Estudo Sobre a Palavra de Deus – MATEUS - John Nelson Darby
Tradutor Martins do Vale
Editor Josué da Silva Matos 2019
INTRODUÇÃO AOS LIVROS DO NOVO TESTAMENTO
É com um certo receio que abordo a parte dos Estudos que se refere ao Novo Testamento, seja qual for a bênção que daí possa advir. A concentração e ao mesmo tempo o desenvolvimento da luz divina neste precioso dom de Deus; o imenso alcance das verdades que ele contém; a variedade infinita dos aspectos e das aplicações verdadeiras de uma só e mesma passagem, com todo o círculo das verdades divinas; de igual modo a importância imensa dessas verdades consideradas quer em si mesmas quer a respeito da glória de Deus, quer ainda em relação com as necessidades do homem; enfim, a maneira como elas revelam Deus e respondem a essas necessidades...; todas essas considerações, que eu não sei exprimir senão muito imperfeitamente, concorrem, no seu conjunto, para fazerem recuar lima pessoa humilde perante a pretensão de dar uma ideia verdadeira e (mesmo em princípio) adequada à intenção do Espírito Santo nos livros do Novo Testamento.
E quanto mais a própria verdade é revelada, mais a verdadeira luz resplandece; quanto mais o homem sente a sua incapacidade de dela falar, mais medo ele tem de obscurecer o que é perfeito... De igual modo, quanto mais pura é a verdade de que nos ocupamos (e aqui trata-se mesmo da Verdade!), mais difícil se nos torna o ocuparmonos dela para a expormos aos outros, sem de algum modo lhe alterarmos a pureza — porque essa alteração tornar-se-ia muito mais funesta. Meditando era tal ou tal passagem, poderemos, para proveito de outros, comunicar a medida da luz que nos é concedida; mas se alguém se propõe dar uma ideia do conjunto do Novo Testamento, toda a perfeição da própria Verdade e a universalidade da intenção de Deus na revelação que dela nos fez se apresentam ao seu espírito — e treme-se ao pensar o que sucederá se tentarmos dar dessa intenção uma ideia verdadeira e geral, e ela não for completa, o que, certamente, nenhum Cristão pretenderá fazer.
A interpretação do Antigo Testamento pode parecer a algumas pessoas mais difícil do que a do Novo Testamento, e pode acontecer que isso seja verdade em passagens isoladas; mas, embora os escritores do Antigo Testamento revelem os pensamentos de Deus, que Ele lhes tinha comunicado (e podemos admirar a sabedoria que se manifesta nessa parte das Escrituras), o próprio Deus fica sempre oculto atrás do véu. Podemos desconhecer o sentido de uma expressão, ou não o notar; perdemos algo, sem dúvida, porque foi Deus quem falou. Mas no Movo Testamento encontramos o próprio Deus, benigno, indulgente, humano.
Nos Evangelhos temos Deus sobre a Terra; Deus iluminando com luz divina as subsequentes comunicações do Espírito Santo. É o próprio Deus que Se manifesta. Porém, se nos dá deste modo, no Novo Testamento, mais luz para nos guiar e para O conhecermos a Ele próprio, é também muito mais grave interpretar mal essas comunicações vivas, ou disfarçar, com os nossos próprios pensamentos, o que é a Verdade. Porque é necessário recordarmo-nos de que Cristo é a Verdade. Ele é o Verbo; é Deus que nos fala, na Pessoa do Seu Filho, que, sendo um verdadeiro homem, manifesta também o Pai.
Pelo que respeita à própria exegese, a verdade, a luz, a vida eterna, encontram-se no que é revelado no Novo Testamento; e podemos considerar este sob tantos aspectos que a dificuldade prática se torna muito maior. Podemos, com efeito, considerar esta Verdade no seu valor intrínseco e essencial; podemos considerá-la como a manifestação da eterna natureza de Deus; podemos considerá-la na sua manifestação em vista da glória do Filho; podemos examinar também as suas relações e os seus contrastes com as comunicações parciais do Antigo Testamento, que ela completa e eclipsa pelo seu próprio brilho, com a dispensação do governo terrestre de Deus, o qual ela põe de lado, para introduzir o que é eterno e celeste. Enfim, podemos considerar esta verdade nas suas relações com o homem, porque «a vida era a luz dos homens», tendo Deus querido manifestar-Se e glorificar-Se no homem, fazer-Se conhecer por ele e estabelecê-lo como meio de ele próprio se revelar às suas outras criaturas inteligentes. Em cada passagem do Novo Testamento haveria também algo a dizer sobre todos esses diferentes aspectos, porque a Verdade é Uma, tal como está em Deus. Mas brilha sobre todas as coisas, mostrando delas o seu verdadeiro caráter.
Apesar de todas estas dificuldades, duas coisas, no entanto, me tranquilizam: Temos de nos haver com um Deus de bondade perfeita, que nos deu essas maravilhosas comunicações, para que delas aproveitemos; em segundo lugar, embora a fonte da Verdade seja infinita e perfeita, embora essas revelações decorram da plenitude da Verdade de Deus, e que a sua comunicação seja perfeita, conforme a perfeição de Aquele que no-la deu, esta comunicação é feita por meio de diversos instrumentos, em si mesmos de capacidade limitada, empregados por Deus para dela comunicarem esta ou aquela porção.
Todavia, esta água viva e pura não foi, de modo algum, alterada; mas, em cada comunicação, tem sido limitada pela intenção de Deus no instrumento empregado por Ele para a distribuir, estando inteiramente em relação com o conjunto, segundo a perfeita sabedoria de Quem comunicou toda a verdade. O canal não é infinito; a água que nele corre é infinita, mas não o é na sua comunicação. Eles profetizaram em parte, e nós conhecemos também em parte.
O aspecto e a aplicação da verdade tem mesmo um caráter particular, segundo o vaso por onde Deus a comunicou.
A água viva está ali, na sua perfeita pureza; jorra da fonte tal como se encontra lá. A fonte, através da qual ela é produzida diante dos homens, tem a forma da sabedoria de Quem a fez para ser Seu instrumento, para tal efeito. O Espírito Santo atua no homem, vaso expressamente preparado para esse fim, vaso que Deus tinha criado, formado, aperfeiçoado, adaptado moral e intelectualmente para este ou aquele serviço acerca da Verdade; e Deus atua nesse vaso segundo o fim para que o tinha preparado.
Cristo era — e Ê a Verdade. Os outros têm-na comunicado, cada um segundo o que lhe foi dado; o esta comunicação tem sido em relação com os elementos com os quais Deus os tinha posto respectivamente em relação pela inteligência e pelo coração, c segundo o fim para o qual o Espírito Santo os tinha preparado.
Deixando, pois, os meus receios, lanço-me confiante ao cumprimento deste serviço, de coração apoiado na perfeita bondade de Deus, que gosta de nos abençoar. Possa o justo sentimento da minha responsabilidade guardar-me de avançar em algo que não seja segundo Deus; e que o próprio Senhor, na Sua graça, Se digne dirigir-me e conceder-me tudo aquilo que possa constituir uma bênção para o leitor.
O Novo Testamento tem um caráter evidentemente muito diferente do Antigo, e o que atrás disse a tal respeito forma o essencial dessa diferença. O Novo Testamento trata da revelação do próprio Deus e manifesta o Homem levado, cm Justiça, à glória e à presença de Deus.
Anteriormente, Deus tinha feito promessas e tinha executado julgamentos.
Tinha governado um povo sobre a Terra; tinha atuado no que concerne às nações, tendo em vista esse povo como centro dos Seus planos para a Terra. Tinha-lhe dado a Sua lei, tinha-lhe concedido, por intermédio dos profetas, uma luz crescente, anunciando como sempre mais próxima a chegada d'Aquele que deveria dizer-lhe tudo da parte de Deus. Mas a presença do próprio Deus, Homem no meio dos homens, tudo mudou: Ou o homem receberia, como coroa de bênção e de glória, Aquele cuja presença devia banir todo o mal, desenvolver c conduzir à perfeição todo o elemento de bem, dando ao mesmo tempo um objeto que seria o centro de todos os afetos tornados perfeitamente felizes pelo gozo desse objeto; ou então, rejeitando esse Cristo, a nossa pobre natureza devia mostrar-se o que na realidade é inimizade contra Deus, e tornada evidente a necessidade de uma ordem de coisas completamente nova, onde a felicidade do homem e a glória de Deus seriam fundadas sobre uma nova Criação.
Sabemos o que aconteceu: Aquele que era a imagem do Deus invisível teve de dizer, após o exercício de uma longa e perfeita paciência: «Pai justo, o mundo não te conheceu», e mais ainda, infelizmente: «Eles têm odiado, tanto a mim como a meu Pai» (João 17:25; 15:24).
Todavia, esse estado do homem não tem, de modo nenhum, impedido Deus de realizar os Seus pianos; pelo contrário, esse miserável estado proporcionou-Lhe a ocasião de o fazer. Deus não quis rejeitar o homem até ao momento em que o homem O tivesse rejeitado a Ele — (tal como no jardim do Éden, o homem, consciente do seu pecado, não podendo suportar a presença de Deus, escondeu-se ou afastou-se d'Ele, antes de Ele o ter expulso do jardim). Mas quando o homem, por seu lado, repeliu inteiramente a Deus, a Deus que, em bondade, viera ao meio da sua miséria espiritual e moral, Deus ficou livre — permitisse-nos a expressão, porque ela é moralmente certa — Deus ficou livre para prosseguir os Seus eternos desígnios.
No entanto Deus não executa o julgamento, como no Éden, quando o homem se afastara d'Ele; agora é a graça soberana que, quando o homem está manifestamente perdido e se declarou inimigo de Deus, prossegue a Sua obra para fazer resplandecer a Sua glória aos olhos do universo na salvação dos pobres pecadores que O tinham rejeitado(1).
(1) Ver Tt1:2; 2 Timóteo 1:9-10; comparar Provérbios 8:22-31, sobretudo 30 e 31; Romanos 16:25-26 (ler: escritos proféticos). Sob a lei, Deus não saía nunca do santuário, e o homem não podia entrar ali. No Cristianismo, Deus saiu — e o homem entrou! Isto pertence à essência de cada uma dessas duas dispensações. Anteriormente havia promessas. São relações características.
Mas, para que a perfeita sabedoria de Deus se manifestasse mesmo nos mais ínfimos detalhes, essa obra de graça soberana, na qual o próprio Deus Se revelava, deve ser vista como tendo uma justa relação com todos os planos de Deus anteriormente revelados no Antigo Testamento, deixando também todo o Seu lugar ao Seu governo do mundo.
Tudo isso demonstra que, fora da grande ideia que tudo domina, há neste maravilhoso Livro quatro assuntas que se desenrolam aos olhos da fé. Em primeiro lugar o grande tema, o fato por excelência, é que a perfeita luz é manifestada: É o próprio Deus que Se revela. Mas esta luz é manifestada em amor—outro nome essencial de Deus. Cristo, que é a manifestação dessa luz e desse amor, que, se tivesse sido recebido, teria constituído o cumprimento de todas as promessas, Cristo é apresentado ao homem e em particular a Israel considerado sob o ponto de vista da sua responsabilidade; Cristo é apresentado a Israel com todas as provas pessoais, morais e de poder que deixaram esse povo sem desculpa. Em segundo lugar, sendo rejeitado, a Sua rejeição torna-se o meio pelo qual a salvação se concretiza; e a nova ordem de coisas — a nova Criação, o Homem glorificado, a Igreja participando com Cristo da glória celeste é colocada sob os nossos olhos.
Em seguida são manifestadas as relações entre a antiga ordem de coisas e a nova ordem sobre a Terra acerca da lei, das promessas, das profecias ou das instituições divinas; são-no, quer apresentando a nova ordem como seu cumprimento e posto de lado o que era velho, quer verificando o contraste que existe entre a antiga e a nova ordem, quer ainda demonstrando a perfeita sabedoria de Deus em todos os pormenores dos Seus caminhos. Finalmente o governo do mundo por Deus é profeticamente posto em evidência; e a renovação das relações de Deus com Israel, em julgamento ou em bênção, é rápida, mas claramente verificada, por ocasião da suspensão dessas relações devido à rejeição do Messias.
Podemos acrescentar que tudo o que é necessário ao homem, peregrino sobre a Terra até que Deus cumpra os desígnios da Sua graça em poder, lhe é abundantemente fornecido. Saído, pela chamada de Deus, do que é rejeitado ou condenado, e não estando ainda de posse da porção que Deus lhe tem preparado, o homem, que obedeceu a essa chamada, tem necessidade de uma direção e do que lhe revela a origem da força necessária para marchar para o alvo da sua vocação e os meios para se apropriar dessa força. Deus, chamando-o para seguir o seu Mestre, que o mundo rejeitou, não o deixou sem lhe proporcionar toda a luz e todas as direções próprias para o iluminarem e encorajarem no seu caminho, nem sem lhe indicar as fontes da força e o meio de dela se prover. Todo o estudioso das Sagradas Escrituras sabe bem que estes assuntos não são tratados metodicamente, nem cada um em separado, no Novo Testamento. Se assim fosse, a sua compreensão tornar-se-ia muito mais difícil. É em vida e em poder, quer de Cristo, quer do Espírito Santo, nos autores inspirados, que eles se desenrolam perante os nossos corações.
Os Evangelhos, de um modo geral, apresentam-nos Cristo como sendo luz e graça; não, porém; sob a forma de doutrina, mas sim como sendo o próprio Deus apresentado aos homens neste mundo, como sendo Aquele em quem se cumpriam as promessas feitas a Israel; abertamente, como sendo uma Pessoa divina, na qual os desígnios do Pai se cumpririam, sendo os Judeus considerados como reprovados no seu estado espiritual de então. O Apocalipse mostra, a introdução do governo de Deus neste mundo em relação com a responsabilidade sob a qual as suas relações com um Deus revelado o colocaram. Os escritos de Paulo apresentam enfim a aceitação do homem por Deus e o seu lugar diante d'Ele pela redenção, a nova Criação e a Igreja segundo os planos de Deus — o mistério de Deus. Todavia, por toda a parte, nas Epístolas, se encontram diversos assuntos em relação com estes, e cada desenvolvimento isolado de um desses temas faz jorrar abundante luz sobre todos os outros. A isto podemos acrescentar que os escritos de João tratam particularmente da manifestação de Deus e da vida divina em Cristo e no Homem vivificado, correspondendo, como devem, um ao outro; os escritos de Pedro tratam da peregrinação do Cristão, fundada na ressurreição de Cristo, e do governo moral do mundo. Mas, repito, quer na Pessoa de Cristo, quer nas comunicações do Espírito Santo (sendo a vida de Cristo, de uma maneira ou de outra, a luz dos homens), a verdade é posta em evidencia pela manifestação viva de Deus e pela sua aplicação viva aos homens, estando também em relação com o desenvolvimento (1) progressivo inerente à verdade, quando for comunicada ao homem e adaptada às necessidades particulares e à capacidade espiritual daqueles a quem era dirigida.
(1) Falo aqui, bem entendido, da verdade revelada no Novo Testamento, A comunicação feita nesta revelação tem sido de cada vez mais clara, tendo o Espírito Santo sido dado depois de o Senhor ter sido glorificado. O apóstolo pôde dizer. Talando da natureza do próprio Deus; «O que é verdadeiro nele (Cristo) e em vós, porque as trevas se desvanecem e a verdadeira luz já brilha».
É um Cristo que é a sabedoria de Deus. Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade. Toda a plenitude se agradou de habitar n'Ele. Santificou-Se a Si mesmo, para que nós sejamos santificados pela verdade. O Espírito Santo conduziu os apóstolos em toda a verdade, tendo recebido do que era de Cristo e tendo-lhe comunicado. Ora, tudo o que o Pai tem ó de Cristo; foi por isso que Ele disse que o Espírito Santo tomaria, do que era d'Ele e lhe anunciaria.
Era assim, e a questão de um desenvolvimento subsequente já está julgada.
Haverá algo mais do que «a plenitude da divindade?», ou do que «tudo O que o Pai tem?», algo de mais claro do que a «verdadeira luz?». Ora, é isto o que nos é revelado. Se pensarmos no homem, cujas ideias provem dele mesmo, como a aranha tira o seu fio da sua própria substância, poderemos, sem dúvida, falar de desenvolvimento; ruas se se tratar da revelação de Cristo, pelo dom da luz que já veio, Cristo não cresce! E, certamente, não encontraremos nada de bom fora de «tudo o que o Pai Lhe deu». Eis, pois, o que nós possuímos, por revelação: O desenvolvimento inerente à comunicação da verdade ao homem concernente à sua capacidade de recepção (nisso há progresso para cada um de nós) e à manifestação de Cristo, desde João Batista até à Sua plena revelação pelo Espírito Santo, revelação que nos é feita no Novo Testamento.
Nenhuma tradição pode acrescentar o que quer que seja à revelação do que Cristo é. Nenhum desenvolvimento nos pode dar uma única verdade nova acerca da plenitude de Cristo. E é assim que as orgulhosas pretensões do homem são aniquiladas.
Sem dúvida, as comunicações do Novo Testamento são para os santos de todos os tempos e em todos os lugares, mas foram dirigidas, historicamente falando, a homens vivos e postos em relação com o seu estado espiritual. Esta circunstância de modo nenhum enfraquece a verdade que é comunicada, e que c de Deus. É isto o que o apóstolo Paulo exprime, ao dizer: «Nós não somos, como muitos, falsificadores da Palavra de Deus; antes, falamos de Cristo com sinceridade, como de Deus, na presença de Deus» (2 Coríntios 2:17); e ainda: «Não falsificando a Palavra de Deus; e, assim, nos recomendamos à consciência de todo o homem, na presença do «Deus, pela manifestação da verdade» (2 Coríntios 4:2). Paulo nada acrescenta a este vinho puro, não o falsifica. O que lhe foi dado sai dele puro, tal como o recebeu (1).
(1) O relato de 1 Coríntios 2 é muito impressionante a este respeito, e é da maior importância para os nossos dias. As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que O amam». (É o estado que se encontra o Antigo Testamento). «Mas Deus no-las revelou pelo Seu Espírito» — é a revelação. «Coisas... das quais também falamos, não com palavras de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo ensina» — é a comunicação a inspiração. Em terceiro lugar: «Elas se discernem espiritualmente» — recepção. A revelação, o testemunhe? inspirado e a sua aceitação só pela graça e. pelo poder do Espírito, tudo c claramente relatado.
Mas, dirigida aos homens, a Palavra de Deus tem mesmo muito mais realidade do que unia simples verdade abstrata; é mais imediatamente de Deus. Não são ideias do homem a respeito de Deus, nem raciocínios do espírito do homem, ainda que a verdade fosse o seu tema; nem sequer é a verdade, tal como está em Deus, submetida, de um modo abstrato, à capacidade do homem, para que ele a julgue. É Deus, o próprio Deus que se dirige ao homem, que lhe fala, lhe comunica os Seus pensamentos, como sendo mesmo Seus. Porque, se o homem deve julgá-los, não são as palavras de Deus como tais anunciadas. «Vós a recebestes— diz Paulo — não como palavra de homens, mas (conforme é, na verdade) como Palavra de Deus» (1 Tessalonicenses 2:13).
Tem-se confundido muitas vezes o eleito produzido no homem, o efeito que lhe faz reconhecer a verdade e a autoridade da Palavra, com um julgamento trazido pelo homem sobre esta Palavra, como sobre uma matéria que lhe fosse submissa. A Palavra de Deus não pode nunca ser assim apresentada. Seria negar a sua própria natureza; seria o mesmo que dizer: «Não é Deus quem fala». E Deus poderia negarSe a Si próprio, dizendo que Ele não é Deus? "É evidente que não. E se não pode negar-Se a Si próprio, também não pode falar e admitir depois que a Sua Palavra não tem autoridade própria.
A Palavra de Deus é adaptada à natureza do homem: «Á vida é a luz dos homens». É justamente das coisas que produzem um efeito segundo a natureza de um objeto ao qual elas são aplicadas, sem que sejam julgadas por esse objeto. É o que se dá em toda a reação química; administram-me um remédio; sinto o seu efeito segundo a minha natureza. Desse modo fico convencido quer do efeito quer do poder do remédio, sem que tenha de emitir parecer sobre o próprio remédio, como se, para tanto, eu estivesse habilitado. Dá-se precisamente o mesmo, por graça, sobre a revelação de Cristo, exceto nisto: a maldade voluntária do homem repele essa revelação e rejeitaa, de sorte que ela se toma um odor de morte para morte.
A Palavra de Deus nunca é julgada; quando ela produz o seu efeito, julga os pensamentos e as intenções do coração (Hebreus 4:12). O homem está-lhe submetido; não a julga.
Quando o homem tem, por graça, recebido a Palavra de Verdade que, como tal, se dirige a ele, está em condições de compreender todo o alcance desta Palavra, com o auxílio do Espírito Santo; e, neste caso, as circunstâncias das pessoas às quais a Palavra tem sido historicamente dirigida, tornam-se um meio para compreender a intenção do pensamento de Deus na parte da Palavra agora em questão. Essas circunstâncias, como temos visto, não mudam nada à divina pureza da Palavra; mas, uma vez que Deus se dirige aos homens, segundo o estaco espiritual deles, este «estado, tal como nos é apresentado na própria Palavra, facilita-nos em alto grau a compreensão do que nos é dito. Mesmo este estado não pode ser compreendido senão pela Palavra e com o auxílio do Espírito Santo (quer como efeito da maldade do coração do homem, quer como dependendo em parte das dispensações de Deus).
De qualquer modo, a graça dirige-se aos homens segundo o estado espiritual deles (1), segundo a fidelidade de Deus às Suas promessas, e em relação com os Seus caminhos, que Ele já lhes ensinou.
(1) É Deus vindo em graça ao meio do mal, graça apropriada ao homem nesse mal. Ela revela Deus como nada mais o pode fazer» mas é apropriada ao homem, por muito mau que ele seja. Assim, dando o que é puramente celeste e digno, ela o faz enfrentando o mal neste mundo. Este fato, embora revelando Deus tal como será conhecido no Céu, quanto à sua operação, desconhecido num paraíso terrestre ou celeste — o "bem no meio do mal! Os anjos desejam vê-lo de perto. Por outro lado, é a soberania, a graça, a sabedoria, o que o simples bem não pode ser embora a isso conduza na sua mais elevada forma.
Não é que, tendo chegado a verdadeira luz, esta luz seja agora deturpada ou depreciada para a adaptar às trevas; se assim fosse, já não seria ela mesma, e nem seria própria para relevar o homem, libertando do estado em que ele se encontrava; mas a verdadeira luz é comunicada de maneira a ficar ao alcance dos homens e aplicável ao seu estado ao mesmo tempo, aquilo de que eles tinham necessidade e o que era digno de Deus. Mas também só Deus o podia fazer. Tudo isto é igualmente verdadeiro, como sendo aplicável aos temas de que o Senhor trata e àqueles de que o Espírito Santo fala por intermédio dos Seus apóstolos. O Senhor pode dirigir-Se aos Judeus convertidos, mas presos ainda ao sistema judaico, para fazer evidenciar as intenções de Deus (sempre fiei às Suas promessas) a respeito desse povo, como também, sendo elevado ao Alto, pode comunicar, pelo Seu Espírito, todas as consequências da união da Igreja com Ele nos lugares celestes, fora de todos os planos de Deus para a Terra. Cristo pode mostrar às almas que se alimentam dos elementos mundanos, contrários a essa elevação celeste e que não apreendem nela o que os livra da sua tendência mundana e carnal, as provas do mal cm que caíram. Pode mostrar-lhes esse mal por meios que põem essas almas em relação com as verdades eternas de Deus de uma maneira que, embora elementar, julga a disposição carnal que sempre existiu naqueles que não se elevam à altura das intenções de Deus. O Espírito Santo também pode mostrar a verdade mais simplesmente na elevação que é própria a essa verdade. Pode apoiar-Se nos caracteres essenciais da natureza de Deus para julgar tudo o que, sob as normas mais plausíveis, aspirava à luz cristã, mas que pecava contra esta natureza nas coisas mais simples; pode assim ligar as almas mais simples e menos avançadas às qualidades mais elevadas do próprio Deus, na essência da Sua natureza.
A compreensão da posição das pessoas a quem os escritos são dirigidos, compreensão extraída dos próprios escritos, ajuda muito, sob a direção do Espírito Santo, a apreender a verdade divina que ali se encontra; verdade absoluta, mas, pela graça de Deus, verdade aplicada, verdade prática, realizada na alma pelo poder de Deus agindo nessa mesma alma, e protegendo-a, por intermédio dessa verdade, da tendência carnal do coração que a levara a cair nos excessos que deram lugar aos escritos que dela nos falam. Esta verdade desce até nós, seja qual for o nosso estado espiritual, não se alterando para se acomodai a nós, nem revestindo uma forma que dependa do nosso estado, embora dele se apropriando, mas sim para nos elevar até à fonte de onde ela desceu e da qual nunca se separará (porque a verdade que nos é comunicada é sempre a verdade em Deus e em Cristo, a fim de nos elevar moralmente até à altura da natureza divina, «...que é verdadeiro nele e em vós; porque vão passando as trevas, e já a verdadeira luz alumia» ( 1 João 2:8). É o efeito da intervenção de Cristo a quem nós estamos unidos pelo Espírito Santo, que é UM com Deus, o Pai.
