O Evangelho de João assinala a transição da Antiga para a Nova Dispensação
Enquanto as epístolas apresentam o caráter singular da nova iniciativa de Deus em formar a Igreja, com suas bênçãos, privilégios e promessas especiais, o Evangelho de João e o livro de Atos enfatizam a transição da velha para a nova dispensação. O Evangelho de João nos mostra o embrião do Cristianismo, antes que o próprio Cristianismo e a Dispensação do Mistério começassem de fato. Em quase todos os capítulos deste evangelho há elementos do Cristianismo que são, ora ensinados, ora ilustrados para indicar a mudança dispensacional que estava para acontecer.
João é o único escritor do Novo Testamento que escreveu depois de a nação de Israel ter sido literalmente colocada de lado, o que aconteceu no ano 70 D.C. Ele escreveu por volta do ano 90 D.C. quando o Cristianismo já estava completamente estabelecido e a nação judaica tinha sido desfeita. Por ocasião de sua redação já não existia mais Judaísmo — a cidade de Jerusalém e o santuário haviam sido destruídos (Daniel 9:26; Mateus 22:7). O Espírito de Deus guiou João para apresentar a vida do Senhor e o Seu ministério da perspectiva singular de quem olhava para trás através das lentes do Cristianismo. Ao contrário dos outros evangelistas, João tem seu foco em determinadas mudanças dispensacionais no ministério do Senhor que enfatizam o fato de que, no horizonte, já se vislumbrava uma transição do Judaísmo para o Cristianismo.
À medida que os capítulos vão sendo apresentados percebemos vários elementos e ilustrações do Cristianismo feitas pelo Espírito Santo. Estas características são do Cristianismo original, e não daquele corrompido pelas mãos dos homens. Ao mesmo tempo, diversas características importantes do Judaísmo são claramente deixadas de lado. Por exemplo, as festividades à quais o Senhor compareceu em Jerusalém são chamadas de “páscoa dos judeus” e “festa dos judeus” (João 2:12; 5:1; 6:4; 7:2 etc.); elas já não são vistas como Festas de Jeová como eram no passado. Além disso, em João 10:34 e 15:25 o Senhor diz “vossa lei” e “sua lei [deles]”. Aquela era a Lei de Deus, mas agora, em razão do mau uso que os judeus fizeram dela, já não era mais considerada assim. Paulo faz o mesmo em Gálatas 1:13 ao chamar de “Judaísmo” ou “religião dos judeus” o outrora venerado culto a Deus — literalmente “na religião dos judeus”. Repare também que há uma mudança em Mateus 21:13, onde o Senhor diz “Minha casa”, e Mateus 23:38, onde está “vossa casa”. Assim João escreve da perspectiva da antiga dispensação como tendo sido colocada de lado e não sendo mais reconhecida por Deus, até mesmo enquanto o Senhor ministrava na terra.
João 1 — O Evangelho de João começa nos apresentando a Pessoa de Cristo, sobre Quem é fundado o Cristianismo. Após apresentar várias de Suas grandes glórias (João 1:1-14), o apóstolo fala de três coisas que caracterizam a dispensação cristã, todas elas resultantes de Cristo haver encarnado, a redenção ter sido consumada, e o Espírito Santo ter vindo:
• Os homens são agora capazes de conhecer e contemplar a glória do unigênito Filho de Deus (João 1:14).
• A disposição de Deus para com o homem em graça é agora feita conhecida através do evangelho. A “Lei”, outrora dada por Moisés, foi agora substituída por “graça e verdade”, que vieram por meio de Jesus Cristo (João 1:15-17).
• Agora está disponível uma completa declaração de Deus como sendo o Pai (João 1:18).
O apóstolo João registra então alguns incidentes que ocorreram durante os dias do ministério de João Batista e que apontavam para uma mudança de dispensações surgindo no horizonte. Considerando que a antiga ordem de coisas no Judaísmo havia sido corrompida, o batismo de João Batista significava que era preciso uma dissociação moral de tudo aquilo por aqueles que tinham fé, e isso por meio do batismo de arrependimento. Se a nação se submetesse àquele batismo e desse frutos de arrependimento, ela não seria colocada de lado por Deus (João 1:19:28). É significativo que João tenha adotado uma posição “além do Jordão” para ministrar o seu batismo. Isso indica uma separação moral do estado de coisas no centro judaico em Jerusalém.
João Batista é então visto apresentando o Senhor Jesus, “o Cordeiro de Deus” e “Filho de Deus”, a seus próprios discípulos, os quais eram devotos da dispensação passada enquanto aguardavam pelas promessas do reino conforme tinham sido apresentadas pelos profetas do Antigo Testamento. Eles passaram a seguir o Senhor depois disso (João 1:29-34). Estes títulos do Senhor coincidem com a revelação da Sua Pessoa na atual dispensação. Por estar em sintonia com os pensamentos de Deus, João Batista se alegrava em passar seus discípulos para o Senhor (João 1:35-37). Tal mudança é significativa e aponta a transição para a nova ordem no Cristianismo que estava chegando.
