As Bíblias deveriam ser grátis?

A ideia de que Bíblias deveriam ser distribuídas gratuitamente é bastante romântica, mas não é viável na prática, e isto não apenas pelo aspecto financeiro, mas também por causa do comportamento humano.

Um irmão norte-americano que trabalhou vários anos na obra do Senhor (e hoje descansa no céu) contou-me de seu desapontamento ao visitar os lares de pessoas pobres em países do terceiro mundo. Eram pessoas para as quais uma editora enviava gratuitamente pacotes de folhetos evangelísticos acreditando estarem sendo usados na evangelização, e esse irmão descobriu que em algumas das casas que visitou os folhetos estavam no banheiro — eram usados como papel higiênico.

Por esta e outras razões eu acredito que a distribuição de literatura evangelística e Bíblias deve estar cercada de critérios. É claro que sempre que possível deve ser facilitado o acesso das pessoas a esse material tão vital para a alma. Mas isso precisa ser feito com sabedoria.

No século 19 e início do século 20 a perseguição contra a Bíblia feita por padres católicos no Brasil era intensa, e as sociedades bíblicas estrangeiras tinham o dissabor de ver que muitas das Bíblias enviadas gratuitamente para as pessoas acabavam nas mãos dos padres que as queimavam como literatura herege. (Nessa época eles estavam mais bonzinhos, pois alguns séculos antes eles queimavam também os donos das Bíblias).

Por isso a Sociedade Bíblia Britânica passou a enviar seus colportores ao Brasil com a missão de trocar Bíblias — o interessado precisava dar algo em troca, fosse isso uma rapadura, um cacho de bananas ou qualquer objeto com algum valor. Assim a Bíblia passava a custar algo para a pessoa, que depois não a entregaria de mão beijada para o padre. Era comum essas pessoas esconderem a Bíblia para ler à noite e evitar que os vizinhos as denunciassem.

A maior parte das Bíblias que você encontra para comprar em todo o mundo é subsidiada por doações, por isso é possível você comprar uma Bíblia capa flexível de cartão, com 1.056 páginas, no site da Sociedade Bíblica do Brasil por R$ 2,00. A mais barata lá, de capa dura, custa R$ 3,00. Certamente você não consegue comprar o papel por este preço, quanto mais um livro impresso. E pasme: hoje o maior produtor mundial de Bíblias é a comunista China, com seus governantes ateus.

Então a pergunta não é por que as Bíblias não são de graça, mas sim por que você e eu não enfiamos a mão no bolso com maior frequência para comprarmos essas Bíblias e distribuí-las de graça? Mesmo assim, não se espante se encontrar alguns usando suas folhas de papel fininho para enrolar cigarros de maconha, como muita gente faz... Aliás, uma curiosidade: a primeira Bíblia de uma sociedade bíblica estrangeira impressa no Brasil foi feita com papel de cigarros, emprestado de uma fábrica daqui, nos tempos da Segunda Guerra, quando não se encontrava papel fino no mercado.

Portanto, o trabalho de literatura, por envolver custos, deve ser encarado também com uma visão de negócio, e não haverá nada de errado com isso. O Senhor Jesus foi carpinteiro enquanto viveu aqui, e certamente ele vendia suas cadeiras e mesas para manter sua profissão, assim como fazia o apóstolo Paulo com as tendas que fabricava, e Lídia, com os produtos que comercializava. Não há nada de errado em um negócio, se ele for administrado dentro dos conselhos de Deus. O que está errado é explorar as pessoas, e isso não fica por conta apenas do comércio de Bíblias, mas de qualquer outro negócio.

Veja a seguir um interessante texto de C. H. Mackintosh escrito no século 19 e tratando da obra de material impresso, que ele chamava de “depósitos de literatura”.

A Obra de Literatura (C. H. Mackintosh)

PARECEU-ME necessário escrever a você uma vez mais para tratar de alguns assuntos ligados à obra de evangelização, os quais ultimamente vêm chamando minha atenção. Há três ramos distintos da obra que gostaria de ver ocupando um lugar claro e de maior proeminência entre nós. Estou me referindo à obra de literatura, à pregação do evangelho e à escola dominical.

Surpreende-me ver que o Senhor está despertando as atenções para a importância da obra de literatura como um valioso meio na obra de evangelização; mas me pergunto se estamos envolvidos nisso com toda a seriedade. Por que digo isto? Será que os livros e folhetos não nos interessam mais e perderam seu valor aos nossos olhos? Ou será que a falta está na maneira como é conduzida a obra de literatura? Em minha opinião parece estar faltando algo no que se refere a este último ponto.

Gostaria muito de ver um depósito de literatura bem administrado em cada cidade; por “bem administrado” eu entendo algo que é assumido e levado adiante como um serviço direto ao Senhor, em sincero amor para com as almas; em profundo interesse pela disseminação da verdade e, ao mesmo tempo, como uma boa empresa. Já vi vários depósitos de literatura desmoronarem por faltar habilidade para negócios em seus responsáveis. Pareciam pessoas bem fervorosas e sinceras, mas incapazes de conduzir um negócio. Em suma, eram pessoas que em cujas mãos qualquer empresa teria ido à falência. Por esta razão, em muitos lugares há um fracasso dos mais deploráveis nesta tão valiosa e interessante obra que é cuidar de um depósito de literatura.

