Não devemos utilizar fábulas para ensinar a Bíblia?

Sua indagação é muito interessante, por isso fui investigar um pouco o que você comentou. Realmente o livro “As crônicas de Nárnia” de C. S. Lewis pode ser considerado uma fábula ou alegoria, mas acredito que não seja desse tipo de fábula que o apóstolo Paulo fala em 1 Timóteo.

(1Tm 1:3-4) "Como te roguei, quando parti para a Macedônia, que ficasses em Éfeso, para advertires a alguns que não ensinem outra doutrina, nem se deem a fábulas ou a genealogias intermináveis, que mais produzem questões do que edificação de Deus, que consiste na fé; assim o faço agora”.

Se prestar atenção ao contexto, o apóstolo não está escrevendo que fábula seja uma ferramenta ruim, mas de pessoas que estariam se apegando a fábulas como elas fossem um fim ou a verdade em si mesmas. Em outras traduções, ao invés de “fábulas” você encontra “mitos” e “lendas”, o que parece fazer mais sentido. Como ele fala de doutrina no versículo 3, eu leria a passagem assim: “nem se deem a doutrinas fantasiosas, mitos, lendas ou a genealogias”.

Aliás, estas coisas — lendas, mitos ou doutrinas fantasiosas e genealogias — são o fundamento e a ocupação da religião Mórmon. Seus seguidores têm entre seus escritos sagrados o Livro de Mórmon, que conta uma mirabolante história de uma civilização israelita que deixou Jerusalém antes de sua queda e viajou para a América, onde habitou e floresceu. Obviamente jamais se encontrou sequer um caco de cerâmica ou ponta de flecha dessa civilização. Puro mito ou lenda.

Outra ocupação principal dos Mórmons é com genealogia. Numa interpretação equivocada de 1 Coríntios 15:29 "Doutra maneira, que farão os que se batizam pelos mortos, se absolutamente os mortos não ressuscitam? Por que se batizam eles, então, pelos mortos?” .

Mas voltando à sua questão, C. S. Lewis foi um ateu que se converteu a Cristo e deixou uma importante obra de meditação sobre a Palavra de Deus e a vida do cristão. Ele não apenas utiliza fábulas em suas obras, como também filosofia, mas na maioria das vezes não vejo que o faça de maneira contrária à vontade de Deus. Além disso, essa é uma prática comum entre escritores cristãos. Um dos livros mais lidos do mundo, “O Peregrino”, é uma alegoria ou fábula, se preferir chamá-lo assim, em cuja história coisas como Pecado, Cobiça, Avareza, etc. são personificadas. Outro livro semelhante é “Pés como os da corça nos lugares altos”, de Hannah Hurnard.

O que esses autores fazem é usar um artifício literário para ensinar de forma didática uma verdade. As fábulas geralmente são aquelas em que animais ou seres inanimados assumem papéis humanos, e as mais antigas conhecidas são de um grego chamado Esopo. “A cigarra e a formiga” é uma de suas fábulas mais conhecidas, depois contada em livro por La Fontaine.

Outro artifício é a parábola, bastante usada pelo Senhor nos evangelhos, na qual objetos, plantas ou animais são usados como um paralelo que permita transmitir um ensino moral. Os sonhos do Faraó e de Nabucodonosor parecem ter sido colocados em suas mentes com as características de parábolas.

Os profetas de Israel também costumavam utilizar uma linguagem figurada para revelar algo. Por exemplo, (2 Cr 25:18) "Mas Jeoás, rei de Israel, mandou responder a Amazias, rei de Judá: O cardo que estava no Líbano mandou dizer ao cedro que estava no Líbano: Dá tua filha por mulher a meu filho. Mas uma fera que estava no Líbano passou e pisou o cardo”.

Em 2 Samuel 12 o profeta Natã conta uma historinha de um homem rico e um homem pobre, a da ovelha do pobre roubada pelo rico, para tocar a consciência de Davi. Obviamente o profeta usa de uma alegoria. Em Isaías 5 Deus usa a figura de uma vinha para tocar a consciência de seu povo.

O livro de Cantares é todo ele, uma belíssima história romântica que tem por objetivo mostrar o amor e a relação de Deus (o noivo) para com seu povo terreno, Israel (a noiva). Jesus usa mais de 40 parábolas nos evangelhos, ou seja, histórias contadas usando situações, objetos e pessoas do cotidiano, como forma de revelar verdades espirituais.

O próprio livro do Apocalipse é em grande parte escrito em linguagem alegórica, em um estilo muito parecido ao dos profetas do Antigo Testamento. A mensagem que ele passa é real, mas a forma usada para descrevê-la é alegórica, como quando fala de escorpiões, estrelas, etc., coisas que representam algo além da própria designação usada.

Voltando ao livro de C. S. Lewis, ou até mesmo à trilogia “O Senhor dos Anéis”, de J. R. R. Tolkien, que evangelizou C. S. Lewis e também usou de alegorias em seus livros para passar mensagens cristãs, não sou um profundo conhecedor das obras de ambos. Eles (principalmente Tolkien) eram especialistas em lendas e mitos da Antiguidade e seus livros são abundantes neste sentido.

Embora não veja problema em usar coisas, animais e pessoas em histórias fictícias para demonstrar verdades eternas, particularmente eu não me sentiria à vontade para usar magia e mitos de religiões pagãs para ilustrar verdades cristãs. Se nós, brasileiros, tentássemos algo assim por aqui, acabaríamos usando personagens como o ‘Saci e a Mula Sem Cabeça’ ou, invadindo a seara mitológica dos deuses pagãos do lado de baixo do Equador, criaríamos parábolas com personagens da mitologia indígena, como ‘Tupã’, ou das religiões importadas da África, como umbanda, candomblé, macumba, etc.