Cristãos podem construir altares?
Assim que li seu e-mail, fiquei preocupado e fui procurar qual seria o artigo que você teria lido, pensando ter me equivocado na tradução do texto. Encontrei a palavra “ridículo”, que você achou inadequada, no texto “ Por que nos reunimos assim” . O artigo não foi escrito por mim (eu nem era nascido) e apenas o traduzi. O texto é uma transcrição do que disse J. R. Gill em 1926 em uma conferência em Chicago. Como ele já não está aqui para responder, vou tentar fazê-lo.
Você escreveu: “ O articulista usou a palavra ‘ ridículo ’ em determinado ponto do artigo e a imagem que logo me veio foi de alguém bradando do alto de um pedestal contra a plebe ignorante.”
A imagem que você teve certamente não foi a que o autor queria passar. O termo “ridículo” do texto foi escolha minha para a tradução que fiz há alguns anos e talvez, por às vezes significar em português “digno de zombaria”, você tenha tido essa impressão de todo o texto. Pensando em facilitar a leitura para o maior número possível de leitores, acabei traduzindo a palavra “travesty” do original em inglês para “ridículo”. No original está assim:
“ There Isaías no other altar today. To set up an altar in a church Isaías a travesty ! It Isaías an abomination!”.
Em minha tradução ficou assim:
“ Não existe hoje nenhum outro altar. Estabelecer um altar em uma igreja é ridículo ! É uma abominação!”.
A tradução não está errada. Além de “ridículo”, são muitas as traduções possíveis para “travesty”:
“paródia”, “caricatura”, “farsa”, “distorção”, “disfarce”, “dissimulação”, “fingimento”, “tragédia”, “imitação ruim”, “imitação burlesca”, “imitação exagerada”.
O dicionário explica que travestir significa vestir alguém ou a si próprio de modo a aparentar ser do outro sexo ou de outra condição ou de outra idade. Também pode ser entendido como alterar a própria aparência, caráter ou natureza, ou tornar-se irreconhecível. Também tem o sentido de falsificar.
Os significados das palavras mudam ao longo do tempo e nem sempre é fácil entender o real sentido que alguém quis dar a uma palavra em 1926. Por exemplo, naquela época dizer “ that man Isaías gay” queria dizer simplesmente “ aquele homem é alegre” .
Do mesmo modo a palavra “igreja” nos tempos do Novo Testamento queria dizer simplesmente “reunião” ou “ajuntamento” de pessoas, jamais um edifício de pedras ou tijolos. A palavra “igreja” foi tão distorcida que até mesmo perdeu seu significado original para a maioria das pessoas. Se nos tempos dos apóstolos você dissesse que a igreja em Corinto estava precisando de uma pintura, os cristãos daquela cidade iriam pensar que você ficou louco. Que ideia é essa de pintar um grupo de pessoas?
A mesma distorção ocorreu com a palavra “altar”. Na Bíblia “altar” significa uma plataforma onde são oferecidos sacrifícios cruentos ou não. A palavra original para altar em hebreu é mizbe’ah , que significa “lugar de matança ou sacrifício”, e aparece pela primeira vez na Bíblia em Gênesis 8, quando Noé matou e queimou animais sobre um altar.
Em Êxodo 20:24, 25 o altar podia ser feito de um monte de terra ou uma pilha de pedras, contanto que as pedras não fossem lavradas e que o altar ficasse no nível do chão, ou seja, quem fosse sacrificar sobre ele não poderia subir degraus. O altar podia tanto ser para oferendas como para queimar incenso, e em Isaías 65:3 Deus abomina o altar construído de tijolos, costume que os israelitas provavelmente tomaram dos babilônios.
A palavra “ridículo” no texto em maneira alguma foi aplicada às pessoas que se congregam em lugares onde existe um altar, mas sim ao ato de colocar algo assim em um lugar de adoração cristã.
Com base na impressão equivocada que a palavra “ridículo” causou em você ao referir-se ao altar que os cristãos hoje constroem em seus templos ou “igrejas”, você inferiu que o autor seria “alguém bradando do alto de um pedestal contra a plebe ignorante”. Será que você se congrega em um local de reuniões cristãs ao qual dá o nome de “templo” ou “igreja”? Será que nesse local tem um altar construído de tijolos que fica acima do nível do piso e é acessado por degraus? Será que esse altar foi construído para outro propósito que não seja o de sacrificar animais ou oferecer incenso sobre ele?
Se todas as respostas forem sim, e é o que normalmente ocorre na maioria dos lugares aonde os cristãos se dirigem para adorar a Deus, talvez seja esta a razão de sua indignação. Pode ter certeza de que eu me indignei muito mais e por vários outros motivos da primeira vez em que tive contato com irmãos que me mostraram os erros que eu estava cometendo na denominação onde frequentava.
Se for o caso de você ter um altar no lugar onde frequenta, eu pergunto: qual é a razão da existência desse altar ou o que ele significa? Será que é apenas um mobiliário que o catolicismo emprestou do judaísmo, ou o protestantismo emprestou do catolicismo, sem nem mesmo perguntarem o por quê?
No texto que leu o autor chegou ao comentário que mencionou depois de explicar bem que a adoração cristã não tem nada a ver com a adoração judaica, daí a colocação de um altar para cristãos ser o mesmo que travestir o cristianismo de judaísmo. Um “altar cristão” é uma imitação ridícula, distorcida e ruim, palavras que ainda não são fortes o suficiente para o significado que um altar assim expressa: trata-se de um abominável desprezo ao que a Palavra de Deus claramente nos diz em Hebreus, quando convidava os cristãos a se desvencilharem de tudo aquilo que representava o culto judaico:
(Hb 13:10-14) “ Temos um altar, do qual não têm direito de comer os que servem ao tabernáculo. Porque os corpos dos animais, cujo sangue é trazido para dentro do santo lugar pelo sumo sacerdote como oferta pelo pecado, são queimados fora do arraial. Por isso também Jesus, para santificar o povo pelo seu próprio sangue, sofreu fora da porta. Saiamos pois a ele fora do arraial, levando o seu opróbrio. Porque não temos aqui cidade permanente, mas buscamos a vindoura”.