A mesma verdade da adaptação das comunicações de Deus à posição daqueles que as receberam historicamente cos introduz na compreensão de Lodos os planos de Deus, porque Ele Se revela na Sua autoridade, na Sua sabedoria e na Sua soberania, nos Seus planos, como Se faz conhecer na Sua natureza pela revelação de Si mesmo em Cristo.
Cristo é o centro desses desígnios, mas toda a família, nos céus e na Terra, se submete ao Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Anjos, principados, potestades, Judeus, Gentios, tudo o que se nomeia, todos serão colocados sob a Sua autoridade (estando a Igreja unida a Ele, na glória). Ora, os planos de Deus a nosso respeito são-nos revelados na Sua Palavra; e, embora Deus nos não fale para satisfazer a nossa curiosidade, há muitos assuntos, fora da salvação propriamente dita, que se prendem u essa supremacia de Cristo, e também àquilo que Deus nos apresenta como desenvolvimento dos Seus planos neste mundo para nossa própria instrução.
Assim, embora as intenções de Deus acerca dos Judeus sejam naturalmente muito mais desenvolvidas no Antigo Testamento, as relações da sua História com os temas do Novo Testamento, a transição histórica da antiga dispensação para a nova, a conciliação das promessas feitas aos Judeus com a universalidade da dispensação evangélica, todos esses temas devem necessariamente encontrar um lugar no Novo Testamento, uma vez que os planos de Deus deviam ser-nos revelados. Digo os pianos de Deus, porque não pensamos somente nos Judeus; é Deus quem atua nos Seus planos e quem ali Se faz conhecer. Assim, embora a plena luz se revele no Novo Testamento, nele encontramos algo dirigido aos Judeus e aos discípulos que tinham feito parte desse povo, algo que revela os planos de Deus a respeito deles. Sem essas revelações, e se elas se não referissem à posição espiritual desse povo, não haveria harmonia nos planos de Deus, ou, pelo menos, essa harmonia ser-nos-ia desconhecida e não existiria moralmente. Estas observações têm relação com a doutrina, a história (quer dizer, com a apresentação do Messias), com a profecia, mostrando a fidelidade de Deus, e com os julgamentos sobre esse povo.
Para que nós conheçamos a Deus — o Deus que Se dignou intervir nos assuntos deste mundo — a simples luz não basta. É necessário conhecer esse Deus não só tal como Ele é na Sua natureza, embora isso seja o essencial e principal, mas também tal como Ele próprio se revelou em todos os Seus caminhos, em todos os Seus pormenores nos quais os nossos corações, pequenos e estreitos, podem aprender a conhecer o Seu amor fiel, paciente, condescendente, nos Seus caminhos onde se desenvolve a ideia abstrata da Sua sabedoria, de maneira a torná-la acessível à nossa limitada inteligência, que pode encontrar essa sabedoria em coisas que tiveram lugar no meio dos homens, estando inteiramente fora e acima de todas as suas previsões, mas anunciadas por Deus, de modo que nós as conhecêssemos.
Acima de tudo verificamos que Deus quis ligar-Se ao homem de modo muito particular em todas essas coisas.
Que maravilhoso privilégio da Sua fraca criatura! ... A Filosofia— insensata, limitada e mesmo essencialmente estúpida em todos os seus raciocínios — pretende que o mundo é demasiado pequeno para que Deus se interesse por uma tão fraca criatura como o homem, por algo que não é mais do que um ponto na imensidão do universo. Que triste loucura! como se a extensão material do teatro fosse a medida das manifestações morais que ali se operam e dos combates de princípios que ali se travam. O que se passa neste mundo é o espetáculo que manifesta aos olhos de todas as inteligências do universo os caminhos, o caráter e a vontade de Deus. Cabe-nos a nós receber, por graça, o conhecimento e o poder para dele gozarmos, a fim de que Deus seja glorificado em nós; que Ele seja glorificado não somente por nós — o que, do qualquer modo, será verdadeiro — mas cm nós. Este é o nosso privilégio, pela graça que está em Cristo, e para nossa união com Ele, que é a sabedoria e o poder de Deus. Quanto mais criancinhas obedientes e humildes nós formos, mais realizamos essa gloriosa posição. E um dia conheceremos como temos sido conhecidos! ... No entanto, quanto mais Cristo for objetivamente a nossa porção e a nossa ocupação, mais nós nos assemelharemos a Ele subjetivamente. Graças a Deus, o Senhor tem escondido estas coisas aos sábios e aos inteligentes e tem-nas revelado às criancinhas! ... «Todavia — diz o apóstolo —falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou, antes dos séculos, para nossa glória» (l Coríntios 2:6-7).
Antes de nos ocuparmos de cada um dos livros em particular, vamos apresentar em primeiro lugar uma ideia geral do conteúdo do Novo Testamento, ou antes, da ordem da revelação das verdades nele contidas.
Para tanto, não temos necessidade de sair da ordem habitual dos livros, sem, no entanto, lhe ligarmos importância (1).
O primeiro assunto que se apresenta é a história e a Pessoa do próprio Senhor Jesus, assunto contido nos quatro Evangelhos.
Depois, vem o estabelecimento da Igreja e a propagação do Evangelho no mundo, após a ascensão do Senhor Jesus.
Esta história é-nos relatada nos Atos dos Apóstolos.
Em seguida temos o desenvolvimento da verdadeira doutrina de Cristo, os cuidados dos apóstolos pelas igrejas e pelas almas individualmente, com as necessárias indicações para um comportamento que glorifique o Senhor, esperando o Seu regresso; a refutação dos erros pelos quais o Inimigo procurava corromper a fé, e as instruções indispensáveis para defender os fiéis das seduções dos instrumentos da sua malícia. Estes assuntos, especialmente o primeiro, encerram ioda a glória pessoal do Senhor. Falamos, como ó evidente, do conteúdo das Epístolas.
(1) Nas Bíblias alemãs, tal como em várias edições católicas e cm muitos manuscritos, a ordem é diferente. Mas, para o fim que me propus atingir, essa diferença não tem nenhuma importância. Toda a gente sabe que está ordenação dos Livros não tem nada a ver com a revelação em si.
Em último lugar, encontramos as profecias. Elas verificam o mal que devia obscurecer e alterar o testemunho prestado a Cristo no mundo, mas que, quando estivesse plenamente desenvolvido, ocasionaria o julgamento. As profecias revelam-nos também o progresso dos julgamentos de Deus, que acabarão pela destruição dos inimigos que ousarem pôr-se em rebelião aberta contra o Cordeiro, Rei dos reis e Senhor dos senhores. Revelam-nos de igual modo a glória e a benção que terão lugar a seguir aos julgamentos.
Este último assunto liga o ensinamento cristão à revelação dos caminhos de Deus a respeito do governo do mundo. Encontra-se longamente desenvolvido em Apocalipse, mas as suas relações com a decadência da Igreja são expostas em diversas Epístolas.
Em primeiro lugar ocupar-nos-emos naturalmente dos Evangelhos, que nos contam a história da vida do Senhor e O apresentam aos nossos corações, quer pelos Seus atos, quer pelos Seus discursos, nos diversos caracteres que O tornam, sob todos os aspectos, precioso às almas dos remidos, segundo a medida do conhecimento que lhes é concedido e segundo as suas necessidades—caracteres que, embora o Senhor seja visto aqui na Sua humilhação (1), formam, no seu conjunto, a plenitude da Sua glória pessoal, tanto quanto nós somos capazes de a compreender, enquanto estamos nestes vasos de argila neste mundo (2)! (1) Comparar 1:5Coríntios 2:8.
(2) Talvez, para ser mais explícito, devesse excetuar as relações de Cristo com a Igreja — assunto este que se encontra tratado nas Epístolas; mas não abrangeria esta parte tão preciosa da doutrina de Cristo na expressão: «A Sua glória pessoal». Excetuando o fato de que Ele edificaria uma Igreja na Terra, é somente pelo Espírito Santo, enviado após a Sua ascensão, que Elo deu aos apóstolos e aos profetas a revelação deste inefável ministério.
O Senhor — isto é evidente — tinha de reunir em Si mesmo sobre a Terra, segundo os planos de Deus e segundo as revelações da Sua 'Palavra, mais de lima natureza para o cumprimento da Sua glória e para a manutenção e manifestação da de Seu Pai, Mas, para que isso pudesse ter lugar, Ele tinha de ser também alguma coisa, para que fosse visto na luz da Sua verdadeira natureza, como andando neste mundo. Cristo teve de cumprir o serviço que Lhe pertencia prestar a Deus, como sendo Ele próprio o verdadeiro servo; e isto como servindo a Deus pela Palavra no meio do Seu povo, segundo o Salmo 40 (por exemplo, versos 8,9,10); Isaías 49:4-5, e outras passagens.
Um grande número de testemunhos tinham anunciado que o filho de Davi se assentaria, da parte de Deus, no trono de seu pai; e o cumprimento dos planos de Deus a respeito do Seu povo terrestre ligase, no Antigo Testamento, Àquele que devia vir e que, na Terra, teria a relação do Filho de Deus com o Eterno -Deus. O Cristo, o Messias, ou, em simples tradução, o Ungido, devia aparecer e apresentar-Se-á Israel segundo a revelação e os planos de Deus. É essa semente prometida devia chamar-Se Emanuel, ou seja: Deus conosco, Deus com o Seu povo.
Os Judeus limitavam a sua espera pouco mais ou menos a esse caráter de Cristo, e mesmo isso à sua maneira, não vendo ali senão a elevação da sua nação, sem terem o sentimento dos seus pecados nem das suas consequências. No entanto esse caráter de Cristo não era tudo o que a palavra profética, que tinha declarado os planos de Deus, anunciava a respeito d'Aquele que o próprio mundo esperava.
Cristo era o Filho do homem—título que o Senhor Jesus gostava de usar — título de suma importância para nós.
O Filho do homem é, parece-me, segundo a Palavra de Deus, o herdeiro de tudo o que os planos de Deus destinavam ao homem como sendo a sua porção em glória, o herdeiro de tudo o que Deus devia dar ao homem, segundo esses planos. (Ver dn 7:13-14; Salmo 8:5-6; Salmos 80:17, e Provérbios 8:30-31). Mas, para ser herdeiro de tudo o que Deus destinava ao homem. Cristo devia ser homem. O Filho do homem era, verdadeiramente, da raça humana — que preciosa e consoladora verdade —nascido de uma mulher, real e verdadeiramente um homem, e, participando do sangue e da carne, fora feito semelhante aos Seus irmãos! ...
Nesse caráter, Ele teve de sofrer e ser rejeitado, para que pudesse herdar todas as coisas num estado completamente novo, ressuscitado e glorificado. Teve de morrer e ressuscitar, porque a herança estava maculada, o homem em rebelião e os Seus coerdeiros tão culpados como os outros.
Jesus devia, pois, ser o grande profeta, embora servo, o Filho de Davi e o Filho do homem; e, por conseguinte, realmente homem sobre a Terra, nascido sob a lei, nascido de uma mulher, da posteridade de Davi, herdeiro dos direitos da família de Davi, herdeiro dos destinos do homem segundo a intenção e os planos de Deus. Mas, relativamente a isso, Ele teve de glorificar a Deus, segundo o estado espiritual em que o homem se encontrava como caído quanto à sua responsabilidade, e satisfazer a essa responsabilidade de maneira a glorificar a Deus, mas prestando, enquanto estava neste mundo, o testemunho de um profeta, Ele, a fiel testemunha.
Mas quem é que reuniria todos esses caracteres? Essa glória era somente uma glória oficial, de que o Antigo Testamento tinha dito que um homem devia herdar? O estado do homem, manifestado sob a lei e sem lei, demonstrava a impossibilidade de o fazer participar, tal como estava, da bênção de Deus. A rejeição de Cristo levava ao máximo essas provas. E, com efeito, o homem tinha, acima de tudo, necessidade de ser ele próprio reconciliado com Deus, fora de toda a dispensação e do governo especial de um povo sobre a Terra. O homem tinha pecado; era necessário que uma redenção se realizasse para glória de Deus e salvação dos homens. Mas quem a levaria a cabo? O homem tinha necessidade dela para si próprio; um anjo devia guardar o seu lugar para si, preenchê-lo, mas nada mais podia fazer.
Não podia ser um salvador. E quem, de entre os homens, podia ser herdeiro de todas as coisas, e ter todas as obras de Deus colocadas sob o seu domínio, segundo as Escrituras? Era o Filho de Deus quem devia herdá-las; era o seu Criador quem devia possuí-las. Aquele pois, que devia ser o Servo, o Filho de Davi, o Filho do homem, o Redentor, era o Filho de Deus, o Deus Criador (1).
(1) O ato da Criação, quando não é atribuído a Deus em geral, distinguindo as Pessoas da Divindade, é sempre atribuído ao Filho ou ao Espírito Santo.
Os Evangelhos, em geral, desenvolvem esses caracteres de Cristo, não de uma forma dogmática (tendo apenas o de João essa forma, e só até um certo ponto), mas contando a história do Senhor, de maneira a apresentá-Lo nesses diversos caracteres de um modo muito mais vivo do que seria se nos tivessem sido comunicados apenas sob a forma de doutrina. O Senhor fala segundo este ou aquele caráter, atua segundo um ou outro, de sorte que nós O vemos, a Ele próprio, cumprindo o que pertencia às diversas posições que nós, pelas Escrituras, sabemos serem Suas. Não só o caráter de Cristo se torna assim muito mais conhecido nos seus detalhes morais e no seu verdadeiro alcance escriturístico, segundo o sentido e a intenção de Deus que ali se revelam, mas também o próprio Cristo Se toma, nesses caracteres, mais pessoalmente o objeto da fé e das afeições do coração. É uma pessoa que nós conhecemos, e não somente uma doutrina.
Por esse precioso meio que Deus Se dignou empregar, as verdades a respeito de Jesus estão igualmente muito mais ligadas com tudo o que O precedeu—com a história do Antigo Testamento. A mudança nos caminhos de Deus liga-se à gloria da Pessoa de Cristo, e é em relação com esta glória que a transição das relações de Deus com Israel e com o mundo à ordem celeste e cristã teve lugar. Este sistema celeste, embora tendo um caráter muito mais distinto do Judaísmo do que teria se o Senhor não tivesse vindo, não é uma doutrina que, contradizendoo, anule tudo o que o tinha precedido. Cristo, vindo, apresentou-Se aos Judeus, por um lado, como submetido à lei, e por outro, como sendo a Semente em quem as promessas deviam ser cumpridas. Mas Ele foi rejeitado, e assim o povo Judeu não só violou a Lei, o que já tinha feito no Sinai (1), mas também perdeu todo o direito às promessas — e promessas sem condições, sempre distintas. (Ver Romanos 10).
Deus pôde então introduzir a plenitude da Sua graça.
(1) É solene, mas instrutivo, notar que a primeira coisa que o homem Tez, foi arruinar tudo o que Deus tem estabelecido: Noé, o novo chefe do mundo, embriagar-se; aparece-nos o vitelo de ouro, quando a lei foi dada; os sacerdotes oferecem um fogo estranho no primeiro dia; Salomão cai na Idolatria e arruína o reino; Nabucodonosor exige a estátua de ouro e persegue os serviços do verdadeiro Deus! ...
Deus veio cm graça, mas o sistema estava arruinado. E é assim com a Igreja, não tenho a menor dúvida. Mas tudo será reparado de uma maneira maia gloriosa no último Adão.
Ao mesmo tempo tiveram o seu cumprimento os tipos e as figuras. A maldição da lei foi executada. Cumpriram-se as profecias que se referem à humilhação de Cristo.
E as relações de todas as almas com Deus — relações sempre necessariamente ligadas à Sua Pessoa, uma vez que Ele tinha aparecido — foram ligadas à posição que o Redentor tomou no Céu.
Deste modo a porta está aberta aos Gentios, e o plano de Deus a respeito da Igreja, corpo de Cristo assumpto ao Céu, plenamente revelado. Filho de Davi segundo a carne, e declarado Filho de Deus em poder por meio da ressurreição de entre os mortos (Romanos 1:3-4), «Jesus Cristo foi ministro da circuncisão, por causa da verdade de Deus, para que confirmasse as promessas feitas aos pais; e para que os Gentios glorifiquem a Deus, pela sua misericórdia» (Romanos 15:8-9). «Ele é a cabeça do corpo da Igreja é o princípio e o primogénito de entre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência». (Colossenses 1:18).
A glória da nova ordem de coisas era tanto mais excelente, tanto mais elevada acima de toda a ordem terrestre que a tinha precedido, quanto estava ligada à Pessoa do próprio Senhor Jesus —a Ele, como Homem glorificado junto de Deus, Seu Pai.
Ao mesmo tempo, o que era agora introduzido punha o Seu selo em tudo o que O tinha precedido, como sobre uma ordem de coisas que tinha estado em Seu lugar, e ordenada por Deus; porque o Senhor Se apresentara sobre a Terra em relação com o sistema, que existia antes da Sua vinda.
Os três primeiros Evangelhos mostram-nos a apresentação de Cristo ao homem responsável, e particularmente a Israel. João oferece-nos o caráter divino c eterno do próprio Senhor; sendo Israel, desde o primeiro capítulo, considerado como tendo-O rejeitado; estando ele próprio, Israel, endurecido e rejeitado—e o mundo insensível à presença do seu Criador. É por isso que se vê plenamente, neste Evangelho, a graça eficaz e soberana, o novo nascimento, e a Cruz como fundamentos das coisas celestes.
CAPÍTULO 1
Este Evangelho apresenta-nos Cristo no caráter de Filho de Davi e de Abraão, quer dizer, em relação com as promessas feitas a Israel, mas apresenta-O ao mesmo tempo como Emanuel, Jeová o Salvador, pois tal era o Cristo.
É Aquele que, sendo recebido, teria -cumprido as promessas (e assim o fará no futuro) em favor desse amado povo.
O Evangelho segundo S. Mateus é, com efeito, a história da rejeição de Cristo pelo povo, e, consequentemente, a história da condenação do próprio povo, tanto quanto dizia respeito à sua responsabilidade (porque os desígnios de Deus não podem falhar), e da substituição a que Deus ia proceder, de acordo com o Seu propósito.
À medida que o caráter do Rei e do reino se desenvolve e desperta a atenção dos chefes do povo, estes opõem-se e privam o povo que os segue, e a si próprios, de todas as bênçãos ligadas com a presença do Messias. O Senhor anuncia-lhes as consequências da sua oposição e mostra aos Seus discípulos o estado espiritual do reino que deveria ser estabelecido na Terra após a Sua rejeição, e também as glórias que daí deviam resultar para Si e para o Seu povo com Ele, E em Sua Pessoa, quanto à «Sua obra, é revelado também o fundamento da Assembleia — a Igreja edificada por Si. Numa palavra, como consequência da Sua rejeição por Israel, é revelado primeiro o reino tal qual existe agora (capítulo 13), em seguida a Igreja (capítulo 16), e depois o reino em glória (capítulo 17). Por fim, após a Sua ressurreição, é dada uma nova missão aos apóstolos, dirigida a todas as nações, na base de um Cristo ressuscitado (1).
(1) Isto teve lugar após a Sua ressurreição, na Galileia, e não do Céu e da glória, como no caminho de Damasco.
Sendo o objetivo do Espírito de Deus, neste Evangelho, apresentar Jeová cumprindo as promessas feitas a Israel, e as profecias que se referem ao Messias (e ninguém pode deixar de ficar surpreendido com o número de referências ao seu cumprimento), começa com a genealogia do Senhor, partindo de Davi e de Abraão, os dois troncos dos quais se elevou a genealogia Messiânica, e aos quais tinham sido feitas as promessas. A genealogia está dividida em três períodos, conforme as três grandes divisões da história do povo: desde Abraão ao estabelecimento da realeza, na pessoa de Davi; desde o estabelecimento da realeza ao cativeiro; e desde o cativeiro até Jesus.
Podemos observar a maneira como o Espírito Santo menciona, nesta genealogia, os pecados graves cometidos pelas pessoas cujos nomes nos são dados, engrandecendo a graça soberana de Deus que podia conceder um salvador em conexão com tais pecados como os de Judá, com uma pobre Moabita trazida para o meio do Seu povo, e com crimes como os de Davi.
A genealogia, em Mateus, é a genealogia legal, quer dizer, a genealogia de José — de José, de quem Cristo homem era o herdeiro legítimo segundo a lei Judaica. O evangelista omitiu três reis da parentela de Acabe, a fim de ter catorze gerações em cada período.
Joacaz e Joaquim são também omitidos. O objetivo não é, de modo nenhum, prejudicado por esta circunstância. O fim era apresentá-la como era reconhecida pelos Judeus, e todos os reis eram bem conhecidos de todos.
Mateus narra rapidamente os fatos concernentes ao nascimento de Jesus —fatos que são de eterna e infinita importância, não só para os Judeus, que estavam diretamente interessados neles, mas para nós mesmos— fatos nos quais Deus condescende em ligar a Sua glória com os nossos interesses, com os interesses do homem.
Maria estava desposada com José. A sua posteridade era, por consequência, legalmente a de José, quanto aos direitos da herança; mas o filho que trazia em seu ventre era de origem divina, concebido pelo poder do Espírito Santo.
O anjo do Senhor é enviado, como instrumento de providência, a fim de satisfazer a terna consciência e o reto coração de Jose, comunicando-lhe que o que Maria havia concebido era do Espírito Santo.
Podemos notar aqui que o anjo se dirige a José nesta ocasião tratandoo por «filho de Davi». O Espírito Santo chama assim a nossa atenção para o parentesco de José (tido como pai de Jesus) com Davi, sendo Maria chamada sua mulher. O anjo dá ao mesmo tempo o nome de Jesus (que quer dizer Jeová o Salvador) ao menino que havia de nascer. Aplica este nome à libertação de Israel do estado em que o pecado o tinha mergulhado (1).
(1) Está escrito: «Porque Ele salvará o Seu povo», o que mostra perfeitamente o título de Jeová contido no nome de Jesus ou Josué; porque Israel era o povo do Deus Eterno, isto é, de Jeová.
Todos estes fatos tiveram lugar para cumprir tudo quanto Jeová tinha dito peia boca do Seu profeta: «Eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome Emanuel», o que quer dizer Deus conosco (Isaías 7:14).
Eis, pois, o que o Espírito Santo põe diante de nós, nestes poucos versículos: Jesus, Filho de Davi, concebido pelo poder do Espírito Santo; Jeová o Salvador, que salvará Israel dos seus pecados; Deus conosco; Aquele que cumpria aquelas maravilhosas profecias que, mais ou menos claramente, mostram o problema que só o Senhor Jesus podia resolver.
José, homem justo, simples de coração e obediente, discerne sem dificuldade a revelação do Senhor e acata-a. Estes fatos mostram o caráter deste Evangelho, isto é, a maneira como Cristo é apresentado nele, Mas que maravilhosa revelação esta d'Aquele por Quem as palavras e promessas de Jeová deviam ser cumpridas! Que fundamento de verdade para compreensão do que era esta gloriosa e misteriosa Pessoa, de Quem o Antigo Testamento havia dito bastante para despertar os desejos e confundir as mentes do povo ao qual era enviada! ...
Nascido de uma mulher, nascido sob a lei, herdeiro de todos os direitos de Davi segundo a carne, e, ao mesmo tempo, o Filho de Deus, Jeová o Salvador Deus com o Seu povo: quem poderá compreender ou aprofundar o mistério da natureza d'Àquele em quem todas estas coisas se combinam? De fato, a Sua vida, como veremos, mostra a obediência do homem perfeito, as perfeições e o poder de Deus.
Os títulos de Jesus, títulos de herdeiro de Davi, de Salvador do Seu povo e de Emanuel, que acabamos de referir e que se encontram no capítulo 1:20-23, estão relacionados com a Sua glória no meio de Israel. O Seu nascimento pelo Espírito Santo cumpriu o Salmo 2:7 a seu respeito como homem nascido sobre a Terra. O nome de Jesus e a Sua concepção pelo poder do Espírito Santo, vão, sem dúvida, muito além desse parentesco, mas estão ligados também de um modo especial com a Sua posição em Israel (1).
(1) A relação mais extensa é indicada mais particularmente no Evangelho segundo S. Lucas, onde a Sua genealogia remonta até Adão, Mas aqui, o título de Pilho do homem é-Lhe especialmente aplicado.
CAPÍTULO 2
Nascido deste modo e assim caracterizado pelo anjo, e cumprindo as profecias que anunciavam a presença de Emanuel, Jesus é formalmente reconhecido como Rei dos Judeus pelos Gentios, guiados pela vontade de Deus, que dirige o coração dos seus sábios (2).
(2) O A estrela, não conduziu os magos desde o seu pais até à Judeia.
Deus quis apresentar este testemunho a Herodes e aos chefes do povo.
