Servir a Deus restabelece minha comunhão?
Em minhas palestras de vendas, costumo dizer a lojistas que jamais devem deixar um vendedor trabalhar antes de ser devidamente treinado. A ideia de que um vendedor inexperiente vai aprender vendendo só se torna verdade depois de algum tempo de tentativas e erros. Mas aí ele terá causado um prejuízo incalculável pelo número de clientes que perdeu e talvez nunca mais retornem à loja.
Isso é parecido com o cristão que tenta restabelecer sua comunhão com Deus, perdida por pecado ou simplesmente por desânimo, envolvendo-se na obra do evangelho. Antes de trazer algum bem à obra, ele está propenso a causar danos irreparáveis.
É comum conhecermos irmãos que um dia deram um grande testemunho de conversão e vida, mas acabaram se acomodando em sua comunhão com Deus. Isso pode acontecer comigo e com você. Passamos a admitir coisas em nossas vidas que vão minando a comunhão com o Senhor e tornando nosso andar inconstante e inconsequente. Tornamo-nos mundanos e desesperados para manter uma casquinha de aparência religiosa.
Aí inventamos algumas explicações para nossos pecados ou simplesmente para nossa vida mundana, só para cauterizarmos ainda mais nossa consciência, e não percebemos o quanto essas coisas enfraquecem nosso testemunho. Então, fracos e desanimados em nossa vida cristã e tentando achar ainda algum resquício de fé em nosso coração, tentamos restabelecer o gozo do “primeiro amor” fazendo algo para o Senhor para curar nossas próprias feridas, mas isso é trocar as prioridades. Tentamos encher de atividades e obras um coração vazio de comunhão com Deus.
O correto seria primeiro resolver nossa comunhão com o Senhor, para só depois colocar mãos limpas e pés desempoeirados à disposição dele em sua obra. Em Hebreus, quando fala da disciplina e correção que Deus nos dá, existe uma ordem dos passos tomados. Se primeiro eu não levantar minhas mãos cansadas e joelhos desconjuntados e endireitar as veredas de meus pés, ser efetivamente sarado, e seguir a paz com todos e a santificação, corro o risco de contaminar a muitos com alguma raiz de amargura existente em meu coração, seja ela contra Deus ou contra meus irmãos:
(Hb 12:12-15) "Portanto, tornai a levantar as mãos cansadas e os joelhos desconjuntados, e fazei veredas direitas para os vossos pés, para que o que manqueja se não desvie inteiramente; antes, seja sarado. Segui a paz com todos e a santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor, tendo cuidado de que ninguém se prive da graça de Deus, e de que nenhuma raiz de amargura, brotando, vos perturbe, e por ela muitos se contaminem".
Primeiro vem a confissão, depois a restauração; primeiro a ferida precisa ser espremida, para depois cicatrizar; primeiro devemos alimentar bem nosso coração com a Palavra, para depois nossa boca falar. (Mt 12:34) “Pois do que há em abundância no coração, disso fala a boca”.
A ideia de que a ocupação com a obra do Senhor nos dará mais comunhão com Deus pode até ajudar um pouquinho, mas enquanto essa comunhão não vem só fazemos estrago na obra. É o vendedor inexperiente tentando atender clientes horrorizados com suas notas fora, truculência e falta de tato. É um rinoceronte solto numa loja de cristais. Com o cristão o desastre tem consequências mais sérias, para ele e para os que são atingidos por seu testemunho inconsequente.
A obra do evangelho não é terapia; a obra do Senhor é coisa séria. Eu não devo executá-la para a cura de meu próprio coração e meu próprio proveito, mas para a cura e o proveito dos outros e a glória do Senhor. A falta de comunhão não pode ser substituída por atividade das mãos, porque essa atividade trará em si a marca da falta de comunhão e contaminará a muitos com meu andar inconsequente. Sei bem dessa tendência, porque acontece comigo com uma frequência maior do que gostaria.
