O vinho na Bíblia não tinha álcool?

Obrigado pela coleção de artigos que enviou, nos quais os autores tentam provar que a palavra “vinho” na Bíblia teria duplo sentido: em alguns casos significaria “suco de uva” e em outros “vinho alcoólico”. Ao contrário de um bom vinho, os argumentos ali são difíceis de engolir.

Hoje só conseguimos beber suco de uva em qualquer época do ano porque é pasteurizado, um processo inventado por Louis Pasteur. Portanto, pode até ser que os judeus bebessem suco de uva, mas isso só aconteceria em um breve período após a colheita, já que não tinham refrigeradores e nem conheciam a pasteurização. Qualquer suco de uva guardado por uma semana irá fermentar e acabar virando um tipo de vinho, ou criar mofo e ficar impróprio para o consumo.

A questão do vinho alcoólico que geralmente é levantada por autores norte-americanos é uma consequência da cultura daquele país. Quando adolescente morei por um período na casa de uma família norte-americana e frequentei a high-school, equivalente ao colegial daqui.

Os garotos e garotas costumavam me convidar para sair à noite de carro para ir até o estado vizinho, onde a lei era mais branda e bebidas alcoólicas eram vendidas a maiores de 18 (no estado onde eu morava a idade mínima era 21). Lá um dos garotos, que tinha 18 anos, comprava garrafas de vinho e depois eles estacionavam em algum matagal para se embriagarem dentro do carro.

Eu nunca aceitava o convite pois, além de ilegal e passível de prisão, achava aquilo uma verdadeira idiotice. A questão é que, aquilo que para eles tinha a emoção de assaltar um banco, pois a cultura americana da época não deixava nem as crianças beberem café por ser estimulante, para mim era uma banalidade.

Eu fora criado num lar onde meu pai, como bom filho de italianos, mantinha um garrafão de vinho “Sangue de Boi” ao pé da mesa e sangria de vinho era refresco de criança. Mesmo assim nunca vi meu pai embriagado, e eu mesmo só me embriaguei uma vez nos tempos de faculdade para ver como era a sensação. Horrível.

O próprio Jesus se refere a si mesmo como alguém que comia e bebia, e a crítica que faziam dele só pode indicar que ele estivesse se referindo a beber vinho:

(Mt 11:19) “ Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo , e dizem: Eis aí um homem comilão e beberrão , amigo de publicanos e pecadores”.

Veja que quando o salmista fala das coisas que Deus faz, o vinho está incluído como algo que o próprio Deus faz para alegrar o coração do homem, ao lado do azeite e do pão:

(Sl 104:13-15) “ Ele rega os montes desde as suas câmaras; a terra farta-se do fruto das suas obras. Ele faz crescer a erva para os animais e a verdura, para o serviço do homem, para que tire da terra o alimento e o vinho que alegra o seu coração ; ele faz reluzir o seu rosto com o azeite e o pão, que fortalece o seu coração”.

Será que alguém é ingênuo o suficiente para ler “ ...e o suco de uva que alegra o seu coração”?

A exortação para a celebração da ceia do Senhor era que se controlassem para não ficarem embriagados, uma admoestação que não faria qualquer sentido se a ceia fosse celebrada com suco de uva:

(1 Co 11:21) “ Porque, comendo, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia; e assim um tem fome, e outro embriaga-se ” .

Quando a Bíblia fala da embriaguez causada pelo vinho, ela o faz em referência ao Espírito Santo, que deve ser, este sim, a fonte de alegria do cristão e seu “estimulante”: (Ef 5:18) “ E não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito”.

Se tentar trocar isso tudo por suco de uva, não vai funcionar. As passagens perderão completamente o sentido. Além disso, o próprio primeiro milagre de Jesus se tornaria em motivo de gozação. Quem iria celebrar uma festa de casamento servindo suco de uva? E qual mestre-sala iria elogiar o segundo suco de uva como sendo melhor que o primeiro refresco?