Tendo sido dirigidos pela Palavra de Deus (da qual os principais do povo e os próprios escribas reconheciam o alcance, e segundo a qual Herodes os reenviava a Belém), os magos reencontram a estrela que tinham visto do seu país o que os conduziu à casa onde estava o Menino. Esta visita teve lugar algum tempo depois do nascimento de Jesus. É, pois, natural que eles tenham visto a estrela quando o Menino nasceu. Herodes também se dirige nos seus cálculos de acordo com o momento da aparição da estrela, acerca da qual tinha cuidadosamente indagado junto dos magos. A viagem deles deveria ter-lhes tomado muito tempo. O nascimento de Jesus é-nos relatado no capítulo 1.
O primeiro verso do capitulo 2 deve ser traduzido assim: «Ora, tendo Jesus nascido...», porque se trata do um tempo já passado.
Farei notar igualmente aqui que as profecias do Antigo Testamento são citadas de três maneiras que não devem ser confundidas. A Palavra de Deus diz: «Para que se cumprisse»; «de modo que se cumpriu»; «então se cumpriu».
No primeiro caso trata-se do próprio fim da profecia. Veja-se Mateus 1:22-23, que é um exemplo disso no segundo caso trata-se de um cumprimento que está na intenção da profecia, sem que, no entanto, seja o único e completo pensamento do Espírito Santo. Mateus 2:23 pode servir de exemplo. Em terceiro lugar não se traía sen5o de um fato respondendo ao pensamento da passagem que, no seu espírito, se lhe aplica, sem dele ser o objeto positivo. (Veja Capítulo 2:17)
Quer dizer que vemos o Senhor, Emanuel, o Filho de Davi, Jeová, o Salvador, o Filho de Deus, nascido Rei dos Judeus, ser reconhecido pelos chefes das Gentios. É este o testemunho de Deus no Evangelho segundo S. Mateus, e o caráter sob o qual Jesus é ali apresentado. Em seguida, na presença de Jesus, assim revelado, vemos os chefes dos Judeus em relação com um rei estrangeiro que, no entanto, conhece, como sistema, as revelações de Deus na Sua Palavra, — mas totalmente indiferente para com Aquele que era o objeto dessas revelações; vemos esse rei, inimigo terrível do Senhor — do Senhor, verdadeiro Rei e verdadeiro Messias! —procurando levá-Lo à morte.
A providência de Deus vela pelo Menino, que nasceu em Israel, empregando meios que deixam o povo inteiramente responsável, e cumprindo ao mesmo tempo todos os pensamentos de Deus a respeito desse único e verdadeiro Remanescente de Israel, única e verdadeira fonte de esperança para o povo. Porque, sem Ele, todos sucumbiriam e sofreriam as consequências de estarem ligados ao povo.
Descido ao Egito para evitar o cruel desígnio de Herodes, que queria arrancar-Lhe a vida, Jesus torna-Se a Videira verdadeira; recomeça, moralmente falando, na Sua Pessoa, a história de Israel, será como (em sentido mais amplo) a história do homem, como último Adão em relação com Deus. E isto para que a Sua morte tivesse lugar — sem dúvida para bênção de tudo e de todos. Ora, Ele era o Filho de Deus e o Messias; portanto, Filho de Davi. Mas para tomar o Seu lugar como Filho do homem, Ele devia morrer (Veja-se João 12). Não se trata apenas da profecia de Oséias: «Do Egito chamei o meu Filho» (Oséias 11:1), aplicada deste modo a este verdadeiro princípio de Israel em graça, como o bem-amado segundo os Seus desígnios, pois o povo havia falhado inteiramente, de sorte que, sem esta graça, Deus os teria cortado. Vimos em Isaías, Israel, o servo, dar lugar a Cristo, o Servo, juntando um Remanescente fiel (os filhos que Deus Lhe deu enquanto esconde o Seu rosto da Casa de Jacó. Ver Isaías 8:17-18), para se tornar o núcleo do novo povo de Israel, segundo o pensamento de Deus. O capítulo 49 deste profeta apresenta esta transição de Israel para Cristo de um modo muito notável.
Aliás, é esta a base de toda a história de Israel, considerado como tendo falhado sob a lei, e sendo restabelecido em graça. Cristo é, moralmente, o novo tronco da nova Israel. (Comparar Isaías 49, versos 3 e 5) (1).
(1) No verso 5Cristo toma esse título de Servo. Em João 15 encontramos a mesma substituição de Cristo cm Israel. Israel tinha sido a videira transportada do Egito. A Videira verdadeira é Cristo.
Depois da morte de Herodes, Deus dá conhecimento do fato a José, num sonho, ordenando-lhe que volte com o Menino e Sua mãe para a terra de Israel. Devemos notar que a terra mencionada aqui pelo nome recorda os privilégios concedidos por Deus. Não se fala da Judeia nem da Galileia, mas sim da «terra de Israel». Pode, porém, o Filho de Davi, entrando nela, chegar ao trono de Seus pais? Não! Ele tem de tomar o lugar de um estranho entre os desprezados do Seu povo. Guiado por Deus num sonho, José leva-O para a Galileia, cujos habitantes constituíam motivo de profundo desprezo dos Judeus, por não estarem habitualmente em ligação com Jerusalém e a Judeia — a terra de Davi, dos reis reconhecidos por Deus, e do templo, e onde até o dialeto da língua comum a todos traía a sua separação daqueles que, pelo favor de Deus, tinham voltado de Babilónia para a Judeia. Até mesmo na Galileia, José se estabelece numa cidade cujo nome era um opróbrio para quem ali habitava, e uma nódoa na sua reputação.
Tal era a posição do Filho de Deus, quando veio ao mundo, e tais as relações do Filho de Davi com o Seu povo, quando, pela graça e segundo os desígnios de Deus, Se encontrou no meio dele. Por um lado, era Emanuel, Jeová, seu Salvador; mas por outro, o Filho de Davi, tomando o Seu lugar no meio do Seu povo e associando-Se com os mais pobres e mais desprezados do rebanho, refugiando-Se na Galileia por causa da iniquidade de um falso rei que reinava na Judeia com o apoio dos Gentios da quarta monarquia e com o qual os sacerdotes e os principais do povo estavam ligados. Estes, infiéis a Deus c descontentes com os homens, detestavam orgulhosamente ura jugo ao qual os seus pecados os haviam sujeitado e que eles não ousavam sacudir, embora não reconhecessem suficientemente os seus delitos para de boa mente se submeterem a esse jugo como a um justo castigo de Deus.
Eis como o evangelista, ou antes, o Espírito Santo nos apresenta o Messias em relação com Israel.
CAPITULO 3
Começamos agora a Sua verdadeira história. João Batista vem, segundo a profecia de Isaías (capítulo 40), para preparar o caminho do Senhor ante a Sua face, proclamando que era chegado o reino dos céus e convidando o povo ao arrependimento. O ministério de João para Israel é caracterizado neste Evangelho por três coisas: Primeira, o Senhor, o próprio Jeová vinha. O Espírito Santo (na citação que faz de Isaias 40:3) deixa de lado as palavras «a nosso Deus», no final do verso, porque Jesus vinha como homem em humilhação, embora sendo reconhecido como o Eterno—e Israel já não tinha o direito de dizer «nosso»; Segunda, o reino dos céus (1) estava próximo — a nova dispensação, que devia substituir a outra que, propriamente falando, pertencia ao Sinai, onde o Eterno Deus tinha falado sobre a Terra. Nesta nova dispensação, «os céus reinarão».
(1) Encontramos essa expressão somente no Evangelho segundo S.
Mateus, ligada às dispensações e caminhos de Deus acerca dos Judeus. «O reino de Deus» é o termo genérico; «o reino dos céus» e o reino de Deus, mas o reino de Deus tomando particularmente o caráter de governo celeste. Encontrá-lo-emos mais à frente, dividido em reino de nosso Pai t reino do Filho do homem.
Eles serão a sede da autoridade de Deus no Seu Cristo, e caracterizálo-ão; Terceira, o povo, como tal, em vez de ser abençoado no seu estado de espírito atual, ó chamado ao arrependimento em vista da aproximação desse reino. Por conseguinte João dirige-se para o deserto, afastando-se dos Judeus com os quais ele não pedia associar-se, porque vinha no caminho da Justiça (capítulo 21:32). Alimenta-se do que o deserto lhe dá (até mesmo as suas vestes proféticas dão testemunho da posição que ele tinha tomado da parte de Deus), e ele próprio c cheio do Espírito Santo.
Por consequência João era profeta, pois vinha da parte de Deus, dirigindo-se ao Seu povo para o chamar ao arrependimento, e para lhe anunciar a bênção de Deus segundo as promessas de Jeová seu Deus.
Mas João era mais do que um profeta, porque apresentava como coisa imediata a introdução de uma nova dispensação, há longo tempo esperada, e o advento do Senhor em Pessoa. Ao mesmo tempo, embora viesse para Israel, João não reconhecia o povo; porque este devia ser julgado, a eira do Senhor Deus devia ser limpa, as árvores que não davam bons frutos deviam ser cortadas. Seria apenas um Remanescente que o Eterno Deus colocaria na nova posição no reino que anunciava sem ainda ser revelado de que modo esse reino ia ser estabelecido. João proclamava o julgamento do povo. Que fato de incomensurável grandeza ora a presença do Eterno Deus no meio do Seu povo, na Pessoa d’Aquele que, embora devendo ser o cumprimento de todas as promessas, era, necessariamente, embora rejeitado, o Juiz de todo o mal que existia no meio do Seu povo! Quanto mais damos a estas passagens a sua verdadeira aplicação, isto é, quanto mais as aplicamos a Israel, tanto mais apreendemos a sua verdadeira força (1).
(1) É preciso lembrar que, além das promessas especiais feiras a Israel e a sua chamada como povo de Deus sobre a Terra, esse povo representava Justamente o homem considerado na sua responsabilidade para com. Deus sob a cultura mais perfeita que Deus pudesse dar-lhe. Até ao dilúvio, havia um testemunho, mas não havia dispensações ou instituições de Deus. Depois, no mundo novo, vemos um governo humano, uma chamada e promessas em Abraão, a lei, o Messias, Deus vindo em graça; Deus podia fazer tudo, e fê-lo com perfeita paciência, mas em vão, quanto ao encontrar algum bem na carne. Agora Israel, tem sido posto de lado como estando na carne, estando esta julgada e a figueira amaldiçoada como estéril, o Homem de Deus, o último Adão, Aquele em quem está a bênção pela redenção, é manifestado do mundo. Nos três primeiros Evangelhos, como vimos, Cristo é apresentado ao homem para que ele O receba; em João, o homem e Israel são postos de lado, e são introduzidos os soberanos caminhos de Deus em graça e em ressurreição.
Sem dúvida, o arrependimento é uma necessidade eterna para toda a alma que se aproxima de Deus; mas em que luz esta verdade não é colocada, quando vemos a intervenção do próprio Senhor chamando o Seu povo ao arrependimento, pendo de lado — perante a sua recusa — todo o sistema das suas relações Consigo e estabelecendo uma nova dispensação — um reino que pertence somente àqueles que O escutam — e fazendo cair, por fim, o Seu Juízo sobre o Seu povo e sobre a cidade que havia por tão longo tempo amado! «Ah! se tu conhecesses também, ao menos neste dia, o que à tua paz pertence! Mas agora isto está encoberto aos teus olhos» (Lucas 19:42).
Esta verdade dá lugar à apresentação de outra verdade muito mais importante, anunciada aqui em relação com os direitos soberanos de Deus, não em vez das suas consequências, mas contendo em si todas essas consequências.
O povo ia de toda a parte, e, como vemos noutra passagem, especialmente os desprezados e os ímpios, para serem batizados, confessando os seus pecados. Mas os que, aos seus próprios olhos, ocupavam o lugar de principais entre o povo, eram, aos olhos do profeta, que amava o povo segundo o pensamento de Deus, os objetos do Juízo anunciado.
A ira permanecia sobre eles. Quem havia induzido estes escarnecedores a fugirem dela? Humilhem-se como os outros; tomem o seu lugar e mostrem a mudança dos seus corações. Vangloriarem-se dos privilégios da sua nação, ou de seus antepassados, de nada servia perante Deus. Deus exigia o que a Sua própria natureza, a Sua Verdade, requeria.
Além disso, Deus era soberano; «Mesmo destas pedras, Deus pode suscitar filhos a Abraão». É isto o que a Sua graça soberana tem feito por Cristo com respeito aos Gentios.
A realidade era necessária. O machado estava posto à raiz das árvores; as que não produzissem bons frutos seriam cortadas (versos 7-10).
Eis o grande princípio moral que o Juízo ia exercer em força. A pancada ainda não havia sido dada, mas o machado estava já posto à raiz das árvores. João tinha vindo para levar os que aceitassem o seu testemunho a uma nova posição, ou ao menos a um novo estado para o qual eram preparados por esse testemunho. Aqueles que se arrependiam, ele os distinguia dos outros pelo batismo. Mas Aquele que vinha depois de João — Aquele cujas sandálias João não era digno de levar — limparia completamente a Sua eira e separaria os que eram verdadeira e moralmente Seus, do Seu povo Israel (esta era a Sua eira), e executaria o Juízo sobre os restantes. Por sua parte, João abria primeiramente a porta para o arrependimento; o Juízo viria depois.
O Juízo não era a única obra que pertencia a Jesus. No entanto duas coisas Lhe são atribuídas neste testemunho de João: Batiza com fogo — é o Juízo proclamado no verso 12, o qual consome todo o mal; mas batiza também com o Espírito Santo — o Espírito que, dado e atuando em energia divina no homem, vivificado, redimido, purificado no sangue de Cristo, o tira da influência de todos os atos da carne, e o coloca em relação e comunhão com tudo o que é revelado da pane de Deus, com a glória em que Ele põe as Suas criaturas na vida que transmite, destruindo moralmente em nós o poder de tudo o que é contrário ao gozo destes privilégios.
Note-se que o único e bom fruto reconhecido por João, como meio de escapar, é a confissão sincera, pela graça de Deus, de todos os pecados. Só aqueles que fizerem esta confissão escaparão ao machado.
As únicas árvores realmente boas eram aquelas que se confessavam más.
Alas que momento solene este para o amado povo de Deus! Que extraordinário acontecimento era a presença de Jeová no meio da nação com a qual estava em relação! ...
Note-se que João Batista não apresenta aqui o Messias como o Salvador que vem em graça, mas sim como o Chefe do reino, como Jeová, que executaria o Seu Juízo, se o povo se não arrependesse.
Veremos a seguir a posição que Jesus toma, em graça.
No verso 13 o próprio Senhor Jesus, que até agora tem sido apresentado como o Messias e mesmo como Jeová, vem a João para ser batizado com o batismo de arrependimento.
Lembramos que aceitar este batismo era o único bom fruto que um Judeu, no seu estado, podia produzir.
O ato em si provava ser o fruto de uma obra de Deus — da ação eficaz do Espírito Santo. Aquele que se arrepende confessa que tem andado até agora longe de Deus; de modo que se trata de um fato novo, fruto da Palavra de Deus e obra em si, o sinal de uma nova vida, da vida do Espírito na sua alma. O próprio fato da missão de João não dava outro fruto, nenhuma prova admissível de vida de Deus num Judeu, a não ser a confissão. O que não quer dizer que não havia ninguém em quem o Espirito Santo não tivesse agido vitalmente; mas, o estado espiritual do povo e segundo a chamada de Deus por intermédio do Seu servo, essa era a prova desta vida — o retorno do coração para Deus. Estes formavam o verdadeiro Remanescente do povo, os que Deus reconhecia como tais; e era deste modo que eram separados da grande massa que amadurecia para o Juízo. Estes eram os verdadeiros santos, os excelentes da Terra; embora o único lugar para tais homens fosse a humilhação do arrependimento. Era por ali que tinham de começar.
Quando Deus traz a misericórdia e a Justiça, aproveitam-se com gratidão da misericórdia, reconhecendo-a como seu único recurso, e curvam o seu coração ante a Justiça, como justa consequência do estado espiritual do povo de Deus, mas aplicando a si próprios.
Ora Jesus apresenta-Se no meio daqueles que tomam esta posição (verso 13). Embora seja verdadeiramente o Senhor, o Eterno Deus, o justo Juiz do Seu povo, Aquele que devia limpar a Sua eira, Ele toma o Seu lugar entre o Remanescente fiel que se humilha perante esse julgamento.
Toma o lugar do mais humilde do Seu povo perante Deus.
No Salmo 16:1-3, poderemos ler: “Guarda-me, ó Deus, porque em ti confio. Digo ao Senhor: Tu és o meu Senhor; não tenho outro bem além de ti. Quanto aos santos que há na Terra, são eles os ilustres nos quais tenho todo o meu prazer.” Perfeito testemunho de graça! O Salvador identifica-Se, segundo esta graça, com o primeiro movimento do Espírito nos corações do Seu povo, humilhando-Se a Si mesmo, não só na condescendência da Sua graça para com eles, mas tomando o Seu lugar como se fora um deles na sua verdadeira posição perante Deus; não meramente para confortar os seus corações por tal bondade, mas a fim de simpatizar com todas as suas dores e dificuldades; a fim de ser o padrão, a origem e a perfeita expressão de todos os sentimentos que convinham à posição deles.
Com um Israel impenitente e ímpio Ele não podia associar-Se, mas com o primeiro efeito vivo da Palavra e do Espírito de Deus nos pobres do rebanho, pedia fazê-lo em graça. E Ele faz o mesmo agora.
Encontramos a Cristo desde o primeiro passo, o que é, realmente, de Deus.
Mas, além disso, Ele vem para por aqueles que estavam em relação com Deus, segundo o favor que se aplicava numa perfeição tal como a Sua, e sobre o amor que, manda a causa do Seu povo, satisfazia o coração do Senhor, e, havendo glorificado perfeitamente a Deus em tudo o que Ele o, O tornou capaz de Se satisfazer em bondade. Sem dúvida, para que isso tivesse lugar, o Senhor teve de dar a Sua vida, porque o estado espiritual dos Judeus, bem como o de todo os homens, requeria esse sacrifício, para que tanto uns como os outros pudessem estar em relação com o Deus de Verdade. Mas até mesmo nisto o amor de Jesus não falhou. Todavia, aqui o Senhor condu-los ao gozo da benção expressa em Sua própria Pessoa, a qual devia ser solidamente fundada no sacrifício — benção que eles têm de alcançar por meio do caminho do arrependimento, no qual entraram pelo batismo de João; o batismo que Jesus recebeu com eles, para que pudessem prosseguir juntos para a posse de iodas as excelentes coisas que Deus preparou para aqueles que O amam.
João, compreendendo a dignidade e a excelência da Pessoa d'Aquele que vinha ao seu encontro, opõe-se ao desejo do Senhor. O Espírito Santo revela deste modo o verdadeiro caráter da ação do Senhor.
Quanto ao Senhor, era a Justiça que ali O trazia, e não a questão do pecado — Justiça que Ele cumpria em amor. Cumpria, assim como João Batista, o que convinha ao lugar que Lhe era destinado por Deus.
Com que condescendência Ele se identifica ao mesmo tempo com João, dizendo: «Assim nos convém».
É o servo humilde e obediente. E foi sempre desse modo que Ele se conduziu sobre a Terra. Além disso, quanto à Sua posição, a graça levou Jesus aonde o pecado nos havia conduzido; ele entrou pela porta que o Senhor tinha aberto para as Suas ovelhas. Confessando o pecado tal como ele é, comparecendo perante Deus na confissão do nosso pecado, encontramo-nos na companhia de Jesus (1).
(1) Dá-se o mesmo com o sentimento do nosso nada. Ele humilhou-Se a Si próprio, e, na consciência do nosso nada encontramo-nos cora Ele é ao mesmo tempo, somos cheios da Sua plenitude. Mesmo quando caímos, não é depois de termos sido levados a nos conhecermos tal como somos, que nós vemos Jesus voltar a erguernos.
Na realidade, trata-se do fruto do Espírito Santo em nós. Era o caso dos pobres pecadores que iam ter com João. Foi assim que Jesus tomou o Seu lugar em Justiça e em obediência entre os homens e mais propriamente entre os Judeus penitentes.
É nesta posição de homem — justo, obediente, cumprindo na Terra, em perfeita humildade, a obra pela qual Se havia oferecido a Si mesmo em graça, segundo o Salmo 40, entregando-Se para o cumprimento de toda a vontade de Deus em absoluta renúncia— que Deus Seu Pai O reconheceu plenamente e O selou, declarando que Ele era na Terra o Seu Filho amado.
Sendo batizado — prova notável do lugar que havia tomado com o Seu Povo — os céus abrem-se, e vê o Espirito Santo descer sobre Si com uma pomba; e eis uma voz do Céu que dizia: «Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo» (versos 16-17).
Mas estas circunstâncias requerem a nossa atenção.
Nunca os Céus se abriram sobre a Terra, nem para qualquer homem na Terra, antes da vinda do Filho amado (1).
(1) No princípio do Livro de Ezequiel (1:1) é-nos dito que os céus se abriram, mas tratava-se apenas de uma visão, como o próprio profeta nos explica. Neste caso era a manifestação de Deus em Juízo.
Deus tinha, certamente, em bondade e paciência, abençoado, de maneira providencial, todas as suas criaturas; tinha abençoado também o Seu povo, segundo as regras do Seu governo terrestre.
Além disso havia os eleitos, que Ele guardava em fidelidade. No entanto, e até esse momento, os céus não tinham sido abertos! Deus tinha enviado um testemunho em ligação com o Seu governo na Terra; mas não havia nela um objeto sobre o qual os olhos de Deus pudessem descansar com complacência, até que Jesus, imaculado e obediente, Seu Filho amado, aqui chegou. Mas o que se torna precioso para nós é o fato de que, quando o Senhor toma o Seu lugar publicamente em graça, lugar de humilhação com Israel — quer dizer, com o crente fiel, apresentando-Se assim perante Deus, para cumprir a Sua vontade — os Céus se abrem sobre um objeto digno da sua atenção. Sem dúvida, Ele era sempre digno de adoração, mesmo antes que o mundo existisse; mas agora havia tomado esse lugar nos desígnios de Deus como homem, e os céus abriram-se a Jesus, o objeto de toca a afeição de Deus na Terra. O Espírito Santo desce sobre Ele em forma visível. E Ele, homem na Terra, um homem que toma o Seu lugar com os humildes do povo penitente, é reconhecido como sendo o Filho de Deus. Não é apenas ungido de Deus, mas, como homem, está ciente da descida do Espírito Santo sobre Si -o selo que o Pai põe sobre Si.
E aqui não se trata, evidentemente, da Sua natureza divina no caráter de Filho eterno do Pai. O selo não estaria em conformidade com esse caráter; e, quanto á Sua Pessoa, esse selo é-Lhe manifestado, com o conhecimento que dele tinha, na idade de doze anos, no Evangelho segundo S. Lucas.
Mas, embora sendo o Filho eterno, é também homem.
Filho de Deus na Terra. É selado com o Espírito Santo como homem! Como homem tem assim consciência da presença do Espírito Santo em Si. Esta presença está em relação com o caráter de humildade, mansidão e obediência em que o Senhor Jesus apareceu na Terra. É «como pomba» que o Espírito Santo desce sobre Ele; precisamente como foi na forma de Línguas de fogo que Ele desceu sobre as cabeças dos discípulos para seu testemunho em poder neste mundo, segundo a graça que se dirigia a todos, e a cada um na sua própria Língua.
Jesus estabelece assim, em Sua própria posição, o lugar em que nos introduz por meio da redenção (João 20:17).
Porém, a glória da Sua Pessoa é sempre cuidadosamente ressalvada.
Não é apresentado um objeto a Jesus, como, por exemplo, a Saulo de Tarso, e, num caso ainda mais análogo, a Estêvão, o qual, cheio do Espírito Santo, vê os céus abertos, e, olhando bem para eles, vê o Filho do homem, e foi transformado na Sua imagem. Jesus veio e é em Si mesmo o objeto sobre o qual os céus se abrem; não tem objeto transformador, como no caso de Estêvão, ou no nosso caso em Espírito. O Céu olha para Jesus, o perfeito alvo de deleite, É a Sua relação com Seu Pai, já existente, que é selada (1).
Nem tampouco o Espirito criou o Seu caráter (exceto no que se refere à Sua natureza humana; neste sentido, Ele foi concebido no ventre da virgem Alaria pelo poder do Espírito Santo). Ele tinha-Se ligado com os pobres, na perfeição do 'Seu caráter, antes de ser selado com o Espírito Santo, e em seguida atua segundo a energia do poder do que havia recebido sem medida na Sua vida humana neste mundo. (Ver: Mateus 12:28; João 3:34; Atos dos Apóstolos 10:38).
Encontramos na Palavra de Deus quatro ocasiões memoráveis em que os céus se abrem. Cristo é o objeto de todas estas revelações e cada qual tem o seu caráter especial.
Aqui o Espírito Santo desce sobre Jesus e Ele é reconhecido o Filho de Deus (ver João 1:33-34). No final do mesmo capítulo Jesus declara-Se o Filho do homem. Os anjos de Deus sobem e descem sobre Ele. É, como Filho do homem, o objeto do seu ministério (2).
(1) Isto é também verdade a nosso respeito, quando estamos nessa relação por graça, (2) é grave erro dizer-se que Cristo é a escada. Cristo é, como o tinha sido Jacob, o objeto do serviço e do ministério dos anjos.