Em que pese a boa intenção de cristãos que constroem e enfeitam seus altares, nosso guia não são as boas intenções, mas a Palavra de Deus, e devemos julgar todas as coisas somente por ela. Não nego que existam boas intenções em um cristão evangélico que constrói um templo com um altar em seu interior, ou em um cristão católico que enche seu templo de imagens de cristãos veneráveis, mas enquanto cabe somente a Deus julgar o intento dos corações, a nós cabe julgar a prática visível. Pessoas que se amam praticam sexo fora do casamento com a melhor das intenções, mas isso não torna a prática certa, por mais que Deus ame essas pessoas.
Mas fica evidente, ao ler a continuação de seu e-mail, que o cerne da questão não está no altar ou no templo, coisas “travestidas” do judaísmo, mas no fato de o autor dizer que a maneira bíblica para os cristãos se congregarem é somente ao nome de Jesus, e não agregando outros nomes que dividam os mesmos filhos de Deus em diferentes “tribos”.
Você escreveu: “ Então porque esta celeuma toda em cima de algo que já existe e vai continuar até a volta de Cristo? Aliás, a celeuma pode existir, o que não pode é a arrogância. Melhor ainda, pode até a arrogância, pode tudo. Só precisa saber que existem pessoas que pensam diferente e estas pessoas vão continuar existindo até a volta daquele que sabe todas as coisas ” .
Você pode justificar suas posições pela Palavra de Deus? Estaríamos nós obrigados a simplesmente aceitar as coisas do jeito que elas são porque os homens as fizeram assim e esperar a volta de Cristo sentados confortavelmente no banco de uma “igreja” com práticas antibíblicas? Ou será que nos é dito para “julgarmos todas as coisas” e retermos o bem?
Um cristianismo cuja “Bíblia” seja formada pelos costumes dos cristãos, e não seja propriamente Palavra de Deus, é um cristianismo apóstata, simplesmente porque o caminho da cristandade como um todo é o da apostasia, como bem descreve Paulo em 2 Timóteo 3. O que é a Babilônia de Apocalipse senão a prostituta, a falsa noiva, a cristandade apóstata que abandonou a verdade? E o que são as pessoas descritas em 2 Tessalonicenses, “ que não receberam o amor da verdade” , senão os mesmos apóstatas que preferem seguir o “status quo” ou a prática corrente da religião ao invés de fazerem como os varões de Bereia e conferir nas Escrituras para ver se as coisas são de fato assim?
Ao sentir-se ofendido pelo texto, cujo único objetivo é apontar para aqueles que desejam conhecer o que Deus diz na Palavra de Deus em contraste com os costumes do mundo cristianizado, você levou a coisa para o lado pessoal, achando que o autor estava criticando a fé de pessoas que com uma vida de devoção a Deus, ainda que dentro de uma denominação. É preciso ir muito além do texto para pensar assim e tirar as conclusões que tirou.
Em nenhum momento é colocada em dúvida a fidelidade das pessoas, mas sim algumas de suas práticas que são contrárias à doutrina dos apóstolos. Na maioria das vezes, não por deliberada desobediência, mas por simples desconhecimento. Eu prefiro que alguém aponte algo que esteja fazendo de errado por desconhecer, do que continuar ignorando. Posso não gostar no início, mas depois vejo que a correção foi proveitosa.
(Hb 12:11) “ na verdade, nenhuma correção parece no momento ser motivo de gozo, porém de tristeza; mas depois produz um fruto pacífico de justiça nos que por ele têm sido exercitados”.
A única Pessoa para a qual os cristãos devem estar congregados é a Pessoa de Jesus. E o único nome bíblico para os cristãos estarem congregados é o nome de Jesus. Mostre-me na Bíblia algum outro nome e eu irei prontamente concordar que você está com a razão. Deus, em sua graça, é capaz de relevar muitos de nossos erros e equívocos, por mais devotos e piedosos que sejamos, mas você sabe que com o conhecimento vem a responsabilidade. E agora você conhece. O fato de sua avó e tantos outros servos de Deus que tanto contribuíram para a disseminação do evangelho no Brasil desconhecerem isso não altera o fato de que temos princípios claros na Palavra de Deus a respeito.
Espero que estes textos possam esclarecer melhor o assunto, e tenha por certo que o que você chamou de “celeuma” nada tem a ver com a fé e devoção individual de milhões de cristãos em todo o mundo que ignoram que Deus é honrado quando representarmos que há um só corpo na prática na forma como nos reunimos. O desejo expresso pelo Senhor é muito claro:
(Jo 17:20-24) “ E rogo não somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim; para que todos sejam um ; assim como tu, ó Pai, és em mim, e eu em ti, que também eles sejam um em nós; para que o mundo creia que tu me enviaste . E eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que sejam um , como nós somos um; eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade , a fim de que o mundo conheça que tu me enviaste, e que os amaste a eles, assim como me amaste a mim. Pai, desejo que onde eu estou, estejam comigo também aqueles que me tens dado, para verem a minha glória, a qual me deste; pois que me amaste antes da fundação do mundo”.
Pode o mundo enxergar unidade em um testemunho picado nessa colcha de retalhos formada por milhares de denominações?