O que acha do discipulado e igrejas em células?

Você perguntou se Jesus manteve vínculos de discipulado e se desde o início havia hierarquia para coordenação das tarefas em geral.

Uma coisa é o ministério de Jesus enquanto estava no mundo, outra bem diferente é a época da Igreja, que começa em Atos 2. A relação de Jesus com seus discípulos não era a mesma que ele tem com a Igreja hoje. Nos evangelhos nós o vemos na condição do Messias esperado tendo um relacionamento com o remanescente judeu que o aguardava.

Por isso encontramos nos evangelhos coisas como adoração no templo de Jerusalém, oferendas que os curados por Jesus deviam fazer, obediência ao clero judeu, dízimo, e até mesmo a limitação do ministério que era voltado apenas aos judeus (a mulher gentia não se importou de ficar com as migalhas do que era exclusivo dos filhos).

Nos evangelhos, a Igreja ainda é uma promessa futura (“ Edificarei minha igreja...” ), portanto não espere achar ali a doutrina dos apóstolos dirigida à Igreja, que é o povo de Deus escolhido antes da fundação do mundo. O mistério (segredo) que esteve oculto por séculos só seria revelado a Paulo, portanto, apesar da Igreja ter sido fundada no dia de Pentecostes em Atos 2, nem mesmo os apóstolos e outros convertidos sabiam exatamente o que era aquilo que Deus estava fazendo. Ignorando que a Igreja não tinha nada a ver com Israel eles continuaram se reunindo no Templo de Jerusalém por algum tempo.

Após ser rejeitado pelos judeus, não apenas em vida, mas depois de sua morte e ressurreição, o Senhor passa a ter um relacionamento diferente com seu povo agora que é a Igreja. Aquilo que é específico para nós hoje você encontra nas epístolas, não nos evangelhos ou nos primeiros capítulos de Atos.

Segundo você, havia uma hierarquia porque “Felipe comandava Jerusalém, Paulo outras regiões...”

Nosso Deus é um Deus de ordem, por isso encontramos nas epístolas bispos (anciãos) e diáconos. Os primeiros incumbidos de supervisionar o rebanho de Deus e os outros de cuidar das tarefas mais mundanas, como a distribuição da provisão para os irmãos necessitados. Não se trata de dons, mas de ofícios.

Quanto à sua pergunta sobre supostos vínculos de discipulado entre Paulo, Timóteo e Barnabé, e se este tinha sido instruído a fazer discípulos também, acredito que se aplica aí o velho ditado: “Para o martelo tudo tem cara de prego”. Por você seguir uma doutrina de igrejas em células que coloca uma grande ênfase no discipulado, existe o risco de querer enxergar tudo através dessa lente e acabar perdendo de vista o que é realmente importante. Por exemplo, veja sua pergunta que, sem querer, você faz usando as mesmas lentes: “Como fazer discípulos sem uma estrutura denominacional como base de fidelidade, cobertura e prestação de contas?”

Se formos para a Palavra de Deus, vamos encontrar que “discípulo” significa simplesmente aprendiz, e que o discípulo perfeito é o próprio Jesus: Isaías 50:4 “ O Senhor Deus me deu a língua dos instruídos para que eu saiba sustentar com uma palavra o que está cansado; ele desperta-me todas as manhãs; desperta-me o ouvido para que eu ouça como discípulo” .

Nos evangelhos encontro que os fariseus tinham discípulos (Mt 22:16; Marcos 2:18), João Batista tinha discípulos (Mt 9:14; Lucas 5:33; Jo 3:25) e Jesus tinha discípulos, alguns deles chamados de apóstolos. Outros também eram chamados de discípulos de Jesus (Jo 6:66), apesar de podermos colocar em dúvida se eram reais ou não. Portanto, além de “aprendiz” discípulo também tem o significado de “seguidor”.

Aos judeus que ouviam a palavra de Jesus, ele exortava:

(Jo 8:31) “ Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sois meus discípulos ; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará".

Tentei encontrar algum outro tipo de discípulo além dos discípulos dos fariseus, de João Batista e de Jesus, e só encontrei discípulos de homens em Atos 20:30, mas neste caso discípulos de hereges: (At 20:30) “ E que, dentre vós mesmos, se levantarão homens que falarão coisas perversas, para atraírem os discípulos após si”.

Posso estar enganado, mas em todas as outras passagens me pareceu que a palavra “discípulos” tem sempre o significado de “ discípulos do Senhor ” como em Atos 9:1, e não de discípulos de outros discípulos, como se existisse uma pirâmide ou cadeia de comando na Igreja. Você pode me indicar alguma passagem que fale de alguém sendo formalmente chamado de discípulo de Paulo ou de Pedro? Eu não achei.

Eu sei que há alguns grupos de cristãos hoje que colocam ênfase no discipulado, criando uma espécie de pirâmide à semelhança de organizações de marketing multinível. Nessas pirâmides há discípulos de discípulos numa cadeia de submissão do aprendiz para com seu mestre, mas será que o Senhor ensinou isso? Veja esta passagem:

(Mt 10:24) “ Não é o discípulo mais do que o mestre , nem é o servo mais do que o seu senhor. Basta ao discípulo ser como seu mestre , e ao servo ser como seu senhor”.

Aparentemente o Senhor está mostrando que o exemplo para o discípulo é seu mestre, e isso podia valer no caso dos fariseus e seus discípulos, e de João Batista e seus discípulos. Mas será que algum cristão quer ser menos do que discípulo de Cristo? Quero dizer, será que somos exortados a sermos discípulos de homens?