No final de Atos 7 abre-se uma cena inteiramente nova. Os Judeus rejeitam o último testemunho que Deus lhes envia. Estevão, por meio de quem é dado esse testemunho, é cheio do Espírito Santo, e os céus abrem-se lhe. O sistema terrestre foi definitivamente acabado pela rejeição do testemunho do Espírito Santo dado acerca da glória de Cristo elevado às alturas. Mas isto não é meramente um testemunho.
O crente é cheio do Espírito, o Céu abre-se para ele, a glória de Deus é-lhe revelada, e o Filho do homem aparece-lhe, de pé, à direita de Deus. Isto é uma coisa diferente dos céus se abrirem sobre Jesus, o objeto do deleite de Deus na Terra. Trata-se do Céu aberto ao próprio crente, tendo o seu objeto no Céu, depois de haver sido rejeitado na Terra. Vê, pelo Espírito Santo, a glória celestial de Deus, e Jesus, o Filho do homem, o objeto especial do seu testemunho, na glória de Dens. A diferença é tão notável quão interessante; e mostra, do modo mais notável, a verdadeira posição do crente na Terra e a alteração que a rejeição de Jesus pelo Seu povo terrestre produziu. Com a diferença que a Igreja, a união dos crentes em um corpo com o Senhor no Céu, não havia ainda sido revelada. Alais tarde (Apocalipse 19) o Céu abrese e o Senhor mesmo sai, o Rei dos reis e Senhor dos senhores. Vemos assim: Primeiro, Jesus, o Filho de Deus na Terra, objeto do deleite do Céu, selado com o Espírito Santo; Segundo, Jesus, o Filho do homem, objeto dos cuidados do Céu, sendo os anjos Seus servos; Terceiro, Jesus; nas alturas à direita de Deus, e o crente, cheio do Espírito Santo e sofrendo na Terra por amor do Seu nome, vendo a glória nas alturas, e o Filho do homem na glória; e, finalmente, Jesus, o Rei dos reis, e Senhor dos senhores, saindo do Céu para julgar e fazer guerra contra os escarnecedores que disputam a Sua autoridade e oprimem a Terra.
Mas recapitulemos, voltando ao fim do capítulo 3: O Pai reconhece a Jesus, o Homem obediente na Terra, que entra, como verdadeiro Pastor, pela porta, como Seu Filho amado em quem está todo o Seu deleite. O Céu é aberto sobre Jesus; Ele vê o Espírito Santo descendo sobre Si, a força infalível e suporte das perfeições da Sua vida humana; e recebe do Pai o testemunho da Sua relação entre Ele e os Seus. Nenhum objeto em que a Sua fé deve ser posta Lhe é apresentado como o é a nós. Ê a Sua relação com o Céu e Seu Pai que é selada. A Sua alma desfruta o gozo do fato com a descida do Espírito Santo e a voz de Seu Pai.
Esta passagem do Evangelho segundo S. Mateus requer, porém, um pouco mais de atenção. O bendito Senhor, ou antes, o que ocorreu com Ele, mostra-nos o lugar ou o modelo em que Ele põe os crentes, quer sejam Judeus ou Gentios: Claro, somos postos nesse lugar pela redenção. «Subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus» são as palavras benditas que pronunciou depois da Sua ressurreição.
Mas, para nós, o Céu está aberto; estamos selados com o Espírito Santo; o Pai reconhece-nos como filhos. Mas a dignidade divina da Pessoa de Cristo é sempre mantida no mundo em humilhação, como na transfiguração em glória. Moisés e Elias encontram-se na mesma glória, mas desaparecem quando a precipitação de Pedro, autorizado a falar, os queria pôr no mesmo nível. Quanto mais perto estamos de uma pessoa divina, tanto mais a adoramos e reconhecemos o que ela é.
Porém, encontra-se aqui outro fato muito notável. Pela primeira vez, quando Cristo toma este lugar entre os homens em humildade, a Trindade é plenamente revelada. Sem dúvida, o Filho e o Espírito Santo são mencionados no Antigo Testamento. Mas ali a unidade da Divindade é o ponto essencial revelado. Aqui é o Filho como Homem que é reconhecido. O Espírito Santo desce sobre Ele e o Pai dedara-O como Seu Filho. Que maravilhosa relação com o homem! Que lugar para o homem ocupar! Mediante a relação de Cristo com o homem, a Deidade é revelada na sua própria plenitude. A Sua humanidade apresenta-se em toda a sua plenitude, Mas Ele era realmente homem — o Homem em Quem os desígnios de Deus quanto ao homem deviam ser cumpridos.
Por esta razão, e uma vez que Ele realizou e mostrou o lugar em que o homem é posto perante Deus na Sua própria Pessoa e segundo os desígnios de Deus em graça quanto à nossa relação com Deus, nós também estamos em conflito com o Inimigo. Ele entra também nesse lado da nossa posição. Temos a nossa relação com Deus nosso Pai.
Ele venceu por nós e mostrou-nos como vencer. Note-se também que, primeiramente, a relação do Senhor com Deus é plenamente estabelecida e revelada, e que em seguida começa o conflito com Satanás. E dá-se o mesmo conosco.
Mas a questão era esta: Manter-se-ia o Segundo Adão onde o primeiro Adão tinha falhado? E, além disso, estava no deserto deste mundo e sob o poder de Satanás — em lugar das bênçãos de Deus — pois era ali que nós tínhamos chegado.
Devemos também notar outro ponto aqui, a fim de vermos o lugar que o Senhor toma. A lei e os profetas vigoraram até João. É então anunciado algo de novo — o reino dos céus. O Juízo termina pelo povo de Deus. O machado está posto à raiz das árvores, a pá está nas mãos d'Aquele que vem, o trigo é recolhido no celeiro de Deus, a palha é queimada. Quer dizer, há um fim da história do povo de Deus em Juízo. Nós entramos no campo onde o homem está perdido e espera o julgamento; mas a história do homem como responsável terminou. Por isso é dito: «Mas agora na consumação dos séculos Se manifestou para tirar o pecado pelo sacrifício de Si mesmo». Isto aconteceu literalmente com Israel; mas é também moralmente verdadeiro a nosso respeito; com a diferença que nós somos recolhidos para o Céu, assim como o Remanescente de então, e estaremos no Céu. Mas, sendo Cristo rejeitado, a história da responsabilidade acabou, e nós somos introduzidos em graça como seres já perdidos.
Consequentemente, após este anúncio, Cristo vem e, identificando-Se com o Remanescente que escapa ao Juízo por meio do arrependimento, prepara este novo lugar para o homem sobre a Terra.
Mas nós não podíamos ocupá-lo antes da redenção ser cumprida.
Entretanto Ele manifestou o nome do Pai àqueles que Ele Lhe tinha dado do mundo.
CAPÍTULO 4
Tendo assim tomado em graça a Sua posição como homem sobre a Terra, Jesus começa a Sua carreira terrestre, sendo levado pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. O Homem justo e santo, o Filho de Deus, gozando, como tal, de todos os privilégios que Lhe são próprios, teve de passar pelas experiências dos ardis mediante os quais o primeiro Adão caiu. É posto à prova o Seu estado espiritual.
Não se trata agora de um homem crente, gozando de todas as bênçãos naturais de Deus, e posto à prova no meio dessas bênçãos. Mas é Cristo que, em intimidade com Deus como Seu Filho amado, no meio da provação, tendo conhecimento do bem e do mal, e, quanto às circunstâncias exteriores, descendo ao meio do estado decaído do homem, tem de ser profundamente provado nesta fidelidade inerente a esta posição a respeito da Sua perfeita obediência. A fim de manter esta posição, não pode ter outra vontade que não seja a do Pai e tem de a cumprir, sejam quais forem as consequências que daí Lhe advenham. Tem de a cumprir no meio de todas as dificuldades e privações, no isolamento, no deserto, onde estava o poder de Satanás, o qual podia tentá-Lo para seguir um caminho mais fácil do que aquele que era para glória de Seu Pai. Tem de renunciar a todos os direitos que pertencem à Sua Pessoa, exceto os que recebia de Deus, entregando-os a Ele com perfeita confiança.
O Inimigo fez todo o possível para induzir Jesus a fazer uso dos Seus privilégios, «Se tu és o Filho de Deus», para Seu próprio alívio, separado do mandamento de Deus, evitando os sofrimentos que podiam advir do cumprimento da Sua vontade. Mas tudo isto com o fim de O levar a fazer a Sua própria vontade—e não a vontade de Deus.
Jesus, desfrutando em Sua própria Pessoa e relação com Deus o pleno favor de Deus como Filho de Deus, a luz do Seu rosto, vai ao deserto para estar quarenta dias em luta com o Inimigo. Não se separa dos homens nem de todos os contatos com os homens e as coisas do homem para (como Moisés e Elias) estar com Deus. Porém, já plenamente com Deus, Ele é separado dos homens pelo poder do Espírito Santo para estar só na Sua luta com o Inimigo. No caso de Moisés, era o homem fora da sua condição natural, para estar com Deus. No caso de Jesus dá-se o mesmo para estar com o Inimigo, porque estar com Deus era a Sua posição natural.
O Inimigo tenta-O em primeiro lugar propondo-Lhe satisfazer as necessidades do Seu corpo e, em vez de esperar em Deus, empregar, segundo a Sua própria vontade e em Seu próprio benefício o poder de que era dotado. Porém, se Israel tinha sido alimentado no deserto com o maná de Deus, o Filho de Deus, por maior que fosse o Seu poder, atuaria de acordo com o que Israel linha aprendido com o princípio de que «Nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus». O Homem, o Judeu obediente, o Filho de Deus confiava nesta palavra e nada fazia sem ela. Não tinha vindo para fazer a Sua própria vontade, mas a vontade d'Aquele que O tinha enviada.
É este o princípio que caracteriza o Espírito de Cristo nos Salmos.
Nenhuma libertação é aceite senão a intervenção de Jeová, quando Ele assim o entender. Trata-se de paciência perfeita, a fim de ser perfeito e completo em toda a vontade de Deus. Não podia haver nenhum desejo culpável em Cristo; mas ter fome não era pecado, era uma necessidade humana —e que mal há em comer quando se tem fome? ... Mas não era a vontade de Deus que Ele exerces s e agora o Seu poder—e Jesus viera para cumprir essa vontade, segundo a Palavra de Deus. A sugestão de Satanás era: «Se tu és o Filho de Deus, manda»; mas Ele tinha tomado o lugar de servo, e o servo não manda — obedecei Satanás procurou afastar o Senhor do lugar de obediência e serviço perfeitos, do lugar de servo.
E note-se aqui a importância que a Escritura tem, e observe-se também o caráter da obediência de Cristo. Para esta obediência, a vontade de Deus não era simplesmente uma regra, era o único motivo de ação. A nossa vontade é frequentemente detida pela Palavra de Deus, mas não era assim com Cristo. A vontade de Seu Pai era o Seu motivo.
Cristo agia não meramente segando a vontade de Deus, mas sim porque era a vontade de Deus. Gastamos de ver uma criança que, correndo para qualquer coisa de que ela gosta, se detém e faz alegremente a vontade de seus pais, quando for chamada. Mas Cristo nunca obedeceu deste modo, nunca procurou fazer a Sua própria vontade, mas sim a de Seu Pai. E nós somos santificados para a obediência de Cristo.
Note-se ainda que a Escritura era aquilo de que Ele vivia e que O fazia vencedor. Tudo aqui dependia da vitória de Cristo, como tudo dependeu da queda de Adão. Mas para Cristo bastava uma palavra, naturalmente será empregada.
Não procurava outra coisa que não fosse a obediência. E era o bastante para Satanás, pois nada tinha a dizer. Os seus ardis são assim frustrados.
O primeiro princípio do triunfo é a obediência simples e absoluta, que vive de toda a palavra que sai da boca de Deus. O segundo é a perfeita confiança no caminho da obediência.
Em segundo lugar, o Inimigo coloca Jesus no pináculo do templo, para O induzir a aplicar a Si mesmo as promessas feitas ao Messias, sem se manter nos caminhos de Deus.
O homem fiel deve certamente contar com o auxílio de Deus, enquanto andar nos Seus caminhos. O Inimigo quer levar o Filho do homem a experimentar a Deus (em vez de contar com Ele, andando nos Seus caminhos) a fim de ver se podia confiar n'Ele. Isso teria sido uma falta de confiança em Deus, e não obediência; ou presunção, arrogando-Se os seus privilégios, em vez de contar com Deus em obediência (1). Tomando o Seu lugar cora Israel, na condição em que ele se encontrava sem rei aio país, e mencionando as instruções que Lhe eram dadas nesse Livro para o guiar no caminho de Deus, Jesus emprega, para Sua própria orientação, aquela parte da Palavra que contém o mandamento divino a tal respeito: «Não tentarás o Senhor teu Deus»; passagem muitas vezes mencionada como se proibisse o excesso de confiança em Deus; ao passo que ela significa que não é preciso desconfiar, mas verificar se Ele é fiel. Os Israelitas tentavam a Deus no deserto, dizendo: «Está Deus entre nós?». E eis o que Satanás pretendia obter do Senhor.
(1) Temos necessidade de confiança para termos a coragem de obedecer; mas a verdadeira confiança encontra-se no caminho da obediência. Satanás pode servir-se da Palavra de Deus cora astúcia, toas não pode desviar dela a Cristo, o Senhor. Cristo podo ainda empregá-la como arma divina suficiente — e Satanás não tem réplica.
Interdizer a obediência teria sido revelar-se verdadeiro Satanás.
Quanto ao lugar em que o Senhor Se encontrava, podemos notar que todas as Suas citações são sempre segundo Deuteronômio.
Não conseguindo enganar este coração obediente, nem mesmo ocultando-se sob o emprego da Palavra de Deus, o Inimigo mostra-se no seu verdadeiro caráter, tentando o Senhor pela terceira vez, para que Ele Se poupasse a Si mesmo a todos os sofrimentos que O aguardavam, mostrando-Lhe a herança do Filho do homem na Terra, que seria Sua quando a tivesse alcançado através de todos esses caminhos difíceis, mas necessários para a glória do Pai, e que o Pai tinha delineado para Ele. Tudo seria agora Seu se, adorando-o, reconhecesse Satanás, o deus deste século. Isto era, com efeito, o que os reis da Terra tinham feito apenas por uma pequena parte dessas coisas — e quantas vezes apenas por uma vaidade fútil! — mas Ele, Ele tê-las-ia todas.
Mas se Jesus devia herdar a glória terrestre (assim como toda a outra glória), o alvo do Seu coração era Deus mesmo f Seu Pai, para O glorificar. Qualquer que fosse o preço do dom, era como dom do Doador que o Seu coração o apreciava Além disso Ele estava na posição de um homem experimentado e de um fiel Israelita; e fosse qual fosse a prova da paciência em que o pecado do povo O tivesse colocado, por maior que fosse a prova, Ele não serviria ninguém senão o Seu Deus.
Mas se o Diabo leva a tentação, o pecado, até ao fim e se revela como sendo o Adversário (Satanás), o fiel tem o direito de o afastar. Se vem como tentador, o fiel deve responder-lhe com a fidelidade da Palavra de Deus, a qual é o perfeito guia do homem, segundo a vontade de Deus.
Não precisa de compreender tudo. A Palavra é a Palavra d'Aquele que faz todas as coisas, e, seguindo-a, andamos segundo a sabedoria que conhece todas as coisas, e num caminho formado por essa sabedoria e que, portanto, implica uma confiança absoluta em Deus.
As duas primeiras tentações eram ardis do Diabo; a terceira constituía urna aberta hostilidade contra Deus. E se ele vem abertamente como adversário de Deus, o fiel tem o direito de não querer tratar com ele.
«Resisti ao diabo, e ele fugirá de vós» (Tiago 4:7). Então ele sabe que se encontrou com Cristo — e não com a carne. Possam os crentes resistir, se Satanás procurar tentá-los por meio da Palavra de Deus, sabendo que o domínio de Satanás está no homem caído.
À salvaguarda do crente, moral e espiritualmente (quer dizer, quanto ao estado do seu coração), é a simplicidade da fé. Se buscarmos a glória de Deus sem outro motivo que não seja o nosso engrandecimento ou a nossa própria satisfação, quer do corpo quer da mente, a nossa fé não permanecerá. Demonstra-se pela Palavra de Deus, que guia a fé simples, como isso é contrário ao pensamento de Deus.
Não é a arrogância, que rejeita a tentação, como se isso fosse bom; é a obediência que dá humildemente a Deus o Seu lugar, e, por conseguinte, também à Sua Palavra. «Pela palavra dos teus lábios me guardei das veredas do destruidor» (Salmo 17:4), daquele que fez a sua própria vontade e dela fazia o seu guia. Se o coração buscar somente a Deus, o mais astucioso ardil é descoberto, porque o Inimigo nunca nos tenta para buscarmos somente a Deus.
Mas isso implica um coração puro, e não egoísmo. É o que foi mostrado em Jesus.
A nossa salvaguarda contra a tentação é a Palavra de Deus, quando usada com o discernimento de um coração perfeitamente puro, que vive na presença de Deus e aprende a conhecer os Seus pensamentos na Sua Palavra (1), e sabe, portanto, aplicá-la às circunstâncias presentes. E a Palavra de Deus que guarda a alma das ciladas do Inimigo.
(1) Não deve haver outro motivo de ação além da vontade de Deus, que o homem deve procurar sempre na Sua Palavra. Quando Satanás não impele a agir, como faz sempre, por qualquer outro motivo, vemos que este é sempre oposto à Palavra de Deus, que está no coração, e ao motivo que o governa; é, por conseguinte, Julgado como sendo-lhe contrário. Está escrito: «Escondi a tua palavra no meu coração, para cu não pecar contra ti».
Por esta razão, quando estivermos na incerteza, devemos averiguar qual o motivo por que somos influenciados.
Note-se também, por consequência, que é no espírito de simples e humilde obediência que consiste o poder; porque, onde esse poder existe, Satanás nada pode fazer. Deus está lá e, desse modo, o Inimigo é vencido. Parece-me que estas três tentações são dirigidas contra o Senhor sob os três caracteres: do homem, do Messias e do Filho do homem.
Não havia nele desejos pecaminosos, como no homem pecador, ruas tinha fome. O tentador quis persuadi-Lo a satisfazer essa necessidade sem Deus. As promessas dos Salmos pertenciam-Lhe como havendo sido feitas ao Messias. E todos os reinos do mundo Lhe pertenciam como Filho do homem.
Jesus responde sempre como um Israelita fiel, pessoalmente responsável perante Deus, citando o Livro de Deuteronômio que ti ata deste assunto -ou seja, da obediência de Israel tendo em vista a posse da terra e dos privilégios que lhe pertenciam em ligação com essa obediência, e fora da organização que os constituía um corpo perante Deus (1).
(1) Um exame atento do Pentateuco mostrar-nos-á que, embora os fatos históricos necessários estejam estabelecidos, o conteúdo de Levítico e de Números são essencialmente típicos. O tabernáculo era feito segundo O modelo mostrado no monte — modelo das coisas celestes; não só as ordenanças cerimoniais, mas também os fatos históricos, como o apóstolo claramente o estabelece, lhes vieram como tipos e foram escritos para nossa instrução.
O Livro de Deuteronômio dá indicações para o comportamento deles no país. Os três livros mencionados, mesmo onde contêm fatos históricos, são típicos no seu objeto. Não sei se algum sacrifício foi oferecido após a sua instituição, a menos que não tenham sido sacrifícios oficiais. (Ver Atos 7:42).
Satanás afasta-se de Jesus, e os anjos vêm exercer o seu ministério em favor do Messias, o Filho do homem vitorioso peia obediência. Ele respondeu plenamente àquilo em que Satanás teria querido levá-Lo a provar Deus. Os anjos são para nós também espíritos administradores.
Mas como é profundamente interessante ver o nosso bendito Senhor, o Filho de Deus — o Verbo feito carne — tomar o Seu lugar entre os humildes crentes na Terra; depois, tendo tomado esse lugar, reconhecido pelo Pai como Seu Filho, estando os céus abertos, e abertos sobre Ele como homem, e o Espírito Santo descer e repousar sobre Ele como homem, embora sem medida, vê-Lo formar o modelo da nossa posição, embora ainda não estivéssemos nele; toda a Trindade divina, como já disse, plenamente revelada quando Ele Se associou deste modo com o homem; e então, quando nós éramos escravos de Satanás, partiu nesse caráter e nessa relação para enfrentar Satanás por nós, a fim de manietar o homem forte e dar por Si mesmo esse lugar também ao homem; mas quanto a nós a redenção era necessária para nos levar aonde Ele está.
Havendo João sido lançado na prisão, o Senhor parte para a Galileia.
Este movimento, que colocava a cena do Seu ministério fora de Jerusalém e da Judeia, tinha um grande significado a respeito dos Judeus. O povo, concentrado em Jerusalém e vangloriando-se de possuir as promessas, os sacrifícios, o templo, e de ser a tribo real, perdia a presença do Messias, Filho de Davi. Jesus, para manifestação da Sua Pessoa, para o testemunho da intervenção de Deus em Israel, dirige-se aos pobres e desprezados do rebanho; porque o Remanescente e os pobres do rebanho encontram-se já, nos capítulos 3 e 4, claramente distinguidos dos chefes do povo. Deste modo tomou-Se o verdadeiro tronco, em vez de ser uma vara do que havia sido plantado noutro lugar, embora o efeito disto não tivesse ainda sido plenamente manifestado. Este momento corresponde ao capítulo 4 de João.
Podemos observar aqui que, no Evangelho segundo S. João, os Judeus são sempre distinguidos da multidão (1).
(1) Chamada «o povo» nos Evangelhos.
A Língua, ou antes, a pronúncia dos Galileus era inteiramente diferente da dos Judeus. Na Galileia não se faiava o Caldeu, Esta manifestação do Filho de Davi na Galileia era ao mesmo tempo o cumprimento de uma profecia de Isaías, cuja força é esta: Embora o cativeiro Promano fosse muito mais terrível do que a invasão dos Assírios, quando vieram contra a terra de Israel, havia, no entanto, uma circunstância que alterava todas as coisas, a saber, a presença do Messias, a verdadeira Luz na Terra.
Note-se que o Espírito de Deus omite aqui toda a história ele Jesus até ao começo do Seu ministério, depois da morte de João Batista. Dá a Jesus a Sua posição própria no meio de Israel — Emanuel, o Filho de Davi, o amado de Deus, reconhecido como Seu Filho, o único fiel em Israel, embora sujeito a todas as tentações de Satanás; e em seguida vem a Sua posição profética, anunciada por Isaías, e o reino é proclamado como estando à porta (2).
(2) É deveras surpreendente que todo o ministério do Senhor seja descrito num simples verso (capitulo 4:23). Tudo o que vem depois são fatos de importância moral particular, mostrando o que só passava ao meio do povo em graça, até à Sua rejeição. Não é uma história consecutiva propriamente dita. E isto marca mui distintamente o caráter do Evangelho segundo S. Mateus.
Então o Senhor junta em redor de Si aqueles que deviam definitivamente segui-Lo no Seu ministério e tentações; e, à Sua chamada, abandonando tudo, ligar a sua sorte e a sua porção com a sorte e a porção do Senhor.
O homem forte foi amarrado de sorte que Jesus podia pilhar os seus bens e anunciar o reino com as provas daquele poder que era capaz de o estabelecer.
CAPÍTULOS 5-7
Duas coisas são então postas em evidência na narrativa do Evangelho.
A primeira é o poder que acompanha a proclamação do reino, fato anunciado em dois ou três versos (1), sem qualquer outro pormenor. 0 reino é proclamado com atos de poder que chamam a atenção de todo o país, de todo o t em tório do antigo Israel. Jesus aparece diante deles investido desse poder.
Segunda (capítulos 5 a 7), é o caráter do reino, anunciado no sermão da montanha, assim como o caráter das pessoas que deverão ter parte nele (sendo revelado ao mesmo tempo o nome do Pai).
(1) Podemos notar aqui, com já fizemos- anteriormente, que Ele deixa os Judeus e Jerusalém, e o Seu lugar natural, por assim dizer, que Lhe dava o Seu nome — Nazaré — e toma o Seu lugar profético. A prisão de Jacó era o sinal da Sua própria rejeição. João era também ali o Seu precursor, como, na sua missão, o tinha sido do Senhor (ver capítulo 17:2). O testemunho de Jesus c o mesmo que o de João Batista.
Quer dizer, o Senhor tinha anunciado a vinda do reino, e, com o atual poder de bondade, tinha vencido o adversário; mostra então quais eram as verdadeiras características segundo as quais o reino seria estabelecido, quem entraria nele, e como. Não se fala aqui de redenção, mas sim do caráter e da natureza do reino, e de quem nele poderia entrar. Isto mostra claramente a posição moral que este sermão ocupa no ensino do Senhor.
É evidente que, em toda esta parte do Evangelho, o assunto do ensino do Espírito Santo é a posição do Senhor, e não os pormenores da Sua vida. Os pormenores vêm depois para mostrar plenamente o que Ele era no meio de Israel, as Suas relações com o povo e a Sua carreira no poder do Espírito que conduziu à rotura entre o Filho de Davi ô o povo que deveria tê-Lo recebido. Despertada deste modo a atenção de todo o País pelos Seus atos de poder, o Senhor põe diante dos discípulos — mas aos ouvidos do povo—os princípios do Seu reino.
