela ação do espírito (a água e o Espírito de João 3, ou novo nascimento).

O capítulo 1 nos fala da condição do homem e do mal generalizado encontrado no mundo, em especial no paganismo. O capítulo 2 mostra como é infrutífera a tentativa humana de controlar o mal, inclusive da incapacidade da Lei mosaica em justificar o homem. A conclusão no capítulo 3 é que todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus, merecendo assim o juízo. Então no final do mesmo capítulo é revelada a justiça de Deus e o sangue de Cristo, o qual assumiu na cruz o lugar do homem pecador. Romanos 4 nos fala da justificação do homem por graça e o capítulo 5 mostra o domínio da graça e seus efeitos.

Uma vez tendo deixado claros o pecado, o juízo e a provisão de Deus para o pecador, o capítulo 6 vai tratar dos efeitos disso no homem perdido e escravo do pecado, da lei e da carne. O capítulo 6 fala da libertação do mundo e do pecado em seu sentido exterior, o que é tipificado no batismo que representa considerarmo-nos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus. O capítulo 7 fala das cadeias da lei sendo rompidas pela morte de Cristo, que ressuscitou e, portanto, não está mais sujeito à lei. O crente vive pela fé no Filho de Deus em sua condição atual. Romanos 8 nos fala da libertação da carne, o que se obtém pelo poder do Espírito que agora habita no crente e o capacita a viver em novidade de vida.

Quando lemos Romanos 7 encontramos um homem aflito e buscando a libertação. Ao final do capítulo ele clama: “Miserável homem que eu sou! Quem me livrará do corpo desta morte?”, mas a resposta vem logo em seguida: “Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor. Assim que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado. Portanto, agora nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus [que não andam segundo a carne, mas segundo o Espírito]. Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte” (Rm 7:24-25; 8:1-2 - a parte entre chaves não consta dos melhores manuscritos).

Considere o homem de Romanos 7 como tendo sido vivificado, ou seja, ele já nasceu de novo, tem vida vinda de Deus e pode agora chamar a Deus de Pai, mas ele ainda não está liberto. Não é alguém perdido em seus pecados, mas também não é alguém liberto. É possível cair em dois erros quando o assunto é o homem do capítulo 7 comparado ao do capítulo 8. Alguns acham que o homem do capítulo 7 ainda não se converteu, que é um incrédulo perdido em seus pecados. A razão de considerá-lo assim é a palavra “carnal” que aparece em Romanos 7: “eu sou carnal, vendido sob o pecado”. Mas é preciso entender a diferença entre “carnal” e “natural”.

Existe o homem “natural”, o “carnal” e o “espiritual”. O homem de Romanos 7 não é o homem natural, “morto em ofensas e pecados” (Ef 2:1) e este assunto é melhor detalhado nos capítulos 2 e 3 de 1 Coríntios. No capítulo 2 o apóstolo diz que “o homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2;14). No capítulo 3 o termo usado é outro, pois está falando de crentes e não de incrédulos. Crentes carnais, mas ainda assim crentes. “Porque ainda sois carnais; pois, havendo entre vós inveja, contendas e dissensões, não sois porventura carnais, e não andais segundo os homens”? (1 Co 3:3).

Portanto uma pessoa convertida pode não ser uma pessoa “espiritual”, e é por isso que Paulo faz esta distinção ao escrever aos Gálatas: “Irmãos, se algum homem chegar a ser surpreendido nalguma ofensa, vós, que sois espirituais, encaminhai o tal com espírito de mansidão; olhando por ti mesmo, para que não sejas também tentado” (Gl 6:1). Ao exortar os que são “espirituais” a ajudarem os “carnais”, Paulo demonstra que um está mais capacitado que o outro a identificar o mal e ajudar a restaurar seu irmão, mas também mostra que essa é uma condição variável, pois mesmo o “espiritual” deve vigiar para não cair.

William Kelly escreve em seu artigo “Deliverance”: “Quem são eles (os 'espirituais')? Aqueles que conhecem melhor o odioso mal que existe na carne e, o que é ainda mais importante, a graça de Deus. Estes podem, portanto, se apiedarem das almas que são enganadas e se desviam do Senhor. Um homem carnal conhece tão pouco a Deus e a si mesmo que não é apto para fazer esse trabalho (de ajudar a restaurar seu irmão). Ele acabaria errando, tanto para o lado da camaradagem, que o levaria a dar pouca importância ao pecado, como para o lado da aspereza. O homem espiritual, por graça, mantém o equilíbrio. Ele é capaz de condenar o pecado e ao mesmo tempo auxiliar a alma em graça visando sua restauração”.

Isto nos faz entender que a carnalidade pode se manifestar em um crente tanto na forma de libertinagem como de legalismo. É fácil enxergar esta segunda tendência quando vemos que o homem do capítulo 7de Romanos está aflito por não conseguir ver em seu corpo de carne uma completa sujeição à lei. Ele cai no farisaísmo quando deixa de fazer essa cobrança de si mesmo e passa a cobrar isso dos outros.

Ao fazermos esta distinção entre o natural, o carnal e o espiritual é preciso entender que apenas o primeiro ainda não está salvo. Um crente carnal possui o Espírito Santo (“se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele” - Romanos 8:9), porém não anda no Espírito ou julga as coisas no Espírito. O homem carnal de Romanos 7 está nessa batalha porque é nascido de novo e tem vida vinda de Deus, ou nem se incomodaria com isso se fosse incrédulo. Ele quer fazer o bem, mas se sente miserável por não conseguir. Ele busca a Deus, ao contrário do homem natural descrito em Romanos 3. O homem nascido de novo tem horror ao pecado e se deleita em Deus, mas pode ainda não viver na condição de liberdade do homem de Romanos 8.

Resumindo, somos salvos pela fé em Cristo, e não pelo entendimento de nossa salvação. E a fé é um dom de Deus e é ele o autor de nossa salvação, não nós ou nossas certezas. Se fosse diferente e precisássemos ter certeza de nossa salvação para termos garantia dela, ao menos nesta parte o mérito de nossa salvação seria nosso e mesmo essa certeza poderia variar de pessoa para pessoa. Enquanto alguns viveriam radiantes com a certeza do perdão de seus pecados, outros teriam aqui e ali algumas dúvidas que lhes causariam inquietação. Ou então, quando caíssem em pecado e perdessem a comunhão com Deus, poderiam também se sentir vacilantes em afirmar que estariam completamente salvos (embora efetivamente estivessem desde o momento em que creram em Jesus).

Se a salvação dependesse de nossos sentimentos de certeza ela também iria variar conforme nossas emoções. Poderíamos encontrar pessoas que afirmaram durante anos a certeza de sua salvação, mas que por alguma disfunção física ou mental causada por enfermidade chegassem ao fim da vida duvidando dela. Podemos descansar na certeza de que Deus não deixa confuso alguém que busca por ele ou clama pelo nome de Jesus para ser salvo.

“Porque a Escritura diz: Todo aquele que nele crer não será confundido. Porquanto não há diferença entre judeu e grego; porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo” (Rm 10:11-13)