O apóstolo João passa a mostrar que o próprio Cristo seria o novo Centro e lugar de reunião na nova ordem de coisas. A Sua presença seria conhecida, não no templo de Jerusalém, mas em uma humilde casa onde os crentes estivessem congregados em torno dele (João 1:38-42).
João 2 — O milagre da transformação da água em vinho, que ocorreu no casamento em Caná da Galileia, ilustra outra característica da nova dispensação. O “vinho” nas Escrituras costuma representar alegria (Juízes 9:13; Salmos 104:15). O problema na festa era que o vinho havia acabado. Isto nos fala da antiga ordem de coisas — Israel — que fracassou nas mãos dos homens. Quando o vinho velho acabou o Senhor introduziu o vinho novo, que era melhor. Isto indica que as alegrias espirituais que viriam na nova dispensação seriam superiores àquelas que podiam ser experimentadas na antiga dispensação.
Nos versículos 13-17 o Senhor expulsou do templo os obreiros corruptos. Aquilo era uma ação simbólica indicando que Deus estava prestes a colocar um fim na ordem corrupta do culto judaico. O Senhor falou então de Sua ressurreição (João 2:18-22). Ainda que eles “destruíssem” o Seu corpo por meio da morte, Ele ressuscitaria o “templo do Seu corpo” em “três dias” (João 2:19, 21). Portanto a nova ordem que estava para ser introduzida seria fundamentada na ressurreição de Cristo.
João 3 — Nos versículos 9-10 o Espírito de Deus apresenta o assunto da “vida eterna” como sendo a porção daqueles que viriam a receber o Senhor na nova dispensação. Isto é algo que vai além do “nascer de novo” que os israelitas crentes já possuíam e que Nicodemos deveria conhecer por intermédio do profeta Ezequiel. Em essência, ambas as coisas têm a ver com a posse de vida divina, mas, como já foi observado, ter vida eterna é possuir esta vida em uma comunhão consciente com o Pai e o Filho (João 17:3). A posse disso exigia que o Filho viesse revelar o Pai (João 1:18; 14:9), que a redenção fosse consumada (João 3:14-16) e que o Espírito Santo (a “fonte”) viesse habitar no crente (João 4:14).
Estas coisas não eram conhecidas e nem possuídas pelos da antiga dispensação. Portanto, os santos do Antigo Testamento não poderiam ter possuído vida eterna. Eles eram nascidos de novo e por esta razão possuíam vida divina, e agora estariam a salvo com Cristo no céu. Os cristãos são igualmente nascidos de novo, pois é este o meio pelo qual entram no reino de Deus (João 3:5), mas possuem algo mais — eles têm aquela vida eterna em um relacionamento consciente com o Pai e o Filho. Esta é a chamada vida eterna. Trata-se de uma bênção celestial e elemento distinto que identifica a nova dispensação. Ao introduzir a vida eterna o Senhor estava demonstrando que as “coisas terrestres” dariam lugar às coisas “celestiais” (João 3:12).
João 4 — O Senhor ensinou a mulher à beira do poço três coisas bastante significativas que iriam assinalar a mudança da velha ordem de adoração da antiga dispensação para a nova ordem de adoração no Cristianismo. Isso viria como consequência de os crentes terem a “água viva” do Espírito de Deus habitando neles (a “fonte”) como o poder para a nova adoração (João 4:10, 14). A água que sai da fonte tem energia em si mesma e é uma figura do poder do Espírito no crente.
Primeiro, haveria um novo lugar de adoração que não seria nem “neste monte” (Gerizim), nem em “Jerusalém”. Esses eram lugares na terra, mas as passagens em Hebreus 8:1-2; 9:11, 23-24 e 10:19-22 indicam que o novo lugar de adoração no Cristianismo é no santuário celestial na própria presença de Deus. Portanto o centro de adoração do Judaísmo, um centro geográfico terrestre, deixaria de existir.
Em segundo lugar, havia uma nova revelação em conexão com a Pessoa a ser adorada. No Judaísmo Deus era conhecido como Jeová e Deus Todo-Poderoso, sendo adorado como tal, mas agora no Cristianismo Ele seria adorado como “o Pai” de nosso Senhor Jesus Cristo. Este é um relacionamento muito mais íntimo com Deus.