Podemos distinguir neste discurso as seguintes partes (1): (1) A divisão que damos pode ajudar de maneira prática à aplicação do sermão da montanha. Quanto aos assuntos que este discurso encerra, poder-se-ia, talvez, embora a diferença não seja muito grande, dividi-lo ainda melhor assim: O capítulo 5:1-16 contém o quadro completo do caráter e da posição do Remanescente, que recebe as instruções do Senhor, a posição desse Remanescente tal como ela d o í a ser segundo os propósitos de Deus. Isto é completo em Si.
Os versos 17-48 do capítulo 5 estabelecem a autoridade da lei que deveria ter regulado o comportamento do fiel até à introdução do reino, lei que eles deveriam ter cumprido, assim como as palavras dos profetas, a fim de que eles (o Remanescente) fossem colocados sobre esse novo campo; todo aquele que fosse culpado do desprezo dessa lei seria excluído do reino.
Mas, estabelecendo assim a autoridade da lei, retoma os dois grandes elementos do mal, tratados somente nos atos exteriores da lei, violência e corrupção, e julga o mal no coração (capítulo 5, versos 22 e 28); é preciso, custe o que custar, que o homem se livre do mal e de toda a ocasião de o fazer, mostrando assim como deveria ser o comportamento dos Seus discípulos e o estado da sua alma — o que deveria caracterizá-los sob esse aspecto.
O Senhor considera então certas coisas toleradas por Deus em Israel e ordenadas segundo o que Ele podia suportar. Traz em seguida, à luz de uma verdadeira avaliação moral, o divórcio — sendo o casamento a divinamente estabelecida de todas as relações humanas — é os juramentos ou voto»; a ação da vontade do homem em relação com Deus, depois o suporte do mal e a plenitude da graça, quer dizer, o seu caráter abençoado que trazia com ele o título moral do Que era o seu expressivo lugar — filhos do Pai que estava nos Céus.
Em lugar de enfraquecer o que Deus exigia, sob a lei. Ele queria não só que se observasse a lei até ao seu cumprimento, mas também que os Seus discípulo? fossem perfeitos como perfeito é o Pai que está nos céus.
Isto Junta à revelação do Pai o comportamento moral e o estado espiritual que convinha ao caráter dos filhas, tal como era revelado em Cristo.
No capítulo 6, temos os motivos, o alvo, que devem governar o coração fazendo o bem, levando uma vida espiritualmente sã. Os olhos dos discípulos deviam estar postos no Pai. Isto é individual.
O capítulo 7 ocupa-se essencialmente do que convém aos discípulos de Jesus quanto às suas relações cora os outros — não julgar os seus irmãos e ter cuidado com os profanos (versos 1-6). Em seguida o Senhor exorta os Seus a confiarem no Pai, pedindo que o que lhes fizer falta; ensina-lhes a agir para com os outros segundo essa mesma graça que gostaríamos de ver posta em prática para conosco mesmo.
Isto é fundado no conhecimento da bondade do Pai (versos 7-12).
Enfim, o Senhor exorta os Seus à energia que os fará entrar pela poria estreita e tomar, custe o que custar, o caminho de Deus (porque muitos gostariam de entrar no reino, mas não por essa porta).
Adverte-os a respeito daqueles que haviam de procurar enganá-los, pretendendo possuir a Palavra de Deus. Não é só o nosso próprio coração, e o mal propriamente dito, que são de temer quando se trata de seguir o Senhor, mas também as ciladas e os agentes do Inimigo.
Mas estes revelar-se-ão pelos seus próprios frutos.
O caráter e a posição daqueles que estarão no reino (capítulo 5:1-12).
A sua posição no mundo (capítulo 5:13-16).
Às relações dos princípios do reino com a lei (capítulo 5:17-48) (1).
(1) É no entanto, importante notar que não há espiritualização da lei como frequentemente se pretende. Trata-se de dois grandes princípios de imoralidade entre os homens (violência e má cobiça), aos quais se juntam os juramentos voluntários. Há nisto um contraste entre as exigências da lei é o que Cristo requeria.
O espírito em que os discípulos de Jesus devem fazer as boas obras (capítulo 6:18).
A separação do espírito do mundo e dos seus anseios (capítulo 6:19-34).
O espírito das relações dos discípulos com os outros homens (capítulo 7:1-6).
À confiança em Deus que lhes convinha (capítulo 7:7-12).
A energia que deve caracterizá-los para entrarem no reino; não meramente para ali entrar — muitos procurariam fazê-lo — mas para entrarem segundo aqueles princípios que tornam a entrada difícil ao homem, para ali entrarem segundo os princípios de Deus —pela porta estreita; mas também os meios para discernirem aqueles que procurarão enganá-los, bem como a vigilância necessária para não se deixarem enganar (capítulo 7:13-23).
Finalmente, obediência verdadeira e prática às palavras do Senhor, a verdadeira sabedoria dos que escutam as Suas palavras (capítulo 7:24-29).
Existe outro princípio que caracteriza este discurso: é a introdução do nome do Pai. Jesus coloca os Seus discípulos em relação com Seu Pai, como sendo o Pai deles; revela-lhes o nome do Pai, para que eles estejam em relação com Ele, e para que possam atuar segundo o que Ele é.
Este discurso apresenta os princípios do reino, mas supõe a rejeição do Rei; apresenta a posição em que essa rejeição conduziria aqueles que são Seus e que devem esperar um galardão celestial. Deviam ser um aroma divino em que Deus era conhecido e atuava, e seriam um espetáculo para o mundo inteiro. Era este, aliás, o objetivo de Deus. O seu testemunho devia ser tão claro que o mundo teria de atribuir as suas obras ao Pai. Deviam agir, por um lado, no tocante ao mal que atingia o coração e os motivos; e, por outro lado, segundo o caráter do Pai em graça, confiarem-se à aprovação do Pai, que vê em tudo o que é secreto, em tudo onde o olhar do homem não pode penetrar.
Deviam ter absoluta confiança n'Ele para todas as suas necessidades.
A Sua vontade era a regra mediante a qual se entra no reino.
Podemos ver como este discurso está relacionado com a proclamação do reino como estando próximo; e que todos estes princípios de conduta são dados como características do reino e como condições para entrada nele. Sem dúvida, resulta daí que eles convêm àqueles que ali entraram. Mas o discurso é pronunciado no meio de Israel (1), antes de o reino ser estabelecido, e como estado prévio para nele entrai e para estabelecer os princípios fundamentais do reino em relação com esse povo, e em contraste moral com a ideia que Israel dele tinha feito.
(1) É preciso lembrar sempre que, enquanto Israel tem, de maneira dispensacional, uma grande importância como centro do governo de Deus neste mundo, era moralmente no homem que iodos os caminhos e todas as relações de Deus tinham sido desenvolvidos, de maneira a revelar o que o homem era. O Gentio era o homem entregue a si próprio, quanto aos caminhos especiais de Deus e, por isso, não era manifestado. Cristo era uma luz (eis apocalupstn ethnôn) que revelava os Gentios.
Examinando as bem-aventuranças, descobriremos que esta parte do discurso nos dá em geral o caráter do próprio Cristo. Estas bemaventuranças supõem duas coisas: a posse futura da terra de Israel pelos simples; e a perseguição do Remanescente fiel, verdadeiramente justo em seus caminhos e que afirmava os direitos do verdadeiro Rei (o Céu foi apresentado a esse Remanescente como esperança para manter o seu coração) (1).
(1) É preciso notar, embora de passagem, os caracteres que sua verdadeiramente abençoados. Eles supõem o mal no mundo o no meio do povo de Deus, Primeiramente não procura grandes coisas para si mesmo, aceitando um lugar inferior, desprezado, no meio de uma cena contrária a Deus, Eis porque são caracterizados pelas aflições e pela complacência, por uma vontade que não se eleva contra Deus ou que não defende a sua posição ou os ssii5 direitos. Sente-se então o desejo de um bem positivo, porque não o possuímos ainda; estar dele faminto e sequioso tais são quer o estado inferior quer a atividade do espirito. Manifesta-se então a graça para com os outros, do mesmo modo como a pureza do coração e a ausência de tudo o que poderia excluir a Deus c aquilo que Lhe está sempre ligado; a paz e tudo o que a procura. Creio que é nesses versos uma progressão moral, um conduzindo sempre ao outro, como sendo um o efeito do outro. Nos dois últimos vemos as consequências da manutenção de uma boa consciência e da relação com Cristo num mundo de pecado. Há, como em 1 de Pedro, dois princípios de sofrimento: Pela Justiça e por amor de Cristo.
Esta será, com efeito, a posição do Remanescente nos últimos dias antes da introdução do reino. Moralmente, era assim em relação com Israel no tempo dos discípulos do Senhor, estando suspensa a parte terrestre do reino. Em vista do Céu, os discípulos são considerados como testemunhas em Israel; mas—embora fossem o único meio de preservar a Terra — eram um testemunho para o mundo.
De modo que os discípulos são encarados em relação com Israel, mas, ao mesmo tempo, como testemunhas da parte e Deus no mundo (o reino estava à vista, mas ainda não estava estabelecido). A relação com os últimos dias é evidente; contudo o testemunho dos discípulos tinha então moralmente este caráter. Somente o estabelecimento do reino terrestre foi suspenso, e a Igreja, que é celeste, foi introduzida. O capítulo 5:25 faz evidentemente alusão à posição de Israel no tempo de Cristo. De fato Israel fica cativo, em prisão, até que tenha recebido o seu pleno castigo; depois será libertado.
O Senhor fala e atua sempre como homem obediente, movido e guiado pelo Espírito Santo; Mas vê-se, da maneira mais notável, neste Evangelho, quem é Aquele que assim atua; é o que dá ao reino dos Céus o seu verdadeiro caráter moral. João Batista podia anunciá-lo como uma mudança de dispensação, mas o seu ministério era terrestre.
Cristo podia igualmente anunciar esta mesma verdade (e essa mudança de dispensação era importantíssima), mas havia n'Ele algo mais do que isso. Ele era do Céu, o Senhor que vinha do Céu. Falando do reino dos céus, falava do profundo e divino sentimento do Seu coração. Ninguém havia estado no Céu, senão Aquele que do Céu havia descido, o Filho do homem, que estava no Céu (João 3:13).
Portanto, falando do Céu, Jesus dizia o que sabia e dava testemunho do que tinha visto. Esta verdade, como é apresentada no Evangelho segundo S. Mateus, reaii2a-se de duas maneiras.
Já não se tratava de um governo terrestre, segundo a lei; Jeová, o Salvador, Emanuel, estava presente. Poderia ser diferente no Seu caráter celestial, no espírito, nos princípios essenciais de toda a Sua vida? Além disso, quando Cristo começou o Seu ministério público e foi ungido com o Espírito Santo, o Céu abriu-se sobre Si. Foi identificado com o Céu como homem selado com o Espírito Santo na Terra.
Assim, Ele era a expressão contínua do espírito, da realidade do 'Céu.
Não existia ainda o exercício do poder judicial que manteria este caráter aos olhos de todos os que se lhe opunham. Era a manifestação desse caráter em paciência, não obstante a oposição de todos em redor d'Ele e da incapacidade dos Seus discípulos para O compreenderem.
Por isso encontramos no sermão da montanha a descrição do que convém ao reino do Céu, e até mesmo da certeza do galardão para aqueles que sofrerem na Terra por amor do Seu nome. Esta descrição, como vimos, é essencialmente do caráter do próprio Cristo... E assim que um coração celestial se exprime sobre a Terra. Se o Senhor ensinava estas coisas, é porque as amava, porque as encarnava e nelas se deleitava. Sendo o Deus do Céu, cheio, como homem, do Espírito Santo, sem medida, o Seu coração estava perfeitamente em harmonia com um céu que Ele conhecia perfeitamente. Por conseguinte, concretiza o caráter que os Seus discípulos deviam assumir com estas palavras: «Sede vós, pois, perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus». Todo o seu comportamento devia, pois, estar em relação com o Pai celeste (ver 5:48).
Quanto mais compreendemos a glória divina de Jesus e a maneira como Ele estava em relação com o Céu como homem, tanto mais entendemos o que era para Jesus o reino dos céus, sob o ponto de vista do que convinha a esse reino. Quando esse reino for estabelecido mais tarde cm poder, o mundo será governado segundo esses princípios, embora não sejam, propriamente falando, princípios do mundo.
O Remanescente dos últimos dias, estou certo, vendo que tudo ao redor de si é contrário à fidelidade, e notando que toda a esperança Judaica se desvanece aos seus olhos, será forçado a olhar para cima, e cultivará mais e mais este caráter, que, se não é celestial,6t pelo menos, muito semelhante a Cristo (1).
(1) Aqueles que sofreram e morreram, subirão ao céu como testemunham Mateus 5:12 e Apocalipse, Os outros, tomados semelhantes a Cristo, estarão com Ele no Monte Sião; aprenderão o cântico cantado no Céu e acompanharão o Cordeiro para qualquer parte que Ele vá (neste mundo).
Poderemos ainda fazer notar aqui que nas bem-aventuranças promessa da Terra é feita aos mansos (capítulo 5:5), e cumprir-se-á à letra nos últimos dias. No verso 12 do mesmo capítulo há a promessa de uma recompensa nos céus para aqueles que sofrerem por Cristo, promessa verdadeira para nós Aflora, e verdadeira de qualquer modo para aqueles que forem mortos por amor de Jesus nos últimos dias, que terão o seu lugar no Céu, muito embora tenham feito parte do Remanescente Judeu e não da Igreja. Encontra-se o mesmo tema cm Daniel 7; simplesmente, é preciso notar que são os tempos e a lei — e não os santos — que são entregues nas mãos da Besta.
Há duas coisas que se ligam à presença das multidões, no verso 1.
Primeira, o momento exigia que o Senhor desse uma verdadeira ideia do caráter do Seu reino, visto que já atraía após Si a multidão.
Fazendo-se sentir o seu poder, importava tornar conhecido o seu caráter. Por outro lado, essa multidão que seguia a Jesus representava uma armadilha para os Seus discípulos; e o Senhor faz-lhes compreender o perfeito contraste que existia entre o efeito que essa multidão podia produzir sobre eles, e o verdadeiro espírito que devia governa-os. Assim, cheio Ele próprio do que era realmente bom e apresenta imediatamente o que enchia o Seu próprio coração. Este era o verdadeiro caráter do Remanescente, que, em geral, se assemelhava a Cristo nisso. É muitas vezes assim nos Salmos.
O sal da Terra é algo muito diferente da luz do mundo.
A terra, creio, representa aqui o que já fazia profissão de ter recebido a luz da parte de Deus — o que estava em relação com Ele em virtude dessa luz — tendo revestido perante Ele uma forma definida. Os discípulos de Cristo eram o princípio de preservação na Terra. Eram a luz do mundo, que não possuía essa luz. Esta era a posição deles, quer quisessem quer não. Era o propósito de Deus que eles fossem a luz do mundo, e não se acende uma luz para a esconder.
Tudo isto supõe a possibilidade do estabelecimento do reino neste mundo, se a maioria dos homens a ele se não opusesse. Não se trata da questão da redenção do pecador, mas da realização do caráter que era próprio a um lugar no reino de Deus; lugar que o pecador devia procurar enquanto se encontrava no caminho com a sua parte adversa, para não ser entregue ao juiz — o que, na realidade, aconteceu ao Judeu.
Ao mesmo tempo, os discípulos são colocados individualmente em relação com o Pai—o segundo grande princípio do discurso, como consequência da presença do Filho —e Jesus apresenta-lhes algo mais excelente do que a sua posição de testemunho do reino. Deviam atuar em graça, do mesmo modo como o Pai agia, e deviam orar por uma ordem de coisas em que tudo correspondesse moralmente ao caráter e a vontade do Pai. «Santificado seja o teu nome; venha o teu reino» (1); quer dizer que tudo corresponda ao caráter do Pai, a fim de que tudo seja o efeito do Seu poder. «Seja feita a tua vontade, assim na terra como no céu»; é a perfeita obediência (capítulo 6:9-30). A sujeição universal a Deus no céu e na terra será, até certo ponto, conseguida pela intervenção de Cristo no milénio; e absolutamente realizada quando Deus for tudo em todos.
(1) Quer dizer, o do Pai. Comparar Mateus 13:43.
Entretanto a oração exprime a dependência diária, a necessidade de perdão, a necessidade de se ser guardado do poder do inimigo, o desejo de se não ser por ele joeirado, como ato disciplinar de Deus, como no caso de Jó ou de Pedro, e de se ser guardado do mal.
É ainda uma oração em relação com a posição do Remanescente; ultrapassa a dispensação do Espírito, e até mesmo o que é próprio do milénio como reino terrestre, a fim de exprimir os justos desejos do Remanescente, e falai" do seu estado e dos seus perigos, até que venha o reino do Pai. Muitos destes princípios são sempre verdadeiros, porque estamos no reino, e devemos manifestar em espírito os seus sinais; mas a aplicação especial e literal desta passagem é mesmo aquela que acabo de dar. Os discípulos são postos em relação com o Pai na realização do Seu caráter, que devia manifestar-se neles em virtude dessa relação, promovendo neles o desejo do estabelecimento do Seu reino e ultrapassarem as dificuldades dum mundo inimigo, guardando-se das ciladas do "Diabo, e cumprindo a vontade do Pai.
Jesus concedia-lhes tudo isso.
Assim Jesus passa da lei (1), reconhecida como vindo de Deus, ao cumprimento dessa lei, quando ela for, por assim dizer, absorvida na vontade d'Aquele que a deu, ou cumprida nos seus propósitos por Aquele que somente Ele podia fazê-lo fosse em que sentido fosse.
(1) A lei é a regra perfeita para um filho de Adão, a regra ou a medida do que ele deve ser, mas não da manifestação de Deus em graça, como o era Jesus Cristo, que é o nosso modelo nisso—é um justo convite a amar a Deus e a andar no cumprimento do dever em relação com Ele, mas não uma imitação de Deus, andando no amor, como Cristo nos amou e Se entregou a Si mesmo por nós.
CAPÍTULO 8
Aqui, o Senhor começa no meio de Israel a Sua paciente vida de testemunho, que findou com a Sua rejeição pelo povo que Deus havia preservado durante longo tempo para Si, e para sua própria benção.
O Senhor tinha anunciado o reino, posto em evidência em todo o país o Seu poder, declarado o Seu caráter, bem como o espírito dos que deviam entrar no reino. Mas os Seus milagres (1) bem como todo o Evangelho, são sempre caracterizados pela Sua posição entre os Judeus e os desígnios de Deus com eles, até ser rejeitado. Ele é Jeová, mas é homem obediente à lei, deixando antever a entrada dos Gentios no reino (o seu estabelecimento em mistério no mundo), predizendo a edificação da Igreja ou Assembleia sobre o reconhecimento de ser o Filho do Deus vivo, e o reino em glória; e, ao mesmo tempo que revela como efeito da Sua presença a perversão do povo (2) leva sobre o Seu coração, com perfeita paciência, o fardo de Israel. É Jeová, presente em bondade, aparentemente um deles mesmo: espantosa verdade!
(1) Os milagres de Cristo tinham um caráter particular. Não se tratava apenas de atos de poder, mas sim de atos do poder de Deus, visitando este mundo em bondade. Este poder tinha sido frequentemente manifestado, sobretudo a partir de Moises, mas não raro em Julgamento. Todos os milagres de Cristo livravam os homens das funestas consequências que o pecado tinha trazido. Houve apenas uma exceção, a maldição da figueira, mas ela representava unia sentença judicial contra Israel, isto é, contra o homem sob a antiga aliança, quando tinha uma bela aparência, mas não dava fruto.
(2) Acrescento aqui algumas notas manuscritas, tomadas ao reler o Evangelho segundo S. Mateus, depois de preparado este estudo. Elas lançarão, penso eu, luz sobre a estrutura desse Evangelho. Os capítulos 5 a 7 indicam o caráter requerido para entrar no reino, caráter que devia marcar o Remanescente reconhecido, estando Jeová então em caminho com a nação, para o Julgamento. Os capítulos 8 e 9 mostram o outro lado da questão: a graça e a "bondade introduzidas, Deus manifestado, o Seu caráter e os Seus atos — essa coisa nova que não podia meter-se entre as velhas; e ainda a bondade em poder, mas rejeitada, o Filho do homem (não o Messias) nos tendo onde repousar a cabeça. O capítulo 8 apresenta a intervenção atual de Deus, em bondade temporal com poder. Este capítulo ultrapassara Israel por causa da bondade que atuava em graça a respeito do que era excluído do campo de Deus em Israel.
Compreende o poder de Deus acima de todo o poder de Satanás, das enfermidades e dos elementos, e isto por Cristo, tomando o fardo sobre Si próprio, mas numa rejeição de que Ele tinha plena consciência. Os versos 17 a 20 do capitulo 8 levam-nos a Isaias 53:3-4, e um estado de coisas que exige que O sigamos plenamente, renunciando a tudo o mais. Isto conduz a este triste testemunho; Se o poder divino expulsa a Satanás, a presença divina, que assim se manifesta, é insuportável para o mundo. Os porcos representam Israel, O capítulo 9 mostra o lado religioso da presença do Senhor em graça, o perdão, e o testemunho de que Jeová eslava ali, segundo o Salmo 103, mas para chamar os pecadores — e não os justos. Eis, sobretudo, o que na» podia convir aos velhos odres... Finalmente, exceto a paciência em bondade, este capítulo põe praticamente fim à história.
Ele veio para salvar a vida de Israel. Quando Ele veio era, realmente, a morte! ... Somente, por toda a parte onde havia fé, no meio da multidão circunvizinha, havia curas. Os Fariseus mostram a blasfémia dos chefes, mas a paciência da graça subsisto ainda, desenvolvida para com Israel, no capítulo 10. No capítulo 11 todas as coisas foram achadas como não servindo para nada. O Filho revelava o Pai e isto permanece em nós e dá descanso.
O capítulo 12 desenvolve plenamente o Julgamento e a rejeição de Israel.
O capítulo 13 apresenta Cristo como um semeador, não procurando fruto na sua vinha; apresenta também a forma atual do reino dos Céus.
Em primeiro lugar encontramos a cura do leproso. Só Jeová, em Sua bondade soberana, podia curar a lepra; (veja-se Levítico 14). Aqui Jesus faz o mesmo. «Se quiseres», diz o leproso, «podes» «Quero», responde o Senhor (capítulo 8:2-3). Mas, ao mesmo tempo, enquanto manifesta em Sua própria Pessoa o que repele toda a possibilidade de contaminação — o que está acima do pecado—mostra a mais perfeita condescendência para com aquele que estava contaminado. Ele toca o leproso, dizendo: «Quero, sê limpo» (verso 3). Vemos a graça, o poder, a santidade incontaminável de Jeová, descendo na Pessoa de Jesus, à maior proximidade do pecador, tocando-o, por assim dizer.
Era, na verdade, «o Senhor que te cura» (Êxodo 15:26) (1). Ao mesmo tempo Jesus esconde-Se, e ordena ao homem, que acabava de ser curado, que vá mostrar-se ao sacerdote, em conformidade com as ordenanças da lei, e que fizesse a sua oferta.
(1) Aquele que tocasse num leproso tornava-se ele próprio impuro, mas o nosso adorado Salvador aproximou-Se mesmo assim do homem e limpou-o sem contudo contrair a impureza dele. O leproso conhecia o poder do Senhor, mas não estava seguro da sua bondade. O «Quero» manifesta-a, mas com o direito que só Deus tinha de dizei: «Quero».
Não sai da esfera do Judeu em sujeição à lei; mas Jeová estava ali em bondade.
Porém, no caso seguinte, encontramos (versos 5 e seguintes) um Gentio que, pela fé, desfruta o pleno efeito daquele poder que a sua fé atribui a Jesus, dando ao Senhor ocasião para revelar a verdade solene de que muitos destes pobres gentios virão e se assentarão no reino dos céus com os pais, honrados pelos Judeus como progenitores dos herdeiros da promessa, enquanto que os filhos do reino seriam lançados nas trevas exteriores. De fato, a fé do centurião reconhecia um poder divino em Jesus que, devido à glória d'Aquele que o possuía, não abandonaria Israel, mas abriria a porta aos Gentios e enxertaria na oliveira da promessa ramos da oliveira brava no lugar daqueles que seriam cortados. A forma como essas coisas se cumpririam na Assembleia não estava agora em questão.
Jesus não abandona ainda Israel. Entra em casa de Pedro e cura a sogra dele. E, passado o sábado, faz o mesmo a todos os enfermos que se juntam em redor da casa. Os enfermos são curados, os demónios expulsos, de modo que a profecia de Isaías tem o seu cumprimento: «Verdadeiramente Ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si» (Isaías 53:4), Jesus tomou de Sua livre vontade o peso de todas as dores que oprimiam Israel a fim de os aliviar e curar, li ainda Emanuel que sente a sua miséria e Se aflige com as aflições deles, mas que vem com esse poder que demonstra que Ele é capaz de os libertar.
Estes três casos de cura de que acabamos de falar mostram o caráter do Seu ministério de um modo claro e notável. Esconde-Se porque, até ao momento de mostrar o JUÍZO aos Gentios, não levanta a Sua voz nas praças públicas.