É certo que encontramos a exortação para ensinarmos pessoas que possam ensinar outras pessoas, como Paulo diz a Timóteo em 2 Timóteo 2:2, mas não encontro esse tipo de vínculo que costumamos ver em alguns grupos de cristãos que adotam um tipo de discipulado sistemático nas chamadas “igrejas em células”. “ E o que de mim, entre muitas testemunhas, ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros” refere-se tão somente ao ensino, não a um vínculo no qual o discipulador detém algum tipo de controle sobre seu aprendiz, ou este tenha algum tipo de obrigação de seguir o outro.

Embora possamos usar aí a designação de “aprendiz” para aquele que é objeto do ensino, não há qualquer admoestação no sentido de criar seguidores da pessoa que ensina (ao qual algumas denominações costumam dar o nome de “discipulador”), como é o caso dos hereges de Atos 20:30. Ensinamos pessoas a serem seguidoras (discípulos) de Jesus, não de nós mesmos ou de outros homens.

Alguns usam Atos 9:26-27 como argumento a favor do discipulado de homens, como se ali Saulo estivesse provando ser discípulo de Barnabé, mas na verdade a palavra “discípulo” ali se refere a Cristo. Barnabé simplesmente o ajuda a entender certas coisas como fizeram Priscila e Áquila com Apolo em Atos 18:26.

Já vi também alguns se referindo ao fato de Barnabé buscar Paulo em Atos 11:25-26 como se fosse prova de algum tipo de vínculo de sujeição de Paulo para com Barnabé, mas tudo indica que é o contrário: Barnabé simplesmente reconhece as limitações do dom que Deus lhe deu, que é o de pastor conforme vemos no versículo 24, e vai em busca de alguém com o dom de mestre, o próprio Paulo, para ajudá-lo no trabalho de ensinar a recém-formada assembleia de Antioquia.

Não devemos nos esquecer de que muito do que Paulo aprendeu ele recebeu do próprio Senhor, e não de outros discípulos do Senhor, em especial a revelação do que era a Igreja.

Portanto, sua pergunta “como fazer discípulos sem uma estrutura denominacional” tem um problema já no conceito do que é um discípulo, visto que em nenhum lugar você encontrará a palavra atribuída a um relacionamento entre um cristão e o que lhe ensina, exceto no caso dos hereges de Atos 20. Mas certamente aquilo não é o exemplo que queremos seguir. Ou será que você pode me apontar um versículo que confirme a ideia de uma pirâmide de discipulado?

Quando encontramos pessoas que ensinam querendo exercer algum tipo de senhorio sobre os que aprendem temos um problema sério. A Palavra diz, a respeito dos anciãos ou bispos, e não de “discipuladores”:

(1 Pe 5:2) “ apascentai o rebanho de Deus que está entre vós, tendo cuidado dele, não por força, mas voluntariamente; nem por torpe ganância, mas de ânimo pronto; nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho”.

Veja que é uma função de apascentar, cuidar e servir de exemplo, não de dominar.

É bom sempre lembrar que cada cristão está diretamente ligado à cabeça do corpo, que é Cristo , e não a algum outro membro do corpo que esteja em uma posição intermediária. Essa história de “igrejas em células” e “discipulado” me parece mais uma forma velada de clericalismo, algo como os Nicolaítas de Apocalipse 2, algo que o Senhor diz odiar. Em grego, “nico” significa “conquistar” ou “dominar sobre”, e “laitan” refere-se ao povo ou leigos. Juntando tudo temos “nicolaítas” ou “conquistadores do povo ou dos leigos”.

Quer um conselho? Fuja de qualquer doutrina ou sistema clerical ou de pirâmide de comando. O que é bom para a Amway não é bom para a Igreja de Deus.

“ ...porque sois discípulos de Cristo” (Mc 9:41).

Nota: Um leitor chamou minha atenção para Atos 9:25 que, em algumas versões traz “seus discípulos”, como se referindo a discípulos de Paulo, não apenas do Senhor.

Almeida Corrigida: (Atos 9:25) “ tomando-o de noite os discípulos , o desceram, dentro de um cesto, pelo muro".

Nova Versão Internacional: (Atos 9:25) “ Mas os seus discípulos o levaram de noite e o fizeram descer num cesto, através de uma abertura na muralha” .

As versões que tenho aqui, inclusive duas literais em inglês (traduzidas do grego palavra por palavra), não fazem referência a serem discípulos de Paulo, mas falam simplesmente “discípulos”. O capítulo desde o começo parece indicar que sejam discípulos do Senhor:

(At 9:1) “ E Saulo, respirando ainda ameaças e mortes contra os discípulos do Senhor ...”.

(At 9:10) “ E havia em Damasco um certo discípulo chamado Ananias”.

(At 9:19) “ E esteve Saulo alguns dias com os discípulos que estavam em Damasco”.

(At 9:25) “ tomando-o de noite os discípulos , o desceram..."

(At 9:26) “ ...procurava ajuntar-se aos discípulos , mas todos o temiam, não crendo que fosse discípulo” .

(At 9:36) “ E havia em Jope uma discípula chamada Tabita...”.

É muito improvável que no versículo 25 esteja falando de discípulos de Paulo, mas há discussões em torno do versículo porque uns manuscritos dizem uma coisa e outros dizem outra. A diferença no grego parece ser bem sutil (não sei grego) e não existe um consenso quanto a qual manuscrito possa ter sido alterado.

Diante das dúvidas até entre os que entendem grego, seria temerário alguém fundamentar toda a doutrina do discipulado encontrada nas “igrejas em células” nesta passagem de tradução dúbia. A melhor coisa diante de tal impasse é perguntar: Uma doutrina assim traz glória para quem, para o Senhor ou para o homem? Se você ouvir pessoas dizendo “meu discípulo” isto e “meu discípulo” aquilo é melhor se perguntar se isso não representa um risco para a carne desse “discipulador”.