Em terceiro lugar, haveria um novo caráter de adoração. A adoração no Judaísmo era essencialmente terrena e auxiliada por instrumentos musicais físicos, além de ser efetuada por meio de um sistema de rituais e cerimônias. Mas a nova ordem de adoração no Cristianismo seria algo puramente espiritual. Os crentes no Senhor Jesus Cristo iriam adorar o Pai em “espírito” (espiritualmente — João 6:63) e em conformidade com a nova revelação da “verdade” que acompanharia a nova dispensação. No Cristianismo oferecemos “sacrifícios espirituais” auxiliados pela presença do Espírito Santo que em nós habita (1 Pedro 2:5; Filipenses 3:3), em contraste com as “várias abluções e justificações da carne” da ordem judaica (Hebreus 9:10). Isto é feito na própria presença de Deus (Hebreus 10:19) e trata-se de uma bênção que Israel não teve. Considerando que os cristãos devem adorar “em espírito e em verdade”, podemos permanecer sentados em silêncio enquanto de nossas almas e espíritos sai um genuíno louvor a Deus Pai através do Espírito Santo. Esta é a verdadeira adoração celestial.
A adoração judaica da antiga dispensação apela para os sentidos humanos, pois ela é um meio terreno e sensual de se aproximar de Deus. Tal adoração é estimulada pelos sentidos, como vemos nos exemplos a seguir:
Visão — a grandiosidade do Templo (1 Reis 10:4-5; Marcos 13:1; Lucas 21:5).
Olfato — a queima de incenso que produzia uma atmosfera envolvente (Êxodo 30:24-38).
Paladar — os sacrifícios que eram comidos (Deuteronômio 14:26).
Audição — a bela música produzida pela orquestra e com a participação do coral (1 Crônicas 25:1, 3, 6-7).
Tato — a participação das oferendas de maneira física, com danças e o levantar das mãos (2 Samuel 6:13-14; 1 Reis 8:22).
É significativo que não encontramos em lugar algum do livro de Atos ou das epístolas evidências de que os cristãos adorassem o Senhor usando rituais ou instrumentos musicais. Nas Escrituras os únicos dois instrumentos que vemos os cristãos usando na adoração são os seus “corações” (Colossenses 3:16; Efésios 5:19) e seus “lábios” (Hebreus 13:15).
João 5 — A bênção na nova dispensação não seria sobre o princípio das obras para merecer o favor de Deus (como era sob a Lei), mas sobre o princípio da graça e do favor imerecido (Romanos 4:4-5). Isto é ilustrado na diferença entre a maneira como a bênção estava disponível aos que estavam à beira do tanque de “Betesda” e o modo como a bênção chegou até o “enfermo” incapaz, que foi curado pelo Senhor.
A cena à beira do tanque é uma figura do sistema legalista da antiga dispensação (João 5:1-4). O tanque tinha “cinco alpendres” que são uma figura dos cinco livros de Moisés. Em tempos determinados um anjo descia e agitava a água, e o primeiro que atravessasse os cinco pórticos e descesse ao tanque recebia a bênção. A bênção estava ali, porém condicionada a algo que precisava ser feito para obtê-la. Isso ilustra o sistema baseado em obras da Lei, que dizia “faze isso, e viverás” (Lucas 10:28). Uma pessoa naquele sistema legal precisava guardar cerca de 613 exigências dos cinco livros de Moisés e, se conseguisse, receberia a bênção.
Em contraste a isso, com a vinda do Filho de Deus (Seu primeiro advento) as bênçãos gratuitas ficariam disponíveis a todos os que cressem, sem exigências legalistas (Romanos 4:4-5; 11:6; Efésios 2:9; Tito 3:5). Isto é ilustrado no homem impotente sendo abençoado sem ter de vencer os cinco degraus e entrar no tanque (João 5:5-16). Durante muitos e longos anos aquele homem lutou para conseguir receber a bênção do tanque, e não foi capaz. Mas com a vinda do Filho de Deus ele não precisou fazer coisa alguma! Isto aponta para o fato de que na nova dispensação seria colocado um fim à guarda da Lei. “Porque o fim da lei é Cristo para justiça de todo aquele que crê” (Romanos 10:4).
É significativo que este milagre tenha acontecido no dia de sábado, o que os Fariseus consideravam uma violação daquele dia. Ele sugere que a graça não pode ficar presa ao sistema legal e que o sábado já não mais seria observado na Dispensação da Graça. Cristo “até do sábado é Senhor” (Mateus 12:8) e, portanto, maior que o sábado. Ele tinha poder para trabalhar em prol da bênção do homem tanto naquele dia quanto em qualquer outro.
João 6 — João registra um incidente ocorrido junto ao mar de “Tiberíades” (João 6:1, 23). Nos outros Evangelhos este mar é chamado “mar da Galileia” ou “lago de Genesaré”, mas quando os romanos invadiram a terra e a tomaram dos judeus mudaram os nomes de muitos lugares como sinal de sua posse e domínio. Ao chamar o mar de “Tiberíades” João reconhece que Deus havia permitido (ou até mesmo “enviado” — Mateus 22:7) os romanos para atacarem e destruírem a cidade, o templo e o povo, colocando assim Israel de lado. Neste fato aparentemente insignificante temos outra indicação de que a antiga dispensação havia passado.