Naquele tempo, aquele que é chamado de “mestre-sala” de nossa versão era uma pessoa que reunia as características de mestre de cerimônia + maître + principal convidado. Enfim, não era apenas alguém capaz de organizar uma festa, mas também um connoisseur em matéria de comidas e bebidas, como um chefe de buffet de nossos dias. Você conhece algum connoisseur de suco de uva?

Tente trocar “vinho” por “suco de uva” no relato da festa de Caná e vai ficar algo absurdo assim:

(Jo 2:9-10) “ E, logo que o mestre-sala provou a água feita suco de uva (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os empregados que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo. E disse-lhe: Todo homem põe primeiro o suco de uva bom e, quando já têm bebido bem, então, o inferior; mas tu guardaste até agora o bom suco de uva ” .

O álcool certamente causa muitas tragédias quando tomado em excesso, mas os textos são tão tendenciosos e têm tantos erros que não consegui continuar. Eles são um caso típico de pessoas que tentam interpretar a Bíblia com base em suas opiniões, quando deveriam fazer justamente o contrário. Os textos distorcem as escrituras para fazerem valer a opinião dos autores. São casos típicos de farisaísmo que levam as pessoas a coarem o mosquito e engolirem o camelo. Apenas um exemplo tirado do primeiro texto, quando o autor dá uma razão pela qual Jesus não poderia ter bebido vinho:

“ Porque em Levítico10:9-11, há o mandamento de que o sacerdote de Deus não podia beber vinho nem bebida forte : ‘Não bebereis vinho nem bebida forte, nem tu nem teus filhos contigo, quando entrardes na tenda da congregação , para que não morrais... para fazer diferença entre o santo e o profano e entre o imundo e o limpo. E para ensinar aos filhos de Israel todos os estatutos que o Senhor lhes tem falado...”.

Se você encontrar um cartaz dizendo “Não bebereis vinho nem bebida forte, nem tu nem teus filhos contigo, quando estiveres dirigindo seu automóvel , para que não morrais”, será que você entenderia o texto como uma proibição generalizada ao consumo de bebida alcoólica?

A ordem semelhante aparece aqui: (Ez 44:21) “ Nenhum sacerdote beberá vinho quando entrar no átrio interior ” .

É claro que quando o autor parte do princípio de que tudo o que fala de positivo sobre a palavra “vinho” está se referindo ao suco de uva, e tudo o que fala de negativo, à bebida alcoólica, fica impossível contra argumentar com versículos como aquele em que Melquisedeque traz pão e vinho para Abraão (Gn 14:18). Melquisedeque teria trazido pão e suco de uva. Mas essa ideia causa mais problemas do que os que tenta resolver. Veja esta passagem:

(Nm 6:2-4) “ Fala aos filhos de Israel, e dize-lhes: Quando alguém, seja homem, seja mulher, fizer voto especial de nazireu, a fim de se separar para o Senhor, abster-se-á de vinho e de bebida forte; não beberá, vinagre de vinho, nem vinagre de bebida forte, nem bebida alguma feita de uvas, nem comerá uvas frescas nem secas. Por todos os dias do seu nazireado não comerá de coisa alguma que se faz da uva, desde os caroços até as cascas”.

Quando a Bíblia quer explicar o tipo de bebida feita com uva, ela o faz em detalhes. A ideia de deixar à nossa vontade interpretarmos quando a palavra “vinho” significa vinho alcoólico ou suco de uva gera problemas na interpretação desta passagem quando Jotão fala por parábolas:

(Jz 9:13) “ Mas a videira lhes respondeu: deixaria eu o meu mosto, que alegra a Deus e aos homens , para ir balouçar sobre as árvores?”.

Acaso o suco de uva poderia alegrar a Deus e aos homens? E se aqui for vinho alcoólico mesmo, como poderia estar associado a alegria em relação a Deus? Lembre-se do Salmo que diz que “o vinho alegra o coração do homem”.

Para mim, a questão é muito simples: beber vinho não é pecado, embriagar-se é. Alimentar-se não é pecado, glutonaria é. Sexo não são pecado, fornicação e sexo fora do casamento é.