E qual a melhor maneira de alcançar as pessoas para as quais os folhetos e livros são preparados? Creio que é tendo os livros e folhetos expostos para a venda em vitrines, onde quer que isto seja possível, a fim de que as pessoas possam vê-los quando passarem e, parando, possam entrar e comprar o que quiserem. Muitos foram alcançados desta maneira. Não tenho dúvidas de que muitos foram salvos e abençoados por meio de folhetos que foram vistos pela primeira vez em uma vitrine ou expostos sobre um balcão. Mas onde não existe essa possibilidade, é natural que o salão de reuniões da assembleia seja o depósito de literatura.

Existe claramente uma real necessidade de um depósito de literatura em cada grande cidade, dirigido por alguém que tenha jeito para negócios e que seja capaz de conversar com as pessoas acerca dos folhetos, podendo recomendar aquilo que possa ser de auxílio àqueles que ansiosamente procuram pela verdade. Sinto que há muita coisa boa que pode ser feita nesta área. Os cristãos da cidade poderiam saber onde ir buscar folhetos, não só para sua leitura pessoal, mas também para distribuição. Certamente, se há alguma coisa digna de ser feita, é digna de ser bem feita; e se isto não se aplicar à obra de literatura, não sei a que se aplicará.

A obra de literatura deve ser levada adiante como um serviço feito diretamente para Cristo. E tenho certeza de que onde quer que ela seja assim conduzida, em energia, zelo e integridade, o Senhor a honrará e fará dela uma bênção. Será que não há ninguém que queira assumir esta obra tão abençoada, não por causa da remuneração, mas por causa de Cristo? Será que não há ninguém que queira se dedicar a ela numa fé singela, esperando no Deus vivo?

Aqui está a raiz da questão, querido irmão. Pois neste ramo da obra, assim como em cada outro ramo, necessitamos daqueles que confiem em Deus e que se neguem a si mesmos. Parece-me que seria um grande ponto a favor da obra de literatura se esta fosse colocada no seu devido lugar e vista como uma parte integral do trabalho evangelístico; assumida com responsabilidade para com o Senhor, e levada adiante na energia da fé no Deus vivo. Cada ramo da obra do evangelho — a obra de literatura, a pregação, a escola dominical — deve ser levado adiante desta maneira. É bom e saudável contarmos com comunhão — completa e cordial comunhão, em todo o nosso serviço; mas se ficarmos esperando por comunhão e cooperação para podermos começar uma obra que tanto está dentro da esfera da responsabilidade pessoal quanto coletiva, vamos acabar ficando para trás — ou é provável que a obra nem mesmo seja feita.

Devo ter oportunidade de voltar a tratar mais detalhadamente sobre este ponto, quando passar a escrever sobre a pregação e a escola dominical. Tudo o que desejo até aqui é deixar claro o fato de que a obra de literatura é um ramo, e um ramo de grande importância e eficiência, da obra evangelística. Se isto for plenamente entendido por todos, teremos dado um grande passo. Devo confessar, querido irmão, meu senso moral tem sido, com frequência, profundamente escandalizado pelo estilo frio e comercial com que a publicação e venda de livros e folhetos são tratadas — um estilo que talvez seja adequado a um mero negócio comercial, mas que é dos mais ofensivos quando adotado naquilo que diz respeito à obra de Deus. Admito plenamente — e até luto por isto — que o bom gerenciamento de um depósito de literatura exija uma boa parcela de habilidade para negócios, além de princípios comerciais honestos. Mas, ao mesmo tempo, estou convicto de que a obra de literatura nunca estará no seu devido lugar — nunca terá entendido o seu espírito e nunca alcançará o fim desejado — enquanto não estiver firmemente fixada em seus fundamentos santos, e enquanto não for vista como uma parte integral da mais gloriosa obra para a qual somos chamados — a evangelização ativa, fervorosa e perseverante.

E este trabalho deve ser assumido com o senso da responsabilidade para com Cristo, e na energia da fé no Deus vivo. Não haverá nenhum proveito se uma assembleia, ou alguém abastado, escolher algum apadrinhado, entregando-lhe a direção do empreendimento a fim de prover-lhe um meio de ganhar o seu sustento. É algo bendito que todos tenham comunhão na obra; mas estou completamente convencido que o trabalho deve ser assumido como um serviço direto a Cristo, e levado adiante em amor pelas almas e com um verdadeiro interesse na propagação da verdade. Espero voltar a escrever para tratar dos outros dois ramos de meu tema. — Charles Henry Mackintosh — 1820-1896 — Extraído do livro “Cartas aos Evangelistas” (ed Verdades Vivas).