O assunto deste capítulo é o alimento e satisfação das almas famintas. Aqui vemos o comer da Páscoa (João 6:4), o comer dos cinco pães e dois peixes (João 6:5-14), o comer do Maná (João 6:22-50, e o comer da carne e o beber do sangue de Cristo, o Filho do Homem (João 6:51-58)). O primeiro caso é uma figura que foi cumprida com a morte de Cristo (1 Coríntios 5:7). O segundo é uma figura de uma das muitas bênçãos que o Senhor iria conceder ao mundo no dia milenial — ou seja, abolir a fome (Salmos 132:15; 146:7 etc.). O terceiro (Maná) é um tipo que se cumpriu na vinda do Senhor do céu como o “Pão vivo” (João 6:51). Em todas estas coisas vemos Cristo como o cumprimento das figuras e profecias do Antigo Testamento. Isto nos ensina que quando a velha dispensação terminasse e tivesse início a nova dispensação, as Escrituras do Antigo Testamento não seriam esquecidas; elas são a Palavra de Deus e assim devem ser consideradas. Aprendemos também da maneira como o Espírito de Deus aplica as Escrituras do Antigo Testamento, ao fazer referência a elas no Novo Testamento, mostrando que devem ser entendidas por seu ensino de tipos e princípios morais (Romanos 15:4; 1 C 10:11).
João 7 — A maior de todas as festas religiosas celebradas pelos judeus era a Festa dos Tabernáculos, uma festa que durava oito dias inteiros. Ela era verdadeiramente o ponto alto de todas as festas que a precediam no sétimo mês de seu calendário. O Senhor esperou até o “último dia, o grande dia da festa” — quando os judeus já haviam experimentado sua religião terrestre em sua totalidade — e então clamou: “Se alguém tem sede, venha a mim, e beba” (João 7:37). Ele sabia que eles não ficariam satisfeitos com a mera religião — mesmo que fosse uma religião que tivesse sido dada por Deus — se Ele fosse deixado fora dela. A religião sem Cristo é, no máximo, uma religião vazia e só deixa a alma vazia e sedenta.
O clamor do Senhor nessa ocasião indicava que Ele iria substituir as formas cerimoniais da religião judaica por um relacionamento com Sua própria Pessoa (Colossenses 2:17). Ele é suficiente para preencher e satisfazer o coração humano. Este fato indica que uma mudança dispensacional estava chegando. João acrescenta que isso ocorreria quando Cristo fosse glorificado e o Espírito Santo fosse dado (João 7:39). Estas duas grandes coisas caracterizam o Cristianismo:
• Um Homem na glória
• O Espírito Santo enviado a este mundo.
Estas são verdades cardeais que distinguem a nova ordem celestial na Dispensação do Mistério. Cristo glorificado nas alturas é o centro do novo programa de Deus; não se trata de Cristo na terra como Messias de Israel, como na antiga dispensação. Cristo seria o Foco do crente, e o Espírito Santo habitando nos crentes seria o poder pelo qual as novas alegrias do Cristianismo seriam possuídas e desfrutadas.
João 8 — O tratamento que o Senhor dá à mulher flagrada em adultério ilustra outra característica do Cristianismo (João 8:2-11). Sob a Lei uma pessoa assim deveria morrer “sem misericórdia”, executada por apedrejamento (Hebreus 10:28), mas sob a nova dispensação do Cristianismo havia misericórdia demonstrada na forma de um “tempo” para arrependimento (Apocalipse 2:21). Ao não condenar a mulher naquela ocasião o Senhor não estava indicando que Ele era indiferente ao seu pecado, mas que dava a ela a oportunidade de se arrepender e não pecar mais. Esta é uma característica da presente Dispensação da Graça de Deus. Agora Deus, em Sua misericórdia, é “longânimo” para com todos a fim de que “todos venham a arrepender-se” e sejam assim abençoados mediante a fé no Senhor Jesus Cristo (2 Pedro 3:9; Atos 20:21).
João 9 — Este capítulo ilustra uma progressão de luz que ocorre em todo crente que vem das trevas relativas do Judaísmo para a superioridade da luz do Cristianismo. João registrou esta transição em sua epístola dizendo: “Vão passando as trevas, e já a verdadeira luz ilumina” (1 João 2:8).