Um bom exercício é sempre perguntar a mim mesmo: Esse fervor para com a obra de Deus vem de uma comunhão real ou estou tentando encobrir algum pecado? Será que estou tentando compensar a falta de fé com obras? Trocando obediência por sacrifícios? Isso me transforma num sepulcro caiado e evidentemente será notado por qualquer irmão mais espiritual, mas não por mim mesmo, que continuarei cegamente pisando em cristais. Veja que interessante esta passagem (1 Sm 15:1-23):
"Então, disse Samuel a Saul: Enviou-me o Senhor a ungir-te rei sobre o seu povo, sobre Israel; ouve, pois, agora a voz das palavras do Senhor”. Assim diz o Senhor dos Exércitos: Eu me recordei do que fez Amaleque a Israel; como se lhe opôs no caminho, quando subia do Egito. Vai, pois, agora, e fere a Amaleque, e destrói totalmente tudo o que tiver, e não lhe perdoes; porém matarás desde o homem até à mulher, desde os meninos até aos de peito, desde os bois até às ovelhas e desde os camelos até aos jumentos... Então, feriu Saul os amalequitas, desde Havilá até chegar a Sur, que está defronte do Egito. E tomou vivo a Agague, rei dos amalequitas; porém a todo o povo destruiu a fio de espada. E Saul e o povo perdoaram a Agague, e ao melhor das ovelhas e das vacas, e às da segunda sorte, e aos cordeiros, e ao melhor que havia e não os quiseram destruir totalmente; porém a toda coisa vil e desprezível destruíram totalmente... Veio, pois, Samuel a Saul; e Saul lhe disse: Bendito sejas tu do Senhor; executei a palavra do Senhor. Então, disse Samuel: Que balido, pois, de ovelhas é este nos meus ouvidos, e o mugido de vacas que ouço? E disse Saul: De Amaleque as trouxeram; porque o povo perdoou ao melhor das ovelhas e das vacas, para as oferecer ao Senhor, teu Deus; o resto, porém, temos destruído totalmente... Por que, pois, não deste ouvidos à voz do Senhor? Antes, voaste ao despojo e fizeste o que era mal aos olhos do Senhor. Então, disse Saul a Samuel: Antes, dei ouvidos à voz do Senhor e caminhei no caminho pelo qual o Senhor me enviou; e trouxe a Agague, rei de Amaleque, e os amalequitas destruí totalmente; mas o povo tomou do despojo ovelhas e vacas, o melhor do interdito, para oferecer ao Senhor, teu Deus, em Gilgal. Porém Samuel disse: Tem, porventura, o Senhor tanto prazer em holocaustos e sacrifícios como em que se obedeça à palavra do Senhor? Eis que o obedecer é melhor do que o sacrificar; e o atender melhor é do que a gordura de carneiros. Porque a rebelião é como o pecado de feitiçaria, e o porfiar é como iniquidade e idolatria. Porquanto tu rejeitaste a palavra do Senhor, ele também te rejeitou a ti, para que não sejas rei.”.
O resumo de tudo é que Deus havia dado a Saul uma ordem através de Samuel: destrua os amalequitas, seu rei Agague, e TUDO o que possuem. De olho em suas próprias concupiscências e indo na onda do povo, Saul perdoou a Agague e ainda preservou todos os animais que deviam ter sido destruídos. Para Samuel ele teve a audácia de dizer que executou a Palavra do Senhor.
Então, para se defender diante de Samuel, ele faz o que Adão fez no Éden: culpa outro. Para Adão, a culpa era da mulher e de Deus, que deu a ele uma companheira. Para Saul, a culpa é do povo que o influenciou. Nos dois casos a própria palavra do pecador é sua sentença. Deus disse a Adão: "Porque deste ouvidos à mulher...”, ou seja, a culpa era mesmo de Adão por ter escutado Eva. E aqui Saul acaba de selar seu destino de perder o reino, ao dizer que fez tudo influenciado pelo povo. Que rei era esse que agia ao bel prazer do povo? (isso é o que hoje chamamos de “democracia”, algo que nunca foi de Deus).
Ao fazer o que faz todo religioso para se redimir, Saul tenta comprar o favor de Deus com sacrifícios, com a desculpa de que preservou o despojo para Deus. Isso é parecido com os cristãos que dizem que jogam na loteria para poderem ajudar mais na obra do Senhor.
Para cumprir a ordem de Deus desprezada por Saul, Samuel mata Agague, mas aparentemente Saul deu dado tempo aos descendentes de Agague para fugirem e continuarem a linhagem dos agagitas (que significa descendentes de Agague). Os resultados dessa desobediência vão aparecer cerca de 500 anos depois no livro de Estar, na pessoa de Amã, um agagita (Et 3:1). A história de Ester termina com o Rei enviando cartas para todo o reino dando aos judeus licença para matarem a todos os que os perseguiam e tomarem posse do despojo.
(Et 8:11) "Nelas, o rei concedia aos judeus que havia em cada cidade que se reunissem, e se dispusessem para defenderem as suas vidas, e para destruírem, e matarem, e assolarem a todas as forças do povo e província que com eles apertassem, crianças e mulheres, e que se saqueassem os seus despojos".
Porém, ao contrário do que fez Saul, os judeus destruíram seus inimigos, mas não tomaram o despojo. Era como se estivessem cumprindo tardiamente uma ordem dada por Deus quinhentos anos antes.
(Et 9:16) "Também os demais judeus que se achavam nas províncias do rei se reuniram para se porem em defesa da sua vida e tiveram repouso dos seus inimigos; e mataram dos seus aborrecedores setenta e cinco mil; porém ao despojo não estenderam a sua mão”.