Os jogadores do Santos foram intolerantes?

(Resposta a um leitor que me enviou um texto de autoria de um pastor evangélico que critica os jogadores do Santos que não quiseram entrar em uma instituição espírita para distribuir ovos de páscoa em uma ação promovida por seu time, o Santos).

O texto que enviou, assinado por um pastor evangélico, é ingênuo. Primeiro, porque em nenhum momento ele deve ter perguntado a razão de uma instituição que tem o objetivo cuidar de deficientes precisar ser religiosa e proselitista em sua origem, práticas e objetivos.

Segundo, porque ao tecer suas afirmações o autor não percebe que também adota uma posição, no caso contrária aos que pensam diferente dele. Não há como escapar disso. Quando alguém diz que devemos relevar as diferenças religiosas, isso também é uma posição religiosa.

A diferença é que aquele que adota essa posição é ingênuo o suficiente para se esquecer de que essas diferenças são, na maioria das vezes, inegociáveis para uma consciência sincera. Além disso, colocar-se nessa posição de pacificador de crianças briguentas pode parecer humildade, mas não é. Quem é que pode se considerar conhecedor o suficiente de todas as religiões para alegar que elas possuem elementos comuns que podem ser pasteurizados num ecumenismo pacificador?

O que muitas pessoas (e o autor do texto) acabam fazendo é justamente aquilo que criticam nos jogadores: discriminam pessoas pelo seu modo de pensar. É uma violência contra a consciência daqueles jogadores tentar criar uma obrigação de participarem de algo que viola seus princípios.

Perceba que a questão não foi de alguma participação ativa ou violência dos jogadores contra a instituição mantida por espíritas. Trata-se apenas de um ato e escolha pela não participação ativa em algo. Violar esse direito daqueles jogadores, aí sim, é uma violência religiosa.

Será que o autor do texto não leu a Bíblia? Será que não viu o zelo de Deus contra as práticas religiosas dos povos pagãos? O Senhor Jesus é visto nos evangelhos comendo com publicanos e prostitutas, mas não com pessoas que invocavam espíritos. Os possessos de espíritos, ele libertava.

Veja o caso do apóstolo Paulo, quando se deparou com uma jovem aparentemente médium “do bem”, já que o espírito que ela incorporava só falava de coisas positivas e parecia até promover o trabalho dos discípulos:

(Atos 16:16-18) “ E aconteceu que, indo nós à oração, nos saiu ao encontro uma jovem que tinha espírito de adivinhação , a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores. Esta, seguindo a Paulo e a nós, clamava, dizendo: Estes homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo . E isto fez ela por muitos dias. Mas Paulo, perturbado, voltou-se e disse ao espírito: Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. E, na mesma hora, saiu”.

Mas eu não quero aqui tecer considerações sobre as crenças do espiritismo, algo que faço em outros textos sempre deixando claro que não são os espíritas (pessoas) que o Deus da Bíblia abomina, mas o espiritismo (a doutrina). Por mais valores morais que possa ter uma religião como o espiritismo, não podemos deixar de levar em conta que o mesmo Deus que ensinou esses valores também abominou as práticas “espirituais” dos povos pagãos, hoje largamente aceitas pelas crenças espiritualistas.

Em uma resposta a um leitor, escrevi:

“ Sempre que alguém adota uma posição, torna-se excludente. Se você é cristã, o simples fato de professar sua fé já exclui todos aqueles que pensam diferente. E, mesmo que você seja daquelas pessoas que querem passar uma imagem de neutralidade, de politicamente correta, que acreditam que todas as crenças sejam válidas, isso também é uma posição que exclui aqueles que acreditam que apenas uma crença pode ser a verdadeira. E esta é uma posição ainda pior e mais orgulhosa, por arvorar conhecer todas as crenças a ponto de poder fazer tal afirmação”.

Seria interessante você ler também a resposta que dei a um amigo quando me convidou para ajudá-lo em um trabalho administrativo que estava prestando a uma instituição espírita de caridade. Meu amigo não perdeu a amizade comigo e compreendeu perfeitamente minha posição, algo que infelizmente a maioria das pessoas não compreenderia (como não compreenderam a posição dos jogadores).

E se quer saber, se eu estivesse naquele ônibus, não teria descido, assim como Robinho, Neymar, Ganso e Fabio Costa. Há muitas oportunidades de se fazer caridade e ajudar crianças portadoras de paralisia cerebral sem violentar seus princípios. Será que todos os que criticaram os jogadores são tão preocupados assim com os portadores de deficiência? Sou humano o suficiente para entender que a crítica contra a omissão alheia é um excelente bálsamo para a consciência dos omissos. Creio que a recusa dos jogadores não foi em auxiliar as crianças mantidas pela entidade, embora alguns deles tenham mais tarde visitado as mesmas crianças sem alarde, mas sem participar de uma ação pública que promovia a instituição, como era a intenção da visita organizada pelo Santos.

As pessoas precisam deixar de confundir liberdade de opinião com intolerância. Liberdade de opinião é eu não concordar com a opinião, crença ou modo de vida do outro. Intolerância é eu fazer algo para impedir que o outro tenha sua liberdade de opinar, professe sua crença ou viva do modo como achar melhor.

Em uma época quando alguns grupos tentam garantir seus direitos, é cada vez mais comum ocorrer a discriminação reversa, ou seja, o que se sentia perseguido (às vezes injusta e covardemente) passa a perseguir (também de modo injusto e covarde). A melhor maneira de se entender isso é o Millôr Fernandes parafraseando Karl Marx: “ O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O socialismo é o contrário”.

Lembre-se: criticar a posição dos jogadores é igualmente desrespeitar a fé de alguém que está, em sua sinceridade, buscando ser coerente com sua crença sem levar a efeito qualquer ação que cause dano ao outro. Se os jogadores tivessem descido do ônibus para depredarem a instituição ou agredirem seus colaboradores, aí sim estariam violentando o direito alheio. Aqueles que os criticam é que estão perpetrando um ato de agressão. Estão agredindo sua liberdade de consciência.

Agora, indo um pouco mais fundo na questão, eu aprendi que quando o mágico faz a mágica, não se deve olhar para a mão que ele quer mostrar, mas para a outra, a qual ele usa para esconder o truque.

Pensando nisso, eu pergunto: Por que uma instituição que se diz interessada em promover o bem estar de deficientes precisa ser religiosa? Qual é o seu real objetivo: a promoção do ser humano ou a divulgação de uma doutrina pegando carona no portador de deficiência?

Há muitas e excelentes instituições de ajuda humanitária sem qualquer vínculo religioso que fazem um trabalho notável. Porém, o site da instituição, que os jogadores preferiram não visitar oficialmente naquele evento, é claramente uma instituição religiosa, com objetivos religiosos e de propagação da doutrina espírita acima de tudo. Caso contrário poderia ter sido constituída simplesmente como uma ONG regular. Veja o que diz em uma das páginas do site da instituição:

“ ...é oferecida orientação e assistência espiritual a quem solicita, através de orientadores e três câmaras de passe, no mesmo horário. Nessas câmaras são ministrados passes simples, Pasteur 1 e Pasteur 2 recebendo cada pessoa o seu tratamento após orientação.... Reuniões privativas de adestramento mediúnico — às quintas feiras... Assistência espiritual aos internos: Passes de vibrações amorosas — às segundas e quartas-feiras; Vibrações e preces — às sextas-feiras”.

Como eu disse, pelo sim, pelo não, preste antes bastante atenção na outra mão do mágico.

(Pv 20:25) “Laço é para o homem dizer precipitadamente: É santo; e, feitos os votos, então refletir”.