O Senhor anunciou que Ele era “a Luz do mundo” (João 9:5), mas as trevas espirituais que prevaleciam sobre o povo eram tais que não podiam ver a Luz. A enfermidade do homem deste capítulo, o qual era “cego de nascença”, ilustra isto. O que o Senhor fez por ele mostra a obra de Deus nas almas que as capacita a enxergar a Cristo pelo que Ele é. Ao ver a Cristo como o Filho de Deus aquele homem já não necessitava do modo judaico de aproximar-se de Deus, e demonstrou isso adorando o Senhor fora do templo, isto é, fora do “arraial” (João 9:38; Hebreus 13:13).
Para que tudo isso ocorresse o Senhor cuspiu na terra e fez “barro”, o que significava a grande verdade de Sua encarnação (João 9:6). A saliva que saiu do próprio Senhor, que é Deus, e foi misturada com “o pó da terra”, que nos fala de humanidade (Gênesis 2:7; 3:19), aponta para o Filho de Deus tornando-se Homem. A aplicação da saliva nos olhos do cego nos fala do poder vivificador de Deus em conceder a vida por meio da qual é ativada a faculdade espiritual para se compreender as coisas divinas (Provérbios 20:16; Atos 26:18; Efésios 4:17-18). O lavar no “tanque de Siloé (que significa o Enviado)” nos fala de um crente que chega ao entendimento de que o Senhor Jesus é o Enviado do Pai (João 9:7). Esta é uma revelação tipicamente cristã.
Após seus olhos terem sido abertos ocorreu no homem que havia nascido cego uma progressão de luz e entendimento — ele passou do mendigar (João 9:8) ao adorar (João 9:38). Sua experiência ilustra o processo pelo qual passam os fiéis do antigo sistema legalista ao chegarem ao conhecimento e à liberdade devida ao cristão. Inicialmente tudo o que ele sabia do Senhor era que Ele era “o homem chamado Jesus”, mas ele não sabia quem era aquele Homem ou de onde Ele tinha vindo (João 9:11). Depois, ao ser questionado, ele respondeu: “[Ele] é Profeta” (João 9:17). Em seguida o homem viu o Senhor como Alguém digno de ter “discípulos” (João 9:27-28) e mais tarde disse aos judeus que o Senhor Jesus era um Homem “de Deus” (João 9:33). Finalmente ele viu o Senhor como o “Filho de Deus”, o que ele realmente era (João 9:35-38). Assim vemos na experiência deste homem uma maravilhosa transição das trevas para a luz. Nesse processo o homem sofreu perseguição dos judeus. Isto demonstra que aqueles que caminham na luz da nova dispensação serão perseguidos pelos que andam de acordo com a ordem da velha dispensação (Atos 13:50; 14:19; 17:5; 1 Tessalonicenses 2:14-16; Apocalipse 3:9).
João 10 — Este capítulo enfatiza outro aspecto da transição do Judaísmo para o Cristianismo e enfoca o novo princípio sobre o qual Deus iria reunir o Seu povo.
O Senhor anunciou que iria tirar Suas ovelhas (os crentes judeus) para fora do “curral” judaico e trazê-las para a gloriosa liberdade de Seu “rebanho” no Cristianismo (João 10:16). O curral e o rebanho representam dois princípios de reunião completamente distintos. Ambos mantêm as ovelhas reunidas, mas de maneiras totalmente diferentes. Um curral ou aprisco é uma circunferência sem um centro, enquanto um rebanho é um centro sem uma circunferência. Em um curral as ovelhas são mantidas juntas pela cerca que as circunda, o que nos fala dos princípios restritivos do sistema legalista da antiga dispensação, que mantinha os israelitas juntos em uma posição de separação das nações que os cercavam. Em um rebanho não há necessidade de uma cerca, pois o Pastor no meio das ovelhas exerce atração sobre elas, que por sua vez são atraídas por Ele. Portanto as ovelhas são mantidas juntas, mas sobre um princípio completamente diferente. Isso revela o princípio de reunião no Cristianismo (Mateus 18:20). Os cristãos nesta nova ordem de coisas se reúnem para adoração e ministério, não por serem forçados a isso, mas por desejarem estar onde Cristo está no meio.
Uma vez que os judeus naturalmente iriam se sentir ofendidos caso alguém entrasse em seu curral e levasse algumas ovelhas para fora, o Senhor declarou que quem fizesse isso precisaria ter a qualificação necessária. Ele reconheceu que alguns impostores (“ladrões e salteadores”) poderiam aparecer sem que tivessem as qualificações ordenadas por Deus, mas Suas ovelhas não os seguiriam, “porque não conhecem a voz dos estranhos” (João 10:1, 5). Exemplos disso foram “Teudas” e “Judas” (Atos 5:36-37).
Todavia, o Senhor veio do modo designado por Deus, o que ele chama de “porta” (João 10:2). A porta que dá entrada ao curral, pela qual o Messias deve entrar, é caracterizada pelos profetas do Antigo Testamento.
• O tempo de Sua vinda (Daniel 9:26 e Salmos 102:24).