É a pomba que está sobre Ele. As demonstrações do Seu poder atraem a Si os homens; mas isso de modo nenhum O ilude, e nunca, em espírito, Se afasta do lugar que tomou. É desprezado e rejeitado pelos homens; não tem onde reclinar a cabeça. As raposas e as aves do céu têm mais lugar sobre a Terra do que Ele—Ele, a Quem vimos aparecer um momento antes como sendo o Senhor Deus, o Eterno, reconhecido ao menos pelos infelizes, a cujas necessidades Ele nunca deixou de responder. Portanto, se alguém O quer seguir, tem de deixar tudo para ser companheiro do Senhor, que não teria vindo à Terra se tudo tivesse estado em ordem; nem sem absoluto direito, embora fosse ao mesmo tempo com amor; que só podia ser manifestado pela Sua missão e as necessidades que O trouxeram.
O Senhor tinha de ser sobre a Terra ou tudo ou nada.
Isto devia ser, com efeito, sentido moralmente nos seus efeitos na graça que, agindo pela fé ligava o fiel com Ele por um inefável elo.
Sem isto o coração não poderia ter sido moralmente posto à prova.
Mas isto não era menos verdade, porquanto as provas estavam bem presentes: O vento e as ondas, aos quais, no parecer humano, Ele estava exposto, obedeciam à Sua voz — notável prova para a incredulidade que O tinha despertado do Seu sono, e havia suposto que era possível que as ondas O tragassem e com Ele os desígnios e o poder de Quem criou os ventos e as ondas! É claro que aquela tempestade foi permitida a fim de experimentar a fé deles e manifestar a dignidade da Sua Pessoa.
Se o Inimigo era o instrumento que a produziu, apenas conseguiu que o Senhor manifestasse a Sua glória. Tal é sempre o caso para Cristo e para nós, quando a fé existe.
Ora a realidade deste poder e o modo como ele operava são grandemente demonstrados pelo que se segue (versos 28 e seguintes).
O Senhor desembarca no país dos Gergesenos ou Gadarenos.
Ali o poder do Inimigo mostra-se em todos os seus horrores. Se o homem, para quem o Senhor tinha vindo em graça, não O conhecia, os demónios conheciam o seu Juiz na Pessoa do Filho de Deus. O homem estava possesso deles. O temor que eles tinham do tormento aquando do Juízo Final é aplicado no espírito do homem à presença imediata do Senhor: «Vieste aqui atormentar-nos antes de tempo?».
Os demónios atuam nos homens pelo terror do seu poder; não têm realmente nenhum, a não ser que sejam temidos. Mas semente a fé pode tirar este medo ao homem.
Não falo da concupiscência mediante a qual eles atuam, nem dos ardis do Inimigo, mas sim do seu poder. «Resisti ao Diabo e ele fugirá de vós». Aqui, os demónios desejam mostrar » realidade do seu poder, e o Senhor permite-o a fim de tornar bem claro que neste mundo não é meramente o homem que está em causa, quer seja bom ou mau, mas sim o que é mais forte do que o homem- Os demónios entram nos porcos e estes perecem nas águas. Existe realidade, plenamente demonstrada! Não se tratava nem de simples enfermidade nem de concupiscência pecaminosa, mas de demónios! Mas, graças a Deus, tratava-se também de Alguém que, embora homem na Terra, era mais poderoso do que eles. São obrigados a reconhecer esse poder e apelam para ele. Não existe a ideia de resistência. Na tentação do deserto Satanás fora vencido. Jesus liberta completamente o homem a quem eles haviam oprimido com o seu poder satânico. O poder dos demônios não era nada perante Ele. Podia ter libertado o mundo de todo o poder do Inimigo, se essa fosse a única questão, e de todos os males da Humanidade. O valente fora manietado e o Senhor dispunha do despojo. Mas a presença de Deus, de Jeová, perturba o mundo mesmo mais do que o poder do Inimigo que avilta e domina sobre a mente e o corpo.
O poder do Inimigo sobre o coração—tão pacífico, tão modesto e infelizmente tão pouco sentido — é mais poderoso do que a sua própria força. Este poder sucumbe ante a Palavra de Jesus, mas a vontade do homem aceita o mundo tal como ele é, governado pela influência de Satanás.
A cidade, que tinha visto a libertação do endemoninhado e o poder de Jesus entre eles, pede-Lhe que se retire.
Triste história, a deste mundo! O Senhor veio com poder para libertar o mundo — o homem — de todo o poder do Inimigo; mas o mundo não o quis. O homem estava moralmente afastado de Deus, e não apenas submetido à escravidão do Inimigo. Submetera-se ao seu jugo, habituara-se a ele, e não quis a presença de Deus.
Não duvido de que o que aconteceu aos porcos seja uma figura do que aconteceu aos Judeus ímpios e profanos que rejeitaram o Senhor Jesus. Nada mais impressionante do que a maneira como a Pessoa divina, Emanuel, embora homem em graça, é manifestado neste capítulo.
CAPÍTULO 9
Enquanto o Senhor atua segundo o caráter e o poder de Jeová, como lemos no Salmo 103: «E Ele que perdoa todas as tuas iniquidades, e sara todas as tuas enfermidades », é a graça atual para com Israel, e em que Ele veio, que é apresentada. Este capítulo apresenta o caráter do Seu ministério, assim como o antecedente mostra a dignidade da Sua Pessoa e o significado do que Ele era. O Senhor apresenta-Se a Israel como seu verdadeiro Redentor e Libertador; e, para demonstrar o Seu direito (ao qual a incredulidade se opunha) de ser assim em bênção para Israel e perdoar todas as suas iniquidades que levantavam uma barreira entre ele e seu Deus, Jesus cumpre a segunda parte do versículo e cura os enfermos (Salmo 103:3). Belo e precioso testemunho de bondade para com Israel, e, ao mesmo tempo, demonstração da Sua glória no meio do Seu povo! No mesmo espírito com que havia perdoado e curado, chama o publicano e entra em sua casa, porque Ele não tinha vindo chamar os justos, mas sim os pecadores.
Resta-nos agora examinar uma outra porção do ensinamento deste Evangelho: O progresso da oposição dos incrédulos, principalmente dos doutores e dos religiosos, e também da rejeição da obra e Pessoa do Senhor.
A ideia, o quadro do que teve lugar foi-nos já apresentado no caso do endemoninhado gadareno — o poder de Deus apresentado para completa libertação do Seu povo, do mundo, se o recebessem — poder que os demónios confessavam ser o mesmo que em breve os jugará e lançará fora, que se manifestava em bênção para todos os Gadarenos, mas que eles rejeitam, porque não queriam um tal poder entre eles. Não quiseram a presença de Deus.
Após isto começa o relato dos pormenores e do caráter dessa rejeição.
Note-se que o capítulo 8:1-27 nos mostra a manifestação do poder do Senhor, poder que é verdadeiramente o de Jeová sobre a Terra. Desde o verso 28 até ao fim deste capítulo a aceitação desse poder pelo mundo E a influência que ali reinava são-nos apresentadas, quer em poder quer moralmente, nos corações dos homens.
Chegamos, pois, ao desenvolvimento histórico da rejeição desta intervenção de Deus na Terra. A multidão glorificava a Deus que havia dado tal poder ao homem. Jesus aceita esta posição. Ele era homem; a multidão via-O como homem e reconhecia o poder de Deus, mas não sabia combinar as duas ideias na Pessoa de Jesus.
A graça, que rejeita as pretensões do homem à Justiça, é agora posta cm evidência.
Mateus, é chamado, porque Deus atenta para o coração, e a graça chama os vasos de eleição. O Senhor revela o pensamento de Deus a lei respeito, e a Sua própria missão. Veio para chamar os pecadores; teria, portanto, misericórdia. Era Deus agindo em graça, e não o homem com a sua suposta justiça, contando com os seus méritos (verso 13). 0 Senhor assinala (versos 14 e seguintes) duas razões que tornam impossível reconciliar a Sua carreira com as exigências dos Fariseus. Como poderiam os Seus discípulos jejuar, quando o Noivo estava presente? Logo que o Messias tivesse partido, eles teriam ocasião de o fazer.
Aliás, é impossível introduzir os novos princípios e a nova ordem da Sua missão nas antigas fórmulas farisaicas. Vemos assim a graça para com os pecadores, mas (sendo a graça rejeitada) vem agora uma prova mais elevada de que o Messias, Jeová, está ali, em graça.
Sendo solicitado para erguer uma menina do seu leito de morte, Jesus aceita a petição. Quando Se desloca, uma pobre mulher, que tinha já empregado todos os meios de cura ao seu alcance sem qualquer resultado positivo, é instantaneamente curada, tocando com fé a orla do Seu vestido.
Esta história oferece-nos dois importantes aspectos da graça que era manifestada em Jesus. Cristo veio para despertar Israel sucumbido.
Ele fará isso mais tarde, no pleno sentido da palavra. No entanto, todo aquele que se Lhe apegava pela fé, no meio das multidões que O acompanhavam, era curado, por mais desesperado que fosse o seu estado. E este fato, que teve lugar em Israel quando Jesus ali Se encontrava, é verdadeiro também a nosso respeito, pelo menos em princípio. A graça em Jesus é poder que cura e que ressuscita os mortos. Deste modo Ele abriu os olhos daqueles que, em Israel, O aceitaram como sendo o Filho de Davi, e creram no Seu poder para lhes valer nas suas necessidades. Ele expulsava também os demónios e restituía a fala aos mudos (versos 27 e seguintes). Ora Jesus tendo operado esses atos de poder em Israel de forma que o povo se maravilhava, os Fariseus, a seita mais religiosa da nação, atribuem esse poder ao príncipe dos demónios. Eis c efeito da presença do Senhor sobre os chefes do povo, invejosos da Sua glória assim manifestada no meio daqueles sobre os quais eles exerciam a sua influência.
Mas isto de modo nenhum impede Jesus de prosseguir a carreira da Sua beneficência. Ele pode ainda dar testemunho entre o povo. Não obstante a oposição dos Fariseus, a Sua paciente bondade ainda tem oportunidade de se manifestar. Continua a pregar e a curar. Tem compaixão do povo, que era como ovelhas sem pastor e moralmente entregues a si próprias. Vê ainda que a seara é grande, mas que os ceifeiros são poucos. Quer dizer, vê ainda todas as portas abertas para falar ao povo — e passa por cima da maldade dos Fariseus. Enquanto Deus Lhe dá acesso junto do povo, o Senhor continua o Seu trabalho de amor.
Vejamos o resumo do que encontramos neste capítulo, isto é, a graça manifestada em Israel. Em primeiro lugar a graça sarando e perdoando, de harmonia com o Salmo 103. Em seguida a graça vinda para chamar os pecadores, e não os justos; o esposo estava ali, e a graça, em poder, não podia ser posta nos odres Judaicos e Farisaicos.
Era algo de novo, até mesmo acerca de João Batista. O Senhor vem realmente para dar vida aos mortos, não para curar, mas todo aquele que toca em Si pela fé — porque havia quem o fizesse — -era curado desse modo, Como Filho de Davi, Ele abre os olhos aos cegos, para que vejam; e abre a boca aos mudos, possessos dos demónios, para que falem.
Mas tudo isto é rejeitado com blasfémia pelos orgulhosos Fariseus, que a si próprios se consideravam justos. Mas a graça vê a multidão ainda como ovelhas sem pastor-, e enquanto o porteiro mantém a porta aberta, Ele não cessa de buscar e de socorrer as ovelhas.
CAPÍTULO 10
No entanto, embora não procurasse a Sua própria glória, tinha consciência da iniquidade que governava o povo.
Depois de haver exortado os Seus discípulos a orarem para que obreiros fossem enviados para a seara, Jesus começa a atuar de conformidade com esse desejo. Chama os doze discípulos, comunicalhes o poder de expulsar os demónios e de curar os enfermos, e envia-os às ovelhas perdidas da Casa de Israel. Vemos, nesta missão, até que ponto os desígnios de Deus a respeito de Israel formam o tema deste Evangelho. Os discípulos deviam anunciar a esse povo, e exclusivamente a ele, que o reino estava próximo, exercendo ao mesmo tempo o poder que haviam recebido: notável testemunho prestado Àquele que era vindo e que não só podia operar milagres, mas também conferir poder aos outros para fazerem o mesmo. Deulhes autoridade sobre os espíritos imundos para esse fim. E isto o que caracteriza o reino: 0 homem curado de todo o mal, e o demónio expulso. É por isso que os milagres são chamados em Hebreus 6:5 «as virtudes do século futuro» (1).
(1) Porque então Satanás será amarrado, e o homem libertado pelo poder de Cristo. Havia então libertações parciais da mesma espécie.
Os discípulos deviam depender lambem, quanto às coisas necessárias para a sua manutenção, inteiramente de Aquele que os enviava.
Emanuel estava presente. Se os milagres eram uma prova para o mundo do poder do seu Mestre, o fato de nada lhes faltar devia sê-lo também para os seus próprios corações. A ordenança foi anulada para o período de tempo do seu ministério que se seguiu à partida de Jesus deste mundo (ver lc 22:35-37). Aquilo que Ele aqui (Mateus 10) ordena aos Seus discípulos diz respeito à Sua presença como Messias, como o próprio Jeová na Terra. Por isso a recepção dada aos Seus mensageiros, ou a sua rejeição, decide a sorte daqueles a quem eles eram enviados. Rejeitá-los era rejeitar o Senhor, Emanuel Deus com o Seu povo (1).
(1) O verso 15 estabelece uma divisão no discurso do Senhor. Até ali, trata-se da missão daquele momento. A partir do verso 16 temos reflexões mais gerais acerca da missão dos discípulos, vista no seu conjunto, no seio de Israel. Ê evidente que isso vai além dia missão deles de então, e supõe a vinda do Espírito Santo. A missão à qual a Igreja, como tal, é chamada, é muito diferente. Isto aplica-se somente a Israel. Era-lhes proibido irem para os Gentios; mas isso acabou necessariamente com a destruição de Jerusalém e a dispersão da nação judaica. Todavia, renovar-se-á no fim, até à vinda do Filho do homem. Havia, só para os Gentios, um testemunho colocado perante Israel como juiz. Tal era Paulo; e esta parte da sua história, mesmo até Roma, no Livro de Atos, passava-se no seio dos Judeus. A última parte, a partir do verso 16, tem menos a ver com o Evangelho do reino.
Com efeito, Jesus enviava os Seus discípulos como ovelhas para o meio de lobos.
Necessitavam da prudência das serpentes e deviam mostrar a simplicidade das pombas — raro conjunto de virtudes, encontrado somente naqueles que, pelo Espírito do Senhor, são sábios quanto ao bem e simples quanto ao mal.
Se não se acautelassem dos homens (triste testemunho dado a respeito destes), teriam de sofrer; mas, quando açoitados e levados à presença de concílios e de governadores e reis, todas essas tribulações se tornariam um testemunho para eles, um meio divino de apresentar o Evangelho do reino aos reis e aos príncipes, sem alterar o seu carácter e sem o acomodar ao mundo ou confundir os discípulos de Jesus com os costumes e a falsa grandeza deste mundo. De resto, tais circunstâncias tornariam o seu testemunho muito mais notável do que o teria conseguido a sua ligação com os grandes da Terra. E para cumprirem esse testemunho, o Senhor concederia aos Seus este poder e esta direção do Espírito de seu Pai que fariam com que as palavras que eles pronunciavam não fossem as suas próprias palavras, mas as palavras de Quem os inspira como vemos nos versos 19-20.
Aqui de novo a relação dos discípulos com o Pai que tão notavelmente caracteriza o sermão da montanha, forma a base da sua capacidade para o serviço que tinham de cumprir.
Note-se que este testemunho era dirigido somente a Israel; estando Israel sob o jugo dos Gentios desde Nabucodonosor, o testemunho teria de alcançar os seus chefes.
Ora esse testemunho devia suscitar uma oposição tal que destruiria todos os laços de família e despertaria um ódio tão encarniçado que não pouparia nem sequer a vida dos entes mais queridos. Mas aquele que, apesar de tudo, permanecesse até ao fim, esse seria salvo (versos 21-22).
Não obstante, o caso era urgente. Eles não deviam resistir, mas, se a oposição tomasse a forma de perseguição, deviam fugir e pregar o Evangelho noutros lugares, porque, antes de terem percorrido todas as cidades de Israel o Filho do homem estaria de volta (1).
(1) Note-se aqui a expressão «Filho do homem», e o carácter (segundo Daniel 7) sob o qual o Senhor virá, com um poder e uma glória muito maiores do que os da. Sua manifestação como Messias, Filho de Davi, poder e glória que se manifestarão numa esfera muito mais vasta. Como Filho do homem, é o herdeiro de tudo o que Deus destina ao homem. (Ver hb 2:6-8 e 1 Coríntios 15:27). Devia, por conseguinte, dada a condição do homem, sofrer para possuir essa herança. Estava ali como Messias, mas devia, ser recebido no Seu verdadeiro carácter, como Emanuel, a os Judeus deviam ser provocados moralmente. Não haverá o reino segundo um princípio carnal. Rejeitado como Messias como Emanuel, adia o período desses acontecimentos que encerrarão o ministério dos Seus discípulos para coro Israel até a Sua vinda como Filho do homem. Durante esse tempo Deus manifestou outras coisas que tinham sido escondidas desde a fundação do mando: A verdadeira glória de Jesus, o Filho de Deus, a Sua glória celeste como homem e a união da Igreja com Ele no Céu. O Julgamento de Jerusalém e a dispersão da nação suspenderam o ministério que tinha começado no momento do que nos fala aqui o evangelista. Os acontecimentos que preencheram o intervalo da tempo a partir desse momento não são aqui o tema do discurso do Senhor, porque Ele não se refere sendo ao ministério, tendo os Judeus por objeto. Quanto aos planos de Deus acerca da Igreja, em relação com a glória de Jesus â direita de Deus, será assunto tratado noutro lugar.
Lucas dá-nos com mais detalhes o que concerne ao Filho do homem.
Em Mateus, o Espírito Santo ocupa-nos com a rejeição de Emanuel.
Eles deviam anunciar o reino.
Jeová Emanuel estava ali, no meio do Seu povo, e os chefes do povo tinham chamado ao senhor da casa Belzebu.
Isto não tinha impedido o testemunho de Jesus, mas acentuava poderosamente as circunstâncias em que o testemunho deveria ser prestado. O Senhor enviou os Seus discípulos, advertindo-os deste estado de coisas, para manter este derradeiro testemunho no meio do Seu amado povo por tanto tempo quanto fosse possível. Estes fatos tiveram lugar naquele tempo, e é possível, se as circunstâncias o permitirem, que continue até que o Filho do homem venha para executar o Juízo. Mas então o senhor da casa se levantará para fechar a porta. O dia de hoje do Salmo 95 terá acabado para sempre.
Israel, habitando nas suas cidades, é o objetivo desse testemunho, o qual é necessariamente suspenso quando ele já não estiver na sua terra. O testemunho do reino vindouro, dado em Israel pelos apóstolos, depois da morte do Senhor, é o cumprimento desta missão, contanto que este testemunho fosse dado na terra de Israel; porque o reino podia ser anunciado como devendo ser estabelecido enquanto Emanuel estava na Terra, ou então pelo regresso de Cristo, vindo do Céu, conforme foi anunciado por Pedro no capítulo 3 de Atos. E isto podia ter lugar se Israel estivesse no seu país, mesmo até à vinda de Cristo. Deste modo o testemunho pode ser retomado em Israel, quando este se encontrar de novo na sua terra e Deus der o poder espiritual necessário para isso.
Entretanto os discípulos deviam participar da posição do próprio Cristo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos (verso 25). Mas eles não deviam temer. Essa era a parte inevitável dos que eram por Deus no meio do povo. Porém, nada havia encoberto que não viesse a ser revelado. Eles próprios nada deviam ocultar, devendo proclamar dos eirados tudo o que lhes tinha sido ensinado; porque todas as coisas seriam trazidas para a luz: a sua fidelidade a Deus a este respeito, assim como todas as outras coisas.
Isto, enquanto provocava a conspiração dos seus inimigos, devia caracterizar o comportamento dos discípulos. Deus, que é Luz, e vê nas trevas como na luz, traria tudo à luz, mas eles tinham de fazer isso moralmente. Portanto, não deviam temer coisa alguma enquanto desempenhassem esse serviço, a não ser a Deus, o justo Juiz do último dia. Aliás, até os próprios cabelos das suas cabeças estavam contados.
Eles eram mui preciosos para o Pai — Pai que até tomava conta da morte de um passarinho! Nem isso podia acontecer sem o consentimento dAquele que era o Pai deles.
Enfim, os discípulos deviam estar bem imbuídos da convicção de que o Senhor não tinha vindo para trazer paz à Terra; pelo contrário, seria a divisão, até mesmo no seio das famílias, Mas Cristo devia ser mais precioso do que pai ou mãe, e até mesmo que a própria vida. Quem quisesse salvar a sua vida à custa do testemunho de Cristo, perdê-la-ia; mas quero a perdesse por amor de Cristo, achá-la-ia. Todo aquele que recebesse este testemunho, receberia também a Cristo e, em Cristo, Aquele que O tinha enviado.
Portanto, sendo Deus assim reconhecido na pessoa das Suas testemunhas na Terra, concederia a todo aquele que os recebesse um galardão de acordo com o testemunho dado.
Reconhecendo deste modo o testemunho do Senhor rejeitado, ainda que fosse por meio de um simples copo de água, aquele que o desse não perderia o seu galardão. Num mundo de oposição, aquele que aceita o testemunho de Deus e recebe (apesar do antagonismo do mundo) aquele que dá esse testemunho, confessa realmente a Deus, bem como o Seu servo. Isto é tudo o que podemos fazer. A rejeição de Cristo fez dEle o teste, a pedra de toque.
Desde esse momento encontramos o julgamento definitivo da nação; não, porém, abertamente declarado (o que tem lugar no capítulo 12), nem na cessação do ministério de Cristo que atuava, apesar da oposição da nação, no sentido de agrupar o Remanescente, e nem — o que é mais importante ainda—na manifestação de Emanuel; declarado, sim, na carácter dos Seus discursos, nas afirmações positivas que descrevera o estado do povo, e no comportamento do Senhor no meio das circunstâncias que Lhe proporcionavam a ocasião de expressar quais eram as suas relações com aquele povo.
CAPÍTULO 11
Tendo enviado os Seus discípulos para pregarem, o Senhor continua no exercício do Seu próprio ministério. A notícia das obras de Cristo chega a João, no cárcere. E este, em cujo coração, não obstante o seu dom profético, ainda resta qualquer coisa dos pensamentos e esperanças judaicas, manda perguntar a Jesus, por intermédio dos seus discípulos, se é Ele Aquele que estava para vir, ou se deviam ainda esperar outro (1).
(1) A sua mensagem a Jesus demonstra uma plena confiança na palavra do Senhor como profeta, mas total Ignorância quanto à Sua Pessoa; e é isso o que sobressai aqui, com grande evidencia.
Deus permitiu esta pergunta a fim de pôr tudo no seu lugar. Cristo, sendo a Palavra de Deus, deveria ser a Sua própria testemunha.
Deveria dar testemunho de Si próprio e também a João, e não receber testemunho deste—e foi isso mesmo o que Ele fez na presença dos discípulos de João. Curava todas as enfermidades e pregava o Evangelho aos pobres; e os mensageiros de João deviam dar perante ele este verdadeiro testemunho do que Jesus era. João devia aceitar este testemunho. Era por meio destas coisas que o homem era posto à prova. Bem-aventurado seria todo aquele que se não escandalizasse com o aspecto humilde do Rei de Israel. Deus manifestado em carne não vinha para buscar a pompa da realeza, embora de direito Lhe pertencesse, mas sim a libertação dos que sofriam. A Sua obra revelava um carácter bem mais profundamente divino, tinha um princípio de ação muito mais glorioso do que aquele que dependia da posse do trono de Davi—do que o poder que teria posto João em liberdade, e posto fim à tirania que o tinha encarcerado.
Empreender este ministério, descer à cena onde era exercido, levar as dores e o fardo do Seu povo, podia ser uma pedra de tropeço para um coração carnal que aguardava o aparecimento de um reino glorioso para satisfação do orgulho de Israel. Mas não estaria isto assim mais de harmonia com o pensamento divino, não seria mais necessário para o estado espiritual do povo tal como 'Deus o via? Os corações de todos seriam assim postos à prova, para mostrarem se pertenciam ao Remanescente contrito, que discernia os caminhos de Deus, ou à multidão, que somente buscava a sua glória, não possuindo uma consciência exercitada perante Deus, nem o sentimento da sua própria necessidade e miséria. Tendo colocado João sob a responsabilidade de receber o testemunho que punha todo o Israel à prova, e, da nação em geral, distinguia o Remanescente, o Senhor dá testemunho de João, dirigindo-Se à multidão e recordando-lhe como ela tinha seguido a pregação de João. Mostra-lhe o ponto exato a que Israel tinha chegado nos caminhos de Deus. A introdução, em testemunho, do reino estabelecia a diferença entre o passado e o futuro. Entre os nascidos de mulher não tinha havido ninguém maior do que João Batista, ninguém que tivesse estado tão perto de Jeová, enviado ante a Sua face, ninguém que Lhe tivesse prestado um testemunho mais exato e completo, que tivesse estado tão separado de todo o mal pelo poder do Espírito de Deus — a separação própria ao cumprimento de -uma tal missão entre o povo de Deus. Todavia, ele não tinha estado no reino. O reino não estava ainda estabelecido; e estar na presença de Cristo no Seu reino, gozando o resultado da Sua glória (1), era algo de maior que todo o testemunho do reino vindouro.
