Lutero odiava judeus e disse que Jesus era adúltero?
Sua dúvida vem de dois textos, o primeiro geralmente citado em livros católicos como forma de desacreditar o reformador que, juntamente com outros, foi usado por Deus para trazer à tona a verdade bíblica da justificação pela fé. A suposta citação, como sendo de Lutero, aparece em vários livros e sites assim: “Cristo foi um adúltero pela primeira vez com a mulher no poço, pois foi dito ‘Ninguém sabe o que ele está fazendo com ela’ (Jo 4:27). Novamente com Madalena, e ainda com a mulher adúltera em João 8:2-11, a quem ele facilmente deixou ir. Assim o bom Cristo teve que se tornar um adúltero antes de morrer”.
Em “Sobre os judeus e suas mentiras” Lutero escreveu:
“(...) Finalmente, no meu tempo, [os judeus] foram expulsos de Ratisbona, Magdeburgo e de muitos outros lugares... Um judeu, um coração judaico, são tão duros como a madeira, a pedra, o ferro, como o próprio diabo. Em suma, são filhos do demônio, condenados às chamas do Inferno. Os judeus são pequenos demônios destinados ao inferno... Queime suas sinagogas. Negue a eles o que disse anteriormente. Force-os a trabalhar e trate-os com toda sorte de severidade ... são inúteis, devemos tratá-los como cachorros loucos, para não sermos parceiros em suas blasfêmias e vícios, e para que não recebamos a ira de Deus sobre nós. Eu estou fazendo a minha parte... Resumindo, caros príncipes e nobres que têm judeus em seus domínios, se este meu conselho não vos serve, encontrai solução melhor, para que vós e nós possamos nos ver livres dessa insuportável carga infernal – os judeus.”
Que Lutero não gostava de Judeus é sabido pois escreveu um texto com o título “Sobre os judeus e suas mentiras”. Ele não fazia nada mais que seguir o pensamento católico de sua época, pois afinal Martinho Lutero tinha sido criado no catolicismo e a igreja católica obrigava os judeus a serem batizados como cristãos sob pena de serem queimados vivos caso se recusassem a fazê-lo. Grande parte do tesouro acumulado pelo Vaticano vem dessa época, quando a Inquisição dividia os bens dos presos e mortos com o rei. Então não fica difícil entender o interesse de Roma em acabar com judeus, ciganos, protestantes e todo mundo que não rezasse pelo seu catecismo, principalmente se fosse podre de rico como muitos judeus eram. Assim como praticamente todos os cristãos de sua época, Lutero seguia a Teologia do Pacto, que considera a igreja apenas uma versão 2.0 de Israel, e neste raciocínio os judeus já não teriam direito às bênçãos de prosperidade prometidas por Deus no Antigo Testamento, e elas teriam sido então destinadas à Igreja.
O sentimento dos cristãos da época (e da maioria das denominações fundamentalistas de hoje) seria como o de um filho adotivo que, depois que o filho legítimo e herdeiro caiu em desgraça e foi deserdado pelo pai, passa a persegui-lo para evitar que ele venha a apropriar-se indevidamente da herança. Se quiser entender melhor o que é a teologia do pacto leia o livro “Teologia do Pacto ou Dispensações - Qual a maneira correta de se interpretar as Escrituras?”, por Bruce Anstey. Fazendo uma busca na Web você poderá encontrar a versão e-book gratuita e a versão impressa, que é vendida. Também já escrevi algo sobre o texto de Lutero contra os judeus em um artigo com o título “Por que cristãos perseguiram judeus na Segunda Guerra Mundial_?”_disponível em meu site Respondi.com.br.
Mas a acusação de um suposto adultério de Jesus com diferentes mulheres como sendo uma citação de Lutero, que você encontra em muitos sites e livros católicos, nada mais é do que a versão truncada de citações de pessoas que conviveram com ele. O texto foi originalmente publicado em um volume chamado “Luther’s Table Talk”, LW 54.154. Os textos desse livro não são da pena de Lutero — daí o título “Conversas à Mesa” — mas comentários escritos por seus amigos e alunos e publicados após sua morte. Seria como hoje publicar os comentários que alguém faz numa rede social sem o contexto, isso é, a postagem que originou aqueles comentários truncados. Não é muito difícil entender como Lutero poderia ter dito algo assim (se é que disse com essas palavras), quando se conhece um de seus sermões. Em 1536 ele afirmou que Cristo foi criticado pelo mundo como sendo glutão, beberrão e até mesmo adúltero. Conecte isso à frase encontrada nos comentários de seus alunos e publicada como sendo dele e você teria algo assim [entre chaves meu acréscimo]:
“[Jesus foi criticado pelo mundo como sendo glutão, beberrão e até mesmo adúltero. Para seus opositores,] Cristo foi um adúltero pela primeira vez com a mulher no poço, pois foi dito ‘Ninguém sabe o que ele está fazendo com ela’ (Jo 4:27). Novamente com Madalena, e ainda com a mulher adúltera em João 8:2-11, a quem ele facilmente deixou ir. Assim o bom Cristo teve que se tornar um adúltero antes de morrer”.
É covardia atribuir a Lutero uma frase truncada e fora de contexto citada por seus amigos e alunos numa conversa ao redor de uma mesa (e sem saber quanta cerveja aqueles alemães bebiam em ocasiões assim). Pior ainda é que a frase só foi publicada após a morte de Lutero, que então seria incapaz de corrigi-la ou colocá-la no seu devido contexto. Seria a mesma coisa alguém dizer que encontrou na Bíblia a afirmação: “Não há Deus” (Sl 53:1). Sim, pode correr lá que vai encontrar. Mas teria Davi realmente dito isso? Você só saberia o que ele disse colocando a afirmação dentro de seu contexto: “Disse o néscio no seu coração: ‘Não há Deus’” (Sl 53:1).
Lutero pode ter cometido muitos erros e ensinado muitas coisas equivocadas, por conta até do que era comum ser ensinado por cristãos na época, tanto dentro do catolicismo romano, como entre os reformadores que Deus usou para trazer de volta a verdade da justificação pela fé. Mas seria uma insanidade acusar Lutero de considerar Jesus um mero pecador, e muito mais um adúltero! Em seus sermões ele deixa claro como Deus enviou o seu Filho ao mundo por ser o único que poderia substituir o homem pecador e ser o Cordeiro de Deus para tirar o pecado do mundo. Lutero sabia muito bem que Jesus, sendo divino, era o único Homem sem pecado. Lutero tinha muito claro em sua mente e em seus escritos que “Àquele que não conheceu pecado, o fez pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus” (2 Co 5:21).
Portanto a citação na qual Lutero estaria supostamente dizendo que Cristo cometeu pecado nada mais é do que um texto truncado escrito por alguém que disse que alguém falou que Lutero teria dito. Já ouviu a expressão “Rádio Peão”? Pois é, ela já existia há 500 anos. Portanto se eu fosse você não acreditaria que Lutero tenha disso isso, ao menos como uma afirmação fora de um contexto mais amplo.