• O lugar de Sua entrada no mundo (Miquéias 5:2).
• Seu nascimento virginal (Isaías 7:14).
• O anúncio de Sua vinda (Isaías 40:3; Malaquias 3:1).
• Seu modo de vida (Isaías 53:3).
• O caráter do Seu ministério (Isaías 42:1-3).
• Sua capacidade de demonstrar “os poderes do mundo vindouro” (Hebreus 6:5; Lucas 7:22; Isaías 33:24; 35:5-6; Salmos 65:6-7; 89-9; 132:15; 146:7-8).
• Sua apresentação à nação (Zacarias 9:9).
O Senhor entrou no curral do Judaísmo (o sistema judaico instituído por Deus por intermédio de Moisés) exatamente em conformidade com estas especificações. Não havia como não perceber que Ele era o Messias de Israel — “o Pastor das ovelhas” (Salmos 23:1; 77:15; 78:67; 80:1; 95:7; 100:3; Isaías 40:11; Ezequiel 34:31; Zacarias 11:7-9; 13:7). O Espírito de Deus (“o Porteiro”) Se identificou totalmente com o Senhor, descendo do céu sobre Ele na forma de uma pomba (João 1:32-34; 6:27; 1 Timóteo 3:16) e habitando nEle. Assim o Espírito deu testemunho de que o Senhor Jesus era realmente o verdadeiro Pastor de Israel, pois “a Este o porteiro abre” (João 10:3). Portanto, o Senhor, sendo Quem ele era, tinha o direito de introduzir esta mudança dispensacional.
O trabalho do Senhor no curral, que acabou sendo rejeitado (João 1:11), era o de atrair o coração das ovelhas a Si, chamando-as “pelo nome” (o que nos fala de intimidade) e guiando-as para fora dali (João 10:3). Ao guiar aqueles que eram Seus para fora o Senhor indicava que estava prestes a abandonar toda aquela ordem de culto religioso e levar Suas ovelhas Consigo. Hebreus 13:13 nos diz que Sua atual posição no Cristianismo é “fora do arraial” do Judaísmo — para onde os crentes são também exortados a saírem. O Senhor mencionou que iria usar outros meios de tirar os Seus do curral do Judaísmo — Ele “tira para fora as suas ovelhas” (João 10:4). Isso mostra pressão; elas são empurradas para fora. O cego do capítulo anterior teve essa experiência. Ele foi “expulso” do curral; os líderes da nação “expulsaram-no” (João 9:34). De uma maneira ou de outra o Senhor estava trabalhando com Suas ovelhas e elas estavam sendo tiradas do curral do Judaísmo para as coisas melhores do Cristianismo.
Aqueles que escutaram esta alegoria não entenderam seu significado (João 10:6). A razão é que eles continuavam no curral judaico e existe certo torpor que é consequência de estar naquele sistema (Hebreus 5:11). Isso levou o Senhor a falar de uma segunda “porta”. Ele disse: “Em verdade, em verdade vos digo que eu sou a porta das ovelhas” (João 10:7). Ele era a porta de libertação pela qual uma pessoa era trazida para fora do curral do Judaísmo. Ao fazer tal declaração Ele dava a cada judeu crente a garantia de ser tirado do Judaísmo. Antes disso nenhum judeu tinha permissão para abandonar aquela religião ordenada por Deus, mas agora o próprio Deus, na Pessoa do Filho, estava abrindo a porta e garantindo que fossem libertos daquele sistema.
O Senhor falou então de uma terceira “porta”. Trata-se da porta de entrada na bênção e privilégio cristãos. A entrada a essas coisas também seria por meio dEle. Ele disse: “Eu sou a porta; se alguém entrar por mim, salvar-se-á, e entrará, e sairá, e achará pastagens” (João 10:9). Estas bênçãos e privilégios característicos do Cristianismo são:
• A salvação da alma (João 10:9a).
• A liberdade para a adoração e o serviço — “entrará e sairá” (João 10:9b).
• O alimento espiritual na revelação cristã da verdade — “pastagens” (João 10:9c).
• O desfrutar de “vida... com abundância” — a vida eterna (João 10:10).
• A proteção e cuidado do Pastor (João 10:10-15).
• A união de judeus e gentios em “um rebanho” (João 10:16).
• A segurança eterna — “nunca hão de perecer” (João 10:28-29).