(1) Não é o estabelecimento da Igreja de Deus; mas sendo estabelecidos os direitos do Rei, tal como se manifestam na glória, sendo postas as bases desse reino, os Cristãos estão no reino, embora de maneira muito particular e excepcional, porque eles estão no reino com Jesus Cristo, glorificada, mas oculto em Deus. Partilhara da sorte do Rei, e partilharão da Sua glória quando Ele reinar.
Todavia, desde o tempo de João Batista houve uma mudança notável.
Desde então o reino -era anunciado. Não fora estabelecido, mas era anunciado. Era uma coisa muito diferente das profecias que falavam do reino para um tempo ainda distante, ao mesmo tempo que se convidava o povo a ouvir a lei dada por Moisés. João Batista foi ante a face do Rei anunciando que o reino estava próximo, e mandando aos Judeus que se arrependessem a fim de poderem entrar nele. Deste modo a lei e os profetas falaram da parte de Deus até João. A lei era a regra; os profetas, mantendo a regra, fortaleciam as esperanças e a fé do Remanescente.
De fato, a energia do Espírito impelia os homens a forçarem o seu caminho através de todas as dificuldades e de toda a oposição dos condutores da nação e de um povo cego, para que, de qualquer modo, pudessem alcançar o reino de um Rei rejeitado pela cega incredulidade daqueles que deveriam tê-Lo recebido. Visto o Rei ter vindo em humilhação e ter sido rejeitado, era necessária essa violência para entrar no reino. A porta estreita era a única entrada.
Se a fé pudesse realmente, a este respeito, penetrar nos pensamentos de Deus, João era o Elias que havia de vir.
Quem tinha ouvidos para ouvir, que ouvisse. A entrada era, de fato, só para estes.
Se o reino tivesse aparecido na glória e poder do seu Chefe, a violência não teria sido necessária; teria sido possuído como o efeito certo desse poder. Mas era da vontade de Deus que eles fossem moralmente postas à prova. Era ainda assim que eles deviam receber Elias de uma maneira espiritual.
O resultado desta prova é-nos dado logo a seguir, nas palavras do Senhor (versos 16 e seguintes), isto é, o verdadeiro carácter desta geração e os caminhos de Deus em conexão como a Pessoa de Jesus, manifestados pela Sua rejeição. Como geração, tinham perdido tanto os avisos da Justiça como os atrativos da graça. Os filhos da sabedoria, aqueles cujas consciências eram esclarecidas por Deus, reconheciam a verdade do testemunho de João contra si próprios e a graça dos caminhos de Jesus, tão necessária aos culpados.
João, separado da iniquidade da nação, tinha, aos olhos deles, um demónio. Jesus, bondoso para com os mais miseráveis, era acusado de contemporizar com o mal. No entanto a evidência era bastante forte para ter convencido o coração de cidades como Tiro ou Sodoma; e a justa admoestação do Senhor adverte a nação incrédula e perversa de um julgamento mais terrível do que aquele que esperava o orgulho de Tiro e a corrupção de Sodoma.
Mas tudo isto era um teste para os mais favorecidos da humanidade.
Poderia perguntar-se porque não foi a mensagem enviada a Tiro, pronto a escutar? Ou a Sodoma, para que ela escapasse ao fogo que a consumiu? É porque o homem tem de ser experimentado de todos os modos; para que os perfeitos desígnios de Deus possam ser manifestados.
Se Tiro e Sodoma tinham abusado das vantagens de que usa Deus criador e de providência os tinha cumulado, os Judeus deviam manifestar o que havia no coração do homem, uma vez de posse de todas as promessas, e feitos depositários de todos os oráculos de Deus.
Mas eles vangloriavam-se do dom, e afastaram-se do Dador. O seu cego coração não reconheceu e até rejeitou o seu Deus. O Senhor sentiu o desprezo do Seu povo amado; mas, como único homem obediente na Terra, submeteu-Se à vontade de Seu Pai que, agindo em soberania, como Senhor dos céus e da Terra, manifestava, no exercício desta soberania, a Sua divina sabedoria e a perfeição do Seu carácter (versos 25 e seguintes). Jesus aceita a vontade de Seu Pai nos seus efeitos, e, assim sujeito, vê a sua perfeição. Convinha que Deus revelasse aos humildes todos os dons da Sua graça em Jesus, Emanuel sobre a Terra, e os ocultasse ao orgulho que procurava esquadrinhálos e julgá-los. Mas isto abre a porta à glória dos desígnios de Deus. O fato é que a Pessoa do Senhor era por demais gloriosa para ser sondada ou compreendida pelo homem, embora as Suas palavras e as Suas obras deixassem a nação sem desculpa no tocante à sua recusa de vir a Ele para conhecer o Pai. Jesus, obediente à vontade de Seu Pai, embora plenamente cônscio de tudo quanto era penoso para o Seu coração em seus efeitos, vê toda a extensão da glória que seguiria a Sua rejeição.
Todas as coisas Lhe foram entregues por Seu Pai. É o Filho que é revelado à nossa fé, sendo desviado o véu que cobria a Sua glória, agora que Ele é rejeitado como Messias.
Ninguém O conhece senão o Pai. Quem de entre aqueles orgulhosos podia sondar o que Ele era? Aquele que desde toda a eternidade era um com o Pai, e que Se tinha feito homem, ultrapassava, no profundo mistério do Seu ser, todo o conhecimento, exceto o do próprio Pai. A impossibilidade de conhecer Aquele que Se aniquilou a Si mesmo para Se tornar homem, mantinha a certeza, a realidade da Sua divindade, que esta renúncia de Si próprio poderia ter ocultado dos olhos da incredulidade. A incompreensibilidade de um ser, numa forma definida, revelava o infinito que se encontrava n'Ele. A Sua divindade era garantida pela fé contra o efeito da Sua humanidade sobre o espírito do homem.
Ora, se ninguém conhecia o Filho senão o Pai, o Filho, que é verdadeiro Deus, era capaz de revelar o Pai. «Deus nunca foi visto por alguém; o Filho unigénito.,. que está no seio do Pai, esse o fez conhecer» (João 1:18). Ninguém conhece o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho O quiser revelar. Miserável ignorância, que no seu orgulho O rejeita! Foi assim, segundo o bom prazer do Filho, que esta revelação foi feita. Atributo característico da perfeição divina! Ele tinha vindo para revelar o Pai e fizera-o segundo a Sua própria sabedoria. Tal era a verdade das relações do homem com o Filho, não obstante Se haver submetido à dolorosa humilhação de ser rejeitado pelo Seu povo, como último teste do seu estado, do estado do homem.
Note-se também que este princípio, esta verdade acerca de Cristo, abre a porta aos Gentios, a todos os que forem chamados. Ele revela o Pai a quem quer. Busca sempre a glória do- Pai. Somente Ele O pode revelar—Ele, a Quem o Pai, Senhor dos céus e da Terra, entregou todas as coisas.
Os Gentios são incluídas nos direitos conferidos por este título, até mesmo todas as famílias nos céus e na Terra. Cristo exerce esses direitos em graça, chamando quem Ele quer ao conhecimento do Pai.
Encontramos, pois, que a geração perversa e incrédula; encontramos um Remanescente da nação justificando a sabedoria de Deus manifestada em João e em Jesus, em julgamento e em graça; encontramos a sentença do julgamento dos incrédulos, a rejeição de Jesus no carácter em que Ele Se havia apresentado à nação, e a Sua perfeita submissão, como homem, à vontade do Pai nessa rejeição, dando ocasião para a manifestação à Sua alma da glória que Lhe é própria como Filho de Deus — glória que ninguém podia conhecer, do mesmo modo como somente Ele podia revelar a glória do Pai. De sorte que o mundo, que recusava recebê-Lo, se encontrava em completa ignorância, exceto o Filho que, segundo o Seu bom prazer, queria revelar-lhes o Pai.
Vemos também aqui que a missão dos discípulos em Israel, que rejeitava a Cristo, continua (se Israel continuar a habitar no seu país) até à vinda de Cristo como Filho do homem, Seu título de julgamento e de glória, como herdeiro de todas as coisas (quer dizer, até ao julgamento mediante o qual Ele toma posse da terra de Canaã, num poder tal que não deixa lugar para os Seus inimigos), é este título, como herdeiro de todas as coisas, que é mencionado em João 5; dn 7 e Salmos 8 e 80.
Note-se também que, no capítulo 11, a perversidade da nação que tinha rejeitado o testemunho de João e o do Filho do homem vindo em graça e associando-Se em bondade com os Judeus, abre a porta ao testemunho da glória do Filho de Deus, e à revelação do Pai por Ele em graça soberana — graça que podia torna-Lo conhecido de maneira eficaz tanto a um pobre Gentio como a um Judeu. Já não se tratava da responsabilidade de receber Aquele que era enviado, mas da graça soberana que comunicava a quem ela queria. Jesus conhecia o homem, o mundo, a geração que tinha desfrutado das maiores vantagens possíveis. Não havia lugar para pôr o pé no lamacento atoleiro daquilo que se tinha afastado de Deus, No meio de um mundo de mal, Jesus permanecia como sendo o único que podia revelar o Pai.., a origem de todo o bem. E quem são os que Ele chama? O que é que Ele concede aos que vêm a Si? Única fonte de bênção e o único que revela o Pai, convida todos os que estão cansados e oprimidos. Talvez não conhecessem a origem de toda a miséria, ou seja, a separação de Deus, o pecado. Mas Jesus conhecia-a, e somente Ele podia curá-los. Se era a consciência do pecado que pesava sobre eles, tanto melhor. De qualquer modo, o mundo já não satisfazia os seus corações; eram miseráveis e, por conseguinte, os objetos do coração de Jesus. Além disso, Jesus lhes daria descanso.
Não explica aqui como o fará; anuncia somente o fato. O amor do Pai que, em graça, na Pessoa do Filho, buscava os miseráveis, daria descanso (não meramente alívio ou simpatia, mas descanso!) a todo aquele que viesse a Jesus. Era a perfeita revelação do Nome do Pai ao coração daqueles que dela necessitavam, e isto pelo Filho — era a paz, a paz com Deus. Bastava vir a Cristo: Ele se encarregava de tudo e dava descanso. Mas há no descanso um segundo elemento, Há algo mais do que a paz no conhecimento do Pai em Jesus.
E mais do que isso é também necessário; porque mesmo quando a alma se encontra perfeitamente em paz com Deus, este mundo apresenta ao coração muitas causas de perturbação. Em tal caso, tratase da submissão, ou da vontade própria.
Cristo, com o conhecimento da Sua rejeição, sentindo a profunda dor causada pela incredulidade das cidades em que tinha operado tantos milagres, havia manifestado a mais completa submissão ao Pai, e havia achado nisso perfeito descanso para a Sua alma.
A esse mesmo descanso Jesus cornada todos os que O ouvem, a todos os que sentem essa necessidade de descanso para as suas almas.
«Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim», quer dizer, o jugo de inteira submissão à vontade do Pai, aprendendo com Ele a enfrentar as dificuldades da vida; porque Ele era «manso e humilde de coração», sempre contente de estar no lugar mais humilde segundo a vontade de Deus.
De fato, nada pode perturbar aquele que ali se encontra, o lugar do perfeito descanso para o coração.
CAPÍTULO 12
Por fim, a rejeição da nação, como consequência do seu desprezo pelo Senhor, é claramente manifestada, do mesmo modo que o fim de todas as Suas relações com o povo como nação, para dar lugar ao estabelecimento, da parte de Deus, de um sistema inteiramente diferente, quer dizer, o reino sob uma forma muito especial.
Assim, o capítulo 11 é o grande eixo de toda a história. Cristo é uma testemunha divina de Si mesmo, e João Batista devia reconhecê-Lo assim, como outro o tivesse feito.
Já não era Aquele de Quem era dado testemunho como Messias, mas o Filho de Deus, que dá testemunho de João. Mas a nação tinha rejeitado a Deus, manifestado tanto em avisos como cm graça; apenas havia um Remanescente. A sabedoria era justificada pelos seus filhos.
Então, por muito abominável que fosse a Sua rejeição, vêmo-Lo submeter-Se a ela, como sendo a vontade do Pai; mas isso leva-O à consciência da Sua glória pessoal, verdadeiro motivo dessa rejeição.
Todas as coisas Lhe foram entregues por Seu Pai.
Ninguém podia conhecê-Lo, nem conhecer o 'Pai, a não ser que Ele O revelasse. O mundo inteiro, posto à prova pela perfeição do Senhor, foi achado jazendo na maldade (embora ali houvesse um Remanescente poupado); o homem estava universalmente afastado de Deus. Deus olhou desde os céus para ver, como lemos, mas os filhos dos homens tinham-se rodos afastado do caminho; não havia justo, nem sequer um. Assim Jesus, quando andava sobre o mar, estava só num mundo condenado, condenado por causa da Sua rejeição; mas agora, na soberana graça do Pai, é o Filho revelando o Pai, e chamando os cansados e oprimidos para a revelação desta graça em Si mesmo. É agora a nova posição. Ele tinha posto o homem à prova. O que Ele era em Si mesmo impedia o homem de O receber. Ora, aqueles que estavam cansados deviam vir Àquele que permanecia assim só, e Ele lhes daria descanso. Deviam aprender com Aquele que assim Se tinha submetido inteiramente; teriam descanso quanto ao mundo e a tudo mais na Terra. E assim é também conosco. Quando nos curvamos inteiramente, entramos como rejeitados, de maneira consciente, na posse dos nossos privilégios sobre um terreno celeste mais elevado.
O primeiro motivo que deu lugar à questão da Sua Pessoa e ao Seu direito de terminar aquela dispensação foi o fato de os discípulos colherem as espigas e as debulharem à mão para saciarem a fome. Os Fariseus repreendiam-nos, porque era em dia de sábado. Jesus lembralhes que o rei, rejeitado pela maldade de Saul, havia participado do pão que só era concedido aos sacerdotes. O Filho de Davi, num caso semelhante, podia muito bem desfrutar de um privilégio análogo.
Além disso Deus estava atuando em graça. Os sacerdotes também profanavam o sábado no serviço do templo; e ali estava Quem era maior do que o templo (versos 5-6). Aliás, se eles tivessem verdadeiramente conhecido os pensamentos de Deus, se tivessem sido imbuídos do espírito que a Sua Palavra declarava ser-Lhe agradável: «Misericórdia quero, e não sacrifício», não teriam condenado a inocentes. De resto, o Filho do homem é Senhor do sábado.
Aqui Jesus já não toma o título de Messias, mas o de Filho do homem — um Nome que dava testemunho da nova ordem de coisas e de um poder mais extenso. Ora, o que o Senhor dizia tinha um grande alcance, porque o sábado era o sinal da aliança entre Jeová e a nação judaica (Ezequiel 20:12-20), e o Filho do homem declarava o Seu poder sobre ele. Se o sábado era tocado, era o fim da aliança.
A mesma questão é levantada na sinagoga; e o Senhor persiste em agir em graça, e em fazer bem, mostrando-lhes que eles fariam a mesma coisa por uma das suas ovelhas.
Mas isto, por grande que fosse a prova do beneficente poder de Jesus, não fez senão excitar o ódio deles. Eram filhos do assassino. Jesus retira-Se do meio deles, e grandes multidões O seguem. Jesus cura-as, recomendando-lhes que O não descobrissem. No entanto, em ludo isto, as suas ações não eram senão o cumprimento de uma profecia que designa claramente a posição do Senhor nesse momento (versos 17 e seguintes). A hora viria em que Ele faria manifestar o julgamento em vitória. Entretanto, Ele guardava uma posição de perfeita humildade em que a graça e a verdade podiam fazer-se valer para aqueles que as apreciavam e delas tinham necessidade. Mas, no exercício desta graça e no Seu testemunho da verdade, Ele nada faria para deturpar este carácter ou para atrair a atenção dos homens tanto que impedisse a Sua verdadeira obra, ou que pudesse sequer suspeitarse de que Ele 'buscava a Sua própria glória. No entanto o Espírito de Deus estava sobre Ele como sendo o Seu Filho bem-amado, em Quem a Sua alma se deleitava; anunciaria o Juízo aos Gentios, e os Gentios confiariam no Seu Nome.
A aplicação desta profecia a Jesus, neste momento, é de toda a evidência. Vemos como Ele Se mantinha reservado com os Judeus, abstendo-Se de satisfazer os desejos carnais deles, e contentando-Se de permanecer na sombra, contanto que Deus, Seu Pai, fosse glorificado. Ele próprio glorificava perfeitamente o Seu Pai na Terra, fazendo o bem. Em breve devia ser anunciado aos Gentios, quer por meio do Juízo de Deus, quer apresentando-Se-lhes como sendo o abjeto da sua confiança (versos 17-21).
Esta passagem de Isaías 42 é evidentemente posta aqui pelo Espírito Santo para desenhar claramente a posição do Senhor, antes de se abrirem as novas cenas que a Sua rejeição nos prepara.
Então o Senhor expulsa um demónio de um homem cego e mudo (versos 22 e seguintes) — triste condição, descrevendo verdadeiramente o estado de espírito do povo acerca de Deus. As multidões, plenas de admiração, exclamam: «Não é este o Filho de Davi?» Mas os religiosos de entre elas, ouvindo isto, invejosos do Senhor e hostis ao testemunho de Deus, declaram que é pelo poder de Belzebu que Jesus faz esse milagre, selando assim o seu próprio estado e colocando-se sob o Juízo definitivo de Deus. Jesus demonstra o absurdo da acusação. Satanás não destruiria o seu próprio reino. Os seus próprios filhos, que tinham a pretensão de fazerem a mesma coisa, julgariam a iniquidade deles. Mas, se não era pelo poder de Satanás (e os Fariseus admitiam que os demónios tinham sido realmente expulsos), era o dedo de Deus, e o reino de Deus estava entre eles.
Aquele que tinha entrado em casa do homem forte para pilhar os seus bens, teve de o manietar antes (verso 29).
A verdade é que a presença de Jesus punha tudo à prova; tudo, da parte de Deus, se concentrava n'Ele. Era o próprio Emanuel que estava ali! Todo aquele que não era por Ele, era contra Ele. Quem com Ele não ajuntava, espalhava.
Tudo agora dependia somente d'Ele. Suportaria toda a incredulidade acerca da Sua Pessoa. A graça podia removê-la, Jesus podia perdoar todo o pecado; mas falar e blasfemar contra o Espírito Santo (quer dizer, reconhecer o exercício de um poder, que é o poder de Deus, c atribuí-lo a Satanás) não poderia ser perdoado; porque os Fariseus reconheciam que o demónio havia sido expulso, e era somente por maldade, por deliberado ódio a Deus que atribuíam o feito a Satanás.
E que perdão podia haver para esta blasfêmia? Não havia nenhum nem na dispensação da lei (1), nem do Messias. A sorte daqueles que assim blasfemavam estava decidida. É o que o Senhor lhes faz compreender.
(1) Note-se esta expressivo. Vemos a maneira como o Espírito Santo passa do tempo presente (então presente para os Judeus, e que em breve devia acabar) para aquele em que o Messias estabeleceria o Seu reino, o «mundo futuro» ou «século futuro». Nós temos uma posição fora de tudo isso, durante a suspensão do estabelecimento público do reino. Os apóstolos apenas o pregaram ou anunciaram; não o estabeleceram. Os seus milagres foram «as virtudes do século futuro» (comparar 1 Pedro 1:11-13). Isto é de grande importância, como veremos em breve. O mesmo se á com a Nova Aliança, de que Paulo era o ministro; e no entanto não a estabeleceu nem com Judá nem com Israel.
O fruto era a prova da natureza da árvore; e o fruto era essencialmente mau. Eram uma raça de víboras.
João tinha-lhes dito a mesma coisa. As suas próprias palavras os condenavam (versos 31-37). Neste comenos os escribas e os fariseus pedem ura sinal (versos 38 e seguintes).
Isto era maldade. Eles tinham visto bastantes milagres.
Não se tratava senão de provocar a incredulidade dos outros.
Este pedido dá ocasião ao Senhor para pronunciar o Julgamento desta geração. Não haveria outro sinal para esta geração perversa senão o do profeta Jonas. Como Jonas esteve três dias e três noites no ventre do grande peixe, assim estaria o Filho do homem três dias e três noites no seio da terra. Mas, ai! Cristo já então tinha sido rejeitado.
No dia do Juízo-, os Ninivitas condenarão esta geração pelo seu comportamento, porque eles se tinham arrependido com a pregação de Jonas; e um maior do que Jonas ali estava. A rainha do sul de igual modo testificaria contra a maldade desta geração perversa. O seu coração, atraído pela fama da sabedoria de Salomão, tinha-a conduzido a ele desde os confins da terra; e ali estava um maior do que Salomão! Os pobres e ignorantes Gentios compreendiam a sabedoria de Deus na Sua Palavra, quer por intermédio dos profetas, quer por intermédio do rei, melhor do que o Seu povo amado, mesmo quando o Grande Rei e Profeta estivesse lá, no meio dele.
E eis o Julgamento de Deus: o espírito imundo (de idolatria) que havia saído do povo, não achando repouso fora de Israel (Israel, infelizmente, a sua verdadeira casa, enquanto que ela deveria ter sido a casa de Deus), voltaria com sete espíritos piores do que ele.
Encontrariam a casa desocupada, varrida e adornada; e o último estado seria pior do que o primeiro (verso 45). Que solene julgamento do povo este! Aqueles no meio dos quais Jeová tinha andado tornaram-se a habitação de um espírito imundo — duma superabundância de espíritas imundos; não apenas sete (o número completo), mas com estes, que os incitariam à loucura contra Deus e contra aqueles que honravam a Deus, conduzindo-se assim à sua própria destruição, com estes, dizia eu; e outro espírito imundo também, o qual os traria de novo à maldita idolatria de que haviam escapado! O Julgamento de Israel estava pronunciado.
Jesus rompe enfim publicamente os laços que subsistiam entre Si e o povo, segundo a carne (versos 46-50), não aceitando como Seus senão aqueles que eram formados pela Palavra de Deus, e manifestados pelo cumprimento da vontade de Seu Pai, que estava nos céus. Não reconhecia como Seus senão aqueles que eram formados segundo o padrão do sermão da montanha.
CAPÍTULO 13
Os Seus atos e as Suas palavras, a partir deste momento, prestam testemunho da nova obra que Ele estava realmente fazendo sobre a Terra. Deixa (capítulo 13) a casa e senta-Se junto do lago. Toma uma nova posição fora de Israel para anunciar à multidão » que era verdadeiramente a Sua obra. Um semeador saiu para semear.
O Senhor já não procura fruto na Sua vinha. Tinha sido necessário, segundo as relações de Deus com Israel, que o Senhor procurasse esse fruto; mas o Seu verdadeiro serviço, Ele bem o sabia, era, não encontrar fruto entre os homens, mas trazer ao homem o que podia produzir fruto.
É importante notai aqui que o Senhor fala do efeito visível e exterior do Seu trabalho de Semeador. A única ocasião em que Ele exprime o Seu Juízo quanto à causa interior do resultado, é quando diz: «Eles não tinham raiz»; e até mesmo aqui Ele se limita a enunciar o fato.
As doutrinas relativas à operação divina necessária para produzir fruto não são tratadas aqui. É o Semeador que é posto em destaque, assim como o resultado da Sua sementeira; e não o que faz germinar a semente na terra.
Em cada um dos casos, exceto no primeiro, é produzido um certo efeito.
Portanto, o Senhor é-nos apresentado aqui como começando uma obra independente de toda a relação precedente de Deus com os homens, trazendo com Ele a semente da Palavra que semeia no coração por meio do Seu ministério.
Onde ela é compreendida, onde permanece, onde não é pisada nem secada, produz frutos para a glória do Senhor e para felicidade e proveito de todo aquele que a guarda em seu coração.
No verso 11 o Senhor expõe a razão por que faia de modo enigmático à multidão. A distinção e agora definitivamente estabelecida entre o Remanescente e a nação. Esta estava sob o julgamento da cegueira pronunciado pelo profeta Isaías. Bem-aventurados eram os olhos dos discípulos porque viam o Emanuel, o Messias, o objeto das esperanças e dos desejos de tantos profetas e homens justos! Tudo isto mostra o Julgamento, e um Remanescente chamado e separado (1).
(1) Comparar Marcos 4;33-34. Isto aplicava-se a todos, se tinham tido ouvidos para ouvir, mas havia trevas para os homens da vontade própria.
Acrescentarei aqui algumas observações acerca do carácter das pessoas de quem o Senhor fala na parábola. Quando a Palavra é semeada num coração que a não compreende, quando ela não produz nenhuma relação de inteligência, de sentimento ou de consciência entre o coração e Deus, o Inimigo deita-a fora; ela não permanece no coração. Aquele que a ouve não é menos culpado. A semente lançada no coração era adequada a todas as necessidades, à natureza e ao estado espiritual do homem.