Bruce Lackey, autor do primeiro texto que você enviou e que aparece em inglês em vários lugares na Internet, foi pastor batista e não tinha apenas essa opinião equivocada sobre o vinho. Ele estava também entre os que acreditam que a tradução inglesa “King James” da Bíblia foi inspirada por Deus. Isso mesmo, a tradução em si, não apenas a Palavra de Deus em termos genéricos.

Dentro dessa visão, a King James não estaria no mesmo nível da tradução Almeida, por exemplo, já que a Almeida não tem o status de “tradução inspirada”. Precisaríamos todos aprender as línguas originais (hebraico, aramaico e grego), para ler a pura Palavra nos manuscritos, ou aprender inglês e usar a King James. É meio estranho pensar que a Bíblia Almeida que sempre usei não tem o mesmo status divino da King James.

Mais um ponto importante que põe por terra o artigo sobre suco de uva x vinho. A Festa da Páscoa ocorria na Primavera (entre Março e Abril, durava 7 dias) e a Festa dos Tabernáculos (ou colheita dos frutos) no outono (entre Setembro e Outubro, também durando 7 dias).

Ou seja, Quando o Senhor participou da última ceia com seus discípulos, era a Páscoa, portanto 6 ou 7 meses após a colheita das uvas. O cálice que eles beberam certamente não podia ser de suco de uva. Basta guardar suco de uva não pasteurizado e fora de uma embalagem Tetra-Pack para ver que se transforma em um caldo embolorado ou, na melhor das hipóteses, em vinagre.

(Dt 16:13-15) “ A festa dos tabernáculos celebrarás por sete dias, quando tiveres colhido da tua eira e do teu lagar . E na tua festa te regozijarás, tu, teu filho e tua filha, teu servo e tua serva, e o levita, o peregrino, o órfão e a viúva que estão dentro das tuas portas. Sete dias celebrarás a festa ao Senhor teu Deus, no lugar que o senhor escolher; porque o Senhor teu Deus te há de abençoar em toda a tua colheita, e em todo trabalho das tuas mãos; pelo que estarás de todo alegre”.

(Lc 22:13-18) “ Foram, pois, e acharam tudo como lhes dissera e prepararam a páscoa . E, chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ardentemente comer convosco esta páscoa, antes da minha paixão; pois vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. Então havendo recebido um cálice, e tendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós ; porque vos digo que desde agora não mais beberei do fruto da videira , até que venha o reino de Deus”.

É, eu sei que neste ponto o autor do texto diria que aí não diz vinho, mas “fruto da videira”. Neste caso eu perguntaria: então por que razão em todas as outras passagens, como nas bodas de Caná, a bebida não foi chamada de “fruto da videira”?

Resumindo, algumas razões pelas quais Deus não proíbe o uso moderado do vinho:

1. A transformação de água em vinho foi o primeiro milagre do Senhor.

2. O uso do vinho é parte essencial do testemunho cristão, principalmente na Ceia do Senhor.

3. O Senhor era chamado de “glutão e beberrão” simplesmente porque comia e bebia como qualquer ser humano, em contraste com João Batista que se abstinha de certas coisas.

4. O vinho foi usado na última ceia com a aprovação do Senhor, que disse a todos os apóstolos que bebessem do cálice.

5. Colossenses 2 condena a proibição de alimentos criados por Deus (veja também 1 Timóteo4:3-7).

6. O uso do vinho é recomendado pelo apóstolo Paulo em 1 Timóteo 5:23 como medicamento.

7. Em nenhum lugar da Bíblia Deus proíbe beber vinho. A proibição é para o excesso (embriaguez), tanto no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, em especial nos abusos cometidos na Ceia do Senhor em 1 Coríntios 11.

Finalmente, creio que a posição de qualquer cristão não só em relação ao vinho, mas a qualquer fonte de alegria e prazer nesta vida, deve ser sempre a da noiva em Cantares 1:1-4:

“ ...melhor é o teu amor do que o vinho... em ti nos regozijaremos e nos alegraremos; do teu amor nos lembraremos, mais do que do vinho.”