Versículos 10-15 — Uma vez libertadas dos limites do Judaísmo, as ovelhas ficariam sem a proteção do curral, mas isto não significa que Suas ovelhas ficariam sem proteção. O Senhor prometeu que Suas ovelhas, que Ele guiou para fora do curral, seriam cuidadas e protegidas. Como “Bom Pastor” Ele as colocaria sob o Seu divino cuidado. Seu amor e devoção pelo rebanho eram tais que Ele daria Sua vida pelas ovelhas. O Senhor então menciona os pastores mercenários e falsos profetas que atribulam o rebanho. Esses maus obreiros surgiriam no Cristianismo professo se alimentariam dos cristãos e iriam desviá-los. Um “mercenário” é um pastor relapso que irá abandonar o rebanho quando vier o perigo, e um “lobo” (Mateus 7:15) é o que irá dividir e espalhar as ovelhas para atender seus interesses pessoais (Atos 20:29-30). Basta olharmos para a cristandade hoje para vermos isto acontecendo. Muitos líderes estão agindo como “mercenários” e transformando o culto a Deus em negócio (“mercadejando a palavra de Deus” 2 Coríntios 1:17 — RAA). Existem também os “falsos doutores” com caráter de “lobos” (2 Pedro 2:1). O Senhor não oculta o fato de que as Suas ovelhas seriam provadas por tais pessoas na esfera cristã, mas no verdadeiro Cristianismo, onde Cristo está no meio do Seu rebanho, Ele iria protegê-las de todos esses assaltos.
Versículo 16 — O Senhor possuía “outras ovelhas” que Ele iria reunir. Não há qualquer menção de que estas seriam tiradas para fora do curral, portanto isso indica que Ele estaria falando de crentes gentios. Estes, juntamente com Suas ovelhas tiradas do curral, formariam “um rebanho” de crentes judeus e gentios.
Portanto, as três portas nesta passagem indicam uma mudança dispensacional:
• A porta da profecia concernente ao Messias, por meio da qual Cristo entrou no curral judaico (João 10:2).
• A porta da libertação para fora do Judaísmo, através da qual Cristo levou os Seus para fora do curral (João 10:7).
• A porta de entrada nas bênçãos e privilégios do Cristianismo através da qual as ovelhas de Cristo podem viver e servir a Deus (João 10:9).
João 11 - 12 — Encontramos nestes capítulos o registro de Lázaro sendo ressuscitado de entre os mortos e depois sentado em um círculo de comunhão com outros da mesma fé e que tinham seu foco no Senhor. Lázaro saiu da esfera da morte para uma esfera de “verdadeira vida” (1 Timóteo 6:19 ARA). Isto ilustra outro aspecto da transição do Judaísmo para o Cristianismo.
A condição de morte na qual Lázaro estava é uma figura da condição da nação de Israel sob a Lei, moral e espiritualmente falando. Todo o sistema da Lei é um “ministério da morte” e um “ministério da condenação” (2 Coríntios 3:7, 9). Todos os que estivessem sob a Lei e não atendessem os seus termos estavam condenados e, em certo sentido, mortos por ela. Esta é exatamente a posição de Israel; toda a nação se encontrava em uma condição de morte diante de Deus. A ressurreição de Lázaro é uma figura da obra do Senhor tirando um remanescente de crentes para fora daquele sistema legalista. Maria e Marta representam as duas partes do remanescente crente que havia naquela época. Maria aguardava em expectativa pela vinda do Senhor (João 11:20). Ela representa, entre outros, os “Simeões” e as “Anas” que aguardavam por fé a “redenção de Jerusalém” (Lucas 2:25-38). Marta, por sua vez, expressava a fraqueza da fé que também havia entre muitos crentes judeus de sua época. Ela reconhecia o poder do Senhor, mas questionava sua pontualidade e até O culpava por chegar tarde (João 11:21). Naquela época muitos crentes estavam assim, cheios de dúvidas (Mateus 28:17; Lucas 24:13-33; João 20:24-31).
Ao ser recebido, o evangelho não somente concede “vida eterna” para a alma do crente, mas também o coloca em uma esfera de vida na companhia dos santos. Este último aspecto da vida está ilustrado na ceia em que Lázaro é visto depois de ter sido ressuscitado de entre os mortos pelo Senhor (João 12:1-3). Ele desfrutava de feliz comunhão na ceia com Maria, Marta e os discípulos, tendo o Senhor no meio deles. Lázaro não apenas recebeu vida em sua alma, mas foi também introduzido em uma esfera de vida entre crentes, o que é uma figura da comunhão cristã à Mesa do Senhor (1 Coríntios 10:16-17).