A recepção imediata da Palavra com alegria, no caso seguinte, tende antes a demonstrar que o coração não a guardará, porque, nesse caso, é pouco provável que a consciência seja atingida. Uma consciência atingida pela Palavra de Deus torna o homem circunspecto; vê-se a si mesmo na presença de Deus, o que é sempre uma coisa muito séria, qualquer que seja o atrativo da Sua graça ou a esperança que inspira a Sua bondade. Se a consciência não foi atingida, não existe raiz. A Palavra foi recebida pela alegria que ela comunicava; mas quando traz tribulação, é abandonada.
Quando a consciência tem sido já exercitada, o Evangelho produz imediatamente alegria; mas quando assim não é, desperta a consciência, se existe verdadeira obra por ele operada. No primeiro caso, ele responde às necessidades já existentes, satisfazendo-as. No segundo caso, cria essas necessidades. Mas, aí! ... A experiência diária é a triste e melhor explicação da terceira classe! Não há má vontade, há esterilidade.
A verdadeira compreensão da Palavra não é afirmada senão por aqueles que produzem fruto. O verdadeiro entendimento da Palavra põe uma alma em relação com Deus, porque a Palavra revela Deus— exprime o que Ele é. Se a compreendo, conheço-O; e o verdadeiro conhecimento de Deus (quer dizer, do Pai e de Seu Filho Jesus Cristo) é a vida eterna. Ora, qualquer que seja o grau de luz, é sempre Deus assim revelado, cuja -Palavra, semeada por Jesus, dá o conhecimento.
Assim, gerados da Palavra, nós produziremos neste mundo, em diversas medidas, os frutos da vida de Deus. Porque o assunto de que se trata aqui é o feito, neste mundo, da aceitação da verdade trazida por Jesus (não o Céu, nem o que Deus faz no coração para que a semente produza fruto).
Esta parábola não fala, como analogia, do reino, embora a Palavra semeada fosse a do reino, mas do grande princípio elementar do serviço de Cristo na universalidade da sua aplicação; e foi realizado na Sua Pessoa e no Seu serviço, quando Ele estava sobre a Terra, e após a Sua partida, embora mais amplos tópicos de graça pudessem ser então produzidos.
Nas seis parábolas seguintes encontramos semelhanças do reino; e temos de nos lembrar que este reino é estabelecido durante a rejeição do Rei (1); tem, por conseguinte, um carácter particular, quer dizer que é caracterizado pela ausência do Rei. Aliás, na explicação da primeira parábola, encontramos qual é o efeito do Seu regresso.
(1) Note-se aqui une, tendo o capítulo 12 colocado perante nós o julgamento do povo judeu, temos agora o reino tal como ele é durante a ausência do Rei. No capítulo 16 temos a Igreja edificada por Cristo, e nos capítulo 17 temos o reino em glória.
As três primeiras destas seis parábolas apresentam-nos o reino nas suas formas exteriores no mundo. São dirigidas à multidão. As três últimas apresentam o reino segundo a avaliação que dele faz o Espírito Santo, segundo a verdade do carácter deste reino, como é visto por Deus — o pensamento e os desígnios de Deus nesse carácter.
Por isso elas são dirigidas somente aos discípulos. O estabelecimento público do reino segundo a justiça e o poder de Deus é também anunciado aos discípulos na explicação da parábola do joio.
Consideremos primeiramente a forma exterior que devia tornar este reino, publicamente anunciado à multidão. Lembremo-nos de que o Rei, isto é, o Senhor Jesus, estava rejeitado na Terra; que os Judeus se tinham condenado a si próprios, rejeitando-O; que, sendo a Palavra de Deus empregada para cumprir a obra d'Aquele que o Pai tinha enviado, o Senhor fazia assim saber que estabelecia o reino não pelo Seu poder, exercido em Justiça e em Juízo, mas dando testemunho aos corações dos homens; e que o reino assumia agora um carácter ligado com a responsabilidade do homem e com o efeito que se produzia quando a Palavra de luz era lançada na Terra, dirigida aos corações dos homens e confiada como sistema de verdade à sua fidelidade e aos seus cuidados (mantendo, todavia, Deus o Seu direito soberano de preservação dos Seus filhos e da verdade em si mesmo). Esta última parte não constitui o tema destas palavras. Mencionei-o aqui porque, de outro modo, poderia supor-se que tudo dependia absolutamente do homem. Se assim fosse, desgraçadamente, tudo estaria perdido.
A parábola do joio é a primeira na ordem (versos 24-30).
Dá-nos uma ideia geral do efeito das sementeiras quanto ao reino, ou antes, o resultado de o reino ter sido confiado de momento às mãos dos homens.
O resultado foi que este reino já não apresentou, como conjunto, a aparência da própria obra do Senhor. Ele não semeia o joio; mas, pela negligência e pela infidelidade dos homens, o Inimigo encontrou o meio de o semear. Note-se que «o joio» não designa nem os pagãos nem os Judeus, mas sim o mal operado entre os Cristãos por Satanás, por meio de falsas doutrinas, maus doutores e seus sectários.
O Senhor Jesus semeou. Satanás, enquanto os homens dormiam, semeou também! Houve judaizantes, filósofos, heréticos que permaneciam tanto no erro como se opunham à verdade do Antigo Testamento.
No entanto Cristo só tinha semeado boa semente. Alas será necessário arrancar o joio? Ê evidente que o estado do reino neste mundo, durante a ausência de Cristo, depende da resposta a esta questão, e também lança alguma luz sobre este estado. Ora, havia ainda menos poder para introduzir um remédio do que tinha havido para prevenir contra o mal. Tudo teria de permanecer sem remédio até à intervenção do Rei no tempo da ceifado reino dos céus sobre a Terra, tal como se encontra nas mãos dos homens, deve continuar como um sistema mesclado Heréticos, falsos irmãos ali estarão, assim como o fruto da obra do Senhor, que dá testemunho, nesta última relação de Deus com o homem, da incapacidade do homem para conservar no seu primeiro estado o que é bom e puro. Assim tem sido sempre (1).
(1) Pensamento solene este! O primeiro ato do homem foi estragar o que Deus tinha feito e que era inteiramente bom. Foi assim. Com Adão, com Noé, a lei, o sacerdócio de Arão, o filho de Davi, o próprio Nabucodonosor, a Igreja. No tempo de Paulo, todos procuravam os seus- próprios interesses— a não os de Jesus Cristo. Tudo é bom, tudo é melhor e seguro com o Messias.
No tempo da ceifa (expressão que designa um certo espaço de tempo durante o qual terão lugar os acontecimentos relacionadas com a ceifa) — «por ocasião da ceifa», o Senhor ocupar-se-á primeiramente, na Sua providencia, do joio. Digo «na Sua providência», porque emprega os anjos. O joio será atado em molhos, pronto para ser queimado. É preciso notar que as coisas exteriores no mundo constituem o tema aqui tratado —atos que resultam em corrupção, corrupção desenvolvida no meio da Cristandade.
Os servos não são capazes de o fazer. É de tal ordem a mistura ocasionada pela fraqueza e negligência do homem que, arrancando o joio, eles arrancariam também o bom grão. Faltaria não só o discernimento, mas também o poder prático de separação para executarem o seu propósito. Uma vez que o joio existe, os servos nada têm que fazer com ele, quanto à sua presença neste mundo, na Cristandade. O serviço deles aplica-se ao bem. O cuidado de purificar a Cristandade não é da sua competência. É uma obra de Julgamento sobre o que não é de Deus, uma obra que pertence Àquele que sabe e pode executá-la segunda perfeição de um conhecimento que inclui tudo e de um poder ao qual nada escapa; um conhecimento que saberá, de dois que estiverem na mesma cama, tomar um e deixar o outro. A execução do Julgamento sobre os maus neste mundo não pertence aos servos (1) de Cristo. O Senhor cumprirá esse Julgamento por intermédio dos anjos do Seu poder, aos quais confia o cuidado de o executar.
(1) Falo aqui daqueles que tiverem sido Seus servos durante a Sua ausência; porque os anjos são também Seus servos» do mesmo modo que os santos do século futuro.
Depois de ter atado o joio, Ele ajunta o bom grão no Seu celeiro. O trigo não é atado em molhos; o Senhor toma-o todo para Si. Eis, pois, o que tem relação com o aspecto exterior do reino neste mundo. Isto não é tudo o que a parábola nos ensina, mas termina o assunto de que nos fala esta parte do capítulo. Durante a ausência de Jesus, o resultado da Sua sementeira, no seu conjunto, será manchado pela obra do Inimigo. No final, o Senhor atará em molhos toda a obra do Inimigo, isto é, prepará-la-á neste mundo para o Julgamento. Em seguida Ele arrebatará a Igreja. É evidente que com isto termina neste mundo a cena que tem prosseguido durante a Sua ausência. O Julgamento ainda não é executado. Antes de falar dele o Senhor apresenta outros quadros das formas que o reino tomará durante a Sua ausência.
O que tinha sido semeado como um grão de mostarda torna-se numa grande árvore, expressão esta que simboliza um grande poder sobre a Terra. O Assírio, Faraó, Nabucodonosor, são-nos apresentados na Palavra de Deus como grandes árvores (ver Ezequiel 31:3 e seguintes; Ezequiel 17:23-24; Daniel 4:10 e seguintes). Tal devia ser a forma do reino que começava de pequenina pela Palavra semeada pelo Senhor e, mais tarde, pelos Seus discípulos. O que produziria esta semente deveria revestir pouco a pouco a forma de um grande poder, tornandose proeminente na Terra, e sob o qual outros viriam abrigar-se, como pássaros nos ramos de uma árvore. E assim tem sucedido, com efeito.
Em seguida (versos 33 e seguintes), vemos que não só seria uma grande árvore na Terra, mas que o reino seria caracterizado como um sistema de doutrina que se propagaria por si própria — uma profissão que abarcaria tudo aquilo que a sua esfera de influência atingisse.
Seria levedada a totalidade das três medidas. Não é necessário acentuar o fato de que a palavra fermento é sempre empregada nas Escrituras num mau sentido; mas o Espírito Santo quer fazer-nos compreender que não se trata do poder regenerador da Palavra no coração de um indivíduo, trazendo-o de novo a Deus; nem tampouco é simplesmente um poder que atua por força exterior, tal como Faraó, Nabucodonosor e outros apresentados como grandes árvores da Escritura.
Mas é um sistema de doutrina que, penetrando por toda a parte, caracterizará a massa. Não c a f é propriamente dita, nem a vida; é uma religião—é a Cristandade. É a profissão de uma doutrina em corações que não suportam nem Deus, nem a verdade, e se ligam sempre ao estado de corrupção da própria doutrina.
Com esta parábola do fermento o Senhor dá por terminadas as Suas instruções à multidão. Tudo agora lhe é apresentado em parábolas, porque ela não O recebia. Ele, o seu Rei; e Ele falava de coisas que se relacionavam com a Sua rejeição, e de um aspecto do reino desconhecido das revelações do Antigo Testamento, as quais têm vista ou o reino em poder ou um pequeno Remanescente recebendo, no meio de sofrimentos, a palavra do Rei profeta que tinha sido rejeitado.
Depois da parábola do fermento, Jesus não fica junto do mar com a multidão —lugar próprio para a posição em que Ele estava quanto ao povo depois do testemunho dado no final do capítulo 12, e aonde Ele tinha vindo ao deixar a casa. Agora Jesus regressa a casa com os Seus discípulos; e ali, em intimidade com eles, revela-lhes o verdadeiro caráter—o objetivo — do reino dos céus, o resultado do que ali se fazia e os meios que seriam empregados para purificar tudo na Terra, quando a história exterior do reino, durante a Sua ausência, tivesse terminado. Quer dizer, encontramos aqui o que caracteriza o reino para o homem espiritual, o que este compreende como sendo o verdadeiro pensamento de Deus acerca do reino, e o Julgamento que dele tirará o que Lhe era contrário — o exercício de poder que tornará o reino exteriormente conforme ao coração de Deus.
Vimos como a sua história natural terminou com estas duas coisas: o bom grão guardado no celeiro, e o joio atado em molhos sobre a Terra, pronto para ser queimado.
A explicação desta parábola retoma a história do reino nessa época; simplesmente, ela faz-nos compreender e distinguir as diferentes partes do amálgama, atribuindo cada parte ao seu verdadeiro autor. O campo é o mundo (1); a Palavra foi ali semeada para desse modo estabelecer o reino. A boa semente, eram os filhos do reino; pertenciam realmente ao reino segundo os desígnios de Deus; são os seus herdeiros. Os Judeus já o não eram, e a herança já não era um privilégio do nascimento segundo a carne. Tornávamo-nos filhos do reino pela Palavra de Deus. Ora, no meio desses filhos do reino, para estragar a obra do Senhor, o Inimigo introduziu toda a sorte de pessoas, frutos das doutrinas que ele tinha semeado no meio daqueles que tinham nascido da verdade. Tal é a obra de Satanás no lugar onde a doutrina de Cristo foi introduzida. A ceifa é o fim do século (2). Os ceifeiros são os anjos (verso 39).
(1) É evidente que são foi na Igreja que o Senhor começou a semear; ela não existia ainda. De igual modo distingue aqui Israel do mundo; é deste que Ele fala. O Senhor procurava fruto em Israel; semeia no mundo, porque Israel, após todos os Seus cuidados, não dava fruto.
(2) Não o só o momento que o termina, mas também os atos que cumprem os desígnios de Deus ao terminá-lo (sunteleia).
Devemos notar aqui que o Senhor não explica no sentido histórico o que aconteceu, mas os termos empregados introduzem o desfecho quando chega o tempo da ceifa. O cumprimento do acontecimento histórico na parábola é intuitivo; e o Senhor passa adiante, para dar o resultado principal do que era estranho ao reino durante a Sua ausência nas alturas. O bom grão—quer dizer, a Igreja — está no celeiro, e o joio em molhos sobre «a Terra. Ora o Filho do homem tomará tudo o que constitui esses molhos, tudo o que, como mal, ofende Deus no reino, e lança-o no lago de fogo, onde há pranto e ranger de dentes (versos 40-42). Depois deste Julgamento, os justos resplandecerão como Ele próprio, o verdadeiro Sol desse dia de glória — do século vindouro—no reino de seu Pai. Cristo terá recebido o reino do Pai cujos filhos eles eram; e eles resplandecerão nele com Jesus segundo esse carácter.
Encontramos assim, para a multidão, os resultados na Terra das sementeiras divinas e as maquinações do Inimigo—o reino apresentado sob este aspecto; em seguida vemos as associações dos malfeitores ou ímpios, fora da ordem natural, como crescendo no reino; e o arrebatamento da Igreja. Mas, para os Seus discípulos, o Senhor explica tudo o que era necessário para lhes fazer compreender perfeitamente os termos da parábola. Vem em seguida o Julgamento executado pelo Filho do homem sobre os malfeitores, que são lançados no fogo; e a manifestação dos justos na glória estes últimos acontecimentos têm lugar depois de o Senhor ter ressuscitado e posto fim à forma exterior do reino dos céus sobre a Terra, sendo os malfeitores ligados em grupos e os santos arrebatados para o Céu (1).
(1) Note-se também que o reino dos céus está dividido em duas partes: o reino do Filho do homem, e o reino de nosso Pai; os objetos do julgamento naquilo que está submetido a Cristo, e um lugar semelhante ao Seu para filhos perante o Pai.
E agora, tendo explicado a história e os seus resultados em Julgamento e em glória para pleno conhecimento dos Seus discípulos, o Senhor comunica-lhes os pensamentos de Deus acerca do que se passava na Terra enquanto os acontecimentos notórios e terrestres do reino se desenvolviam — coisas que o homem espiritual devia ali discernir. O reino dos céus era para ele, para aquele que compreendesse o propósito de Deus, como um tesouro escondido num campo. Um homem encontra o tesouro, e compra o campo a fim de o possuir. O campo não era o seu objetivo, mas sim o tesouro que nele estava.
Assim Cristo adquiriu o mundo. Ele possui-o de direito. O Seu objetivo é o tesouro nele escondido, o Seu próprio povo, toda a glória da redenção a ele ligada; numa palavra, a Igreja é considerada não na sua beleza moral e, em certo sentido, divina, mas como objeto especial dos desejos e do sacrifício do Senhor — o que o Seu coração tinha achado neste mundo, segundo os planos e propósitos de Deus.
Nesta parábola, trata-se do poderoso atrativo desta «coisa nova» que induz aquele que a encontra a comprar todo o campo, a fim de a possuir.
Os Judeus não eram uma coisa nova; o mundo não tinha nenhum atrativo; mas este novo tesouro induziu Aquele que o tinha descoberto a desfazer-Se de tudo para o obter. Com efeito, Cristo tudo deixou.
Não só Se aniquilou a Si mesmo para nos remir, mas também renunciou a tudo o que Lhe pertencia como homem, como o Messias na Terra, as promessas, os Seus direitos reais, a Sua vida, para tomar posse do mundo, que continha em si este tesouro, o povo que Ele amava.
Na parábola da pérola de grande preço temos a mesma ideia, mas modificada pelas outras (versos 45-46). Um negociante procurava boas pérolas. Ele sabia o que fazia. Tinha gosto, discernimento, conhecimento daquilo que procurava.
Era a notória beleza do tesouro que motivava a sua procura.
Quando encontrou uma pérola que respondia aos seus pensamentos, ele sabe que vale a pena vender tudo para a possuir. Ela é valiosa aos olhos daquele que sabe apreciar o seu valor. Por isso ele compra só a pérola — e nada mais. De igual modo Cristo encontrou na Igreja uma beleza tal e (por causa dessa beleza) um valor que O levam a deixar tudo para a obter. É precisamente o que tem lugar acerca do reino.
Considerando o estado espiritual do homem, até mesmo o dos Judeus, a glória de Deus exigia que tudo fosse abandonado a fim de possuir esta coisa nova; porque nada havia no homem que Cristo pudesse tomar para Si. O Senhor não só encontrava prazer em deixar tudo para possuir esta coisa nova; mas aquilo que o Seu coração procura, aquilo que não encontra em qualquer outra parte, encontrou-o no que Deus lhe deu, no reino. Não comprou outras pérolas. Antes de ter descoberto esta pérola, Ele não tinha nenhum motivo para se desfazer de tudo o que tinha. Mas logo que a viu, tomou uma decisão: abandona tudo por amor dela. O seu valor leva-O a decidir-Se, porque Ele sabe julgar e procura com discernimento.
Não quero dizer que os filhos do reino não sejam influenciados pelo mesmo princípio. Quando temos compreendido o que significa ser filho do reino, deixamos tudo para dele gozarmos, para pertencermos à pérola de grande preço. Mas não compramos algo que não seja o tesouro, para podermos ter mesmo o tesouro; e estamos bem longe de procurarmos belas pérolas antes de termos encontrado a pérola de grande preço. Estas parábolas, no seu pleno alcance, não se aplicam senão a Cristo. O fim em vista com estas parábolas é fazer sobressair o contraste entre o que se fazia então e tudo aquilo que tinha sido feito antes — a saber, as relações do Senhor com os Judeus.
Resta-nos ainda examinar uma das sete parábolas, a da rede lançada ao mar (versos 47-50). Nesta parábola não há a mínima mudança nas pessoas empregadas, quer dizer, na própria parábola. Os mesmos pescadores que lançaram a rede a puxam para a praia e fazem a separação, colocando nos cestos os peixes bons e não ligando importância aos maus. 0 trabalho dos que puxam a rede para a praia consiste em apanhar o peixe bom; e é só depois de terem desembarcado que isso é feito. Fazer a separação é, sem dúvida, o trabalho deles; mas só têm de se preocupar com o peixe bom. Eles conhecem-no bem. Ter peixe bom é o trabalho deles, o objetivo da pesca. Sem dúvida, outros peixes entram na rede e ali são retidas juntamente com os bons; mas eles não são bons. Não é necessário outra opinião. Os pescadores conhecem o bom peixe. Nem todos os peixes são bons. Os bons são postos à parte. Aqueles que não podem ser assim considerados, deixam-nos. Este ato dos pescadores faz parte da própria história do reino dos céus. Não se trata aqui do Julgamento dos maus. 0 peixe mau é deixado na praia, quando os pescadores apanham o bom para os cestos. Não se trata aqui do destino final, nem dos bons nem dos maus. O destino dos bons não é serem postos à parte na praia, nem o dos outros somente o serem deixados lá. Isso é posterior à ação da parábola. E, quanto aos maus, o seu Julgamento não consiste apenas na sua separação dos bons, aos quais tinham sido misturados, mas na sua destruição. A execução do Juízo não faz parte da parábola, nem nesta nem na do joio ou do trigo. Nesta, o joio é atado em molhos e deixado no campo: aqui o peixe mau é lançado fora da rede.
Assim a rede do Evangelho tem sido deitada ao mar das nações e nela têm entrado homens de toda a sorte.
Após essa colheita geral que encheu a rede, os obreiros do Senhor, cuidando dos bons, juntam-nos, separando-os dos maus. Convém notar que isto é uma semelhança do reino. É o carácter que o reino toma, quando o Evangelho tem reunido uma massa de crentes bons e maus. Por fim, quando a rede tiver sido tirada com todas as espécies nela incluídas, os bons são separados, porque são preciosos; os outros são deixados. Os bons são reunidos em diversos vasos. Os santos são reunidos, não pelos -anjos, mas pela obra daqueles que têm trabalhada em Nome do Senhor.
A distinção não é feita por meio do Juízo, mas pelos servos ocupados com os bons.
A execução do Julgamento é um assunto diferente. Os obreiros nada têm a ver com isso. Na consumação do século virão os anjos e separarão os malfeitores de entre os justos — não os bons de entre os restantes, como os pescadores fizeram—e lançá-los-ão no lago de fogo, onde haverá pranto e ranger de dentes (versos 49-50). Não nos é dito aqui que os anjos estão ocupados com os justos.
A tarefa de apanhar para os cestos os peixes bons não pertencia aos anjos, mas sim aos pescadores. Os anjos estão nas duas parábolas ocupados com os maus. O resultado público tinha sido visto, quer durante o período do reino dos céus, quer depois, na parábola do joio.
Não é aqui repetido. A obra que deve ser feita acerca dos justos, quando a rede estiver cheia, é aqui acrescentada. 0 destino dos maus e o dos ímpios é dado uma segunda vez para distinguir o trabalho feito acerca deles da obra feita pelos pescadores, que juntam os bons em diversos vasos, Além disso o destino dos maus é apresentado sob um outro ponto de vista, os justos são deixados no seu lugar, O Julgamento dos ímpios é declarado tanto na parábola do joio como nesta. São lançados lá, onde haverá pranto e ranger de dentes, mas o estado geral do reino é revelado, e os justos resplandecerão como o Sol na parte mais elevada do reino. Aqui fala-se só daquilo que a inteligência compreende, do que a mente espiritual vê; os justos são postos em vasos. Há, na primeira parábola, antes do Julgamento, pelo poder espiritual, uma separação que não existia no estado público geral do reino; havia só o que a providência fizera no campo, e o bom grão é recebido no Céu, Aqui, a separação é efetuada em relação aos bons. Para a inteligência espiritual, este era o ponto principal — e não uma manifestação pública. De fato, o Julgamento será executado somente sobre os maus; os justos serão deixados lá (1).
(1) Em todas as profecias simbólicas e parábolas, a explicação vera depois da parábola o acrescenta fatos; porque o julgamento executado testemunha publicamente daquilo que, no tempo da parábola, pode ser discernido espiritualmente. A parábola pode ser espiritualmente compreendida. O resultado existe; o julgamento o mostrará publicam ente, de modo que, na explicação, devemos sempre ir além da parábola. O julgamento explica o que não 6 compreendido antes senão espiritualmente, e introduz uma nova ordem de coisas (comparar Daniel 7).
Na explicação da segunda parábola trata-se, no caso do joio, do Julgamento absoluto e final, que destrói e consome o que resta no campo e que tinha sido já junto e providencialmente separado do bom grão. Os anjos são enviados no fim, não para separarem o joio do trigo (o que já tinha sido feito), mas para lançarem o joio no fogo, purificando desse modo o reino. Na explicação da parábola dos peixes (verso 49) é feita a escolha. Haverá justos sobre a Terra, e os maus serão separados deles. O ensino prático desta parábola é a separação dos bons de entre os maus, e o ajuntamento em grupo de um grande número dos primeiros.
Isto repete-se mais de uma vez, sendo muitos dos bons reunidos em grupo também algures. Os servos do Senhor são os instrumentos empregados no que tem lugar na própria parábola.
Estas parábolas compreendem coisas novas e velhas, como lemos nos versos 51 e 52. A doutrina do reino, por exemplo, era uma doutrina bem conhecida. Que o reino tomaria as formas descritas pelo Senhor, que abrangeria todo o mundo sem distinção, que a existência do povo de Deus derivaria não de Abraão, mas sim da Palavra de Deus — tudo isto era completamente novo. Tudo era obra de Deus. 0 escriba tinha conhecimento do reino, mas ignorava inteiramente o carácter que ele tomaria como reino dos céus estabelecido pela Palavra de Deus neste mundo, da qual tudo depende aqui.
Em seguida o Senhor (versos 53 e seguintes) retoma os Seus trabalhos entre os Judeus (