Todavia, Lázaro não saiu diretamente da sepultura para a ceia em Betânia. Quando ele saiu da sepultura ele estava com “as mãos e os pés ligados com faixas, e o seu rosto envolto num lenço” e precisava ser solto. Isto nos fala das amarras dos princípios legalistas do Judaísmo que restringem o crente (Atos 15:10; Gálatas 4:24-25). As pessoas que eram salvas e tiradas daquele sistema geralmente ficavam limitadas pelos princípios legais que tinham formado suas consciências. Elas costumavam carregar para o círculo da comunhão cristã suas mortalhas, que eram os princípios e práticas legalistas do Judaísmo (Atos 10:9-16; Romanos 14:1-6; Gálatas 2:11-14). O Senhor ordenou: “Desatai-o e deixai-o ir” (João 11:44). Isto nos fala da obra que o Senhor deu para os Seus servos fazerem (particularmente os apóstolos) nos primeiros dias do Cristianismo. O ministério deles para com aqueles no Judaísmo que eram salvos por meio da pregação do evangelho tinha o objetivo de libertá-los das amarras daquela religião terrena. As epístolas judaico-cristãs (hb, Tiago e Primeira e Segunda Pedro) são um exemplo desse ministério. Aqueles escritores do Novo Testamento trabalharam para libertar os crentes judeus das mortalhas do Judaísmo e estabelecê-los na liberdade cristã.
Em meio aos eventos relacionados a Lázaro sendo ressuscitado, vemos que Caifás, o sumo sacerdote daquele ano, sem perceber “profetizou que Jesus devia morrer pela nação” (João 11:47-54). Ele sugeriu ao conselho que deviam matar o Senhor Jesus, um Homem justo, a fim de preservar, se possível, a posição daquela nação na terra sob o domínio dos romanos. Parafraseando o que disse, “Se este movimento (de pessoas seguindo o Senhor Jesus) continuar haverá uma revolução na terra e os romanos virão e nos matarão a todos”. Ele sugeria que deveriam matar a Cristo, dispersar Seus seguidores e por um ponto final àquele movimento, salvando assim a nação de ser destruída. Ele raciocinava ser melhor “que um homem morra pelo povo, e que não pereça toda a nação”. Assim, Caifás não tinha qualquer escrúpulo em matar um Homem inocente se fosse para preservar o lugar da nação na terra. Mas Deus interferiu naquilo que disse e ele acabou profetizando contra sua própria vontade o que exatamente iria acontecer na morte de Cristo. O Senhor não apenas morreria pela nação, mas iria também “reunir em um corpo os filhos de Deus que andavam dispersos” (João 11:49-53). Isto aponta para a atual obra de Deus por meio do Espírito nesta dispensação cristã trazendo crentes gentios para o rebanho de Deus juntamente com crentes judeus (João 10:16).
Depois de liberto, Lázaro é visto em comunhão com suas irmãs e os apóstolos durante a ceia em Betânia (João 12:1-3). Trata-se de uma cena que representa a comunhão e adoração cristãs. Vemos Maria no exercício da liberdade que caracteriza a adoração cristã. Ela não tinha autoridade oficial para agir como sacerdote (como era exigido na religião judaica), todavia aproxima-se livremente do Senhor com seu “arrátel de unguento de nardo puro, de muito preço” — o que nos fala de adoração. Ela foi criticada por ter derramado o unguento sobre o Senhor. É triste ter de reconhecer que aqueles que, a exemplo de Maria, agirem na liberdade do Espírito na adoração cristã, serão criticados por aqueles cuja mentalidade foi formada pela ordem judaica (João 12:4-8). Além disso, os principais sacerdotes decidiram matar Lázaro, depois de este ter sido ressuscitado de entre os mortos (João 12:10). Isto demonstra que haverá perseguição contra aqueles que foram libertos das cadeias do Judaísmo e caminham na liberdade do Cristianismo.
João 13 — Havia chegado a hora de o Senhor voltar para o Pai. Antes de partir Ele indicou (simbolicamente) que iria deixar Seu ministério dirigido a Israel, o qual era messiânico e terrestre, para Se ocupar de um novo ministério celestial (Sua advocacia), por meio do qual manteria os Seus em comunhão com Deus durante a Sua ausência (1 João 2:1-2). Esse novo ministério que o Senhor estava prestes a assumir representa outra transição da antiga para a nova dispensação.
Primeiro o Senhor “levantou-se da ceia” onde estavam comendo juntos, e tirou Suas vestes colocando-as de lado (João 13:4a). Levantar-se na ceia daquela maneira foi uma ação simbólica indicando que Ele estava prestes a romper Suas associações exteriores com eles no reino como o Messias de Israel.
Em seguida Ele “tomando uma toalha, cingiu-se” (João 13:4b). Isso indicava que no novo lugar, aonde o Senhor se dirigiria nas alturas, Ele assumiria a posição de um Servo e trabalharia para manter o Seu povo em comunhão Consigo.
Finalmente Ele “deitou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos discípulos” (João 13:5). Isso nos fala do uso da “água da Palavra” em sua aplicação no andar do crente. A remoção da sujeira de nossos pés mostra o trabalho do Senhor como nosso Advogado diante do Pai, ao nos exercitar no juízo próprio tendo em vista a santidade de Deus (1 João 1:9) e por meio do que somos capacitados a caminhar em comunhão com Ele (João 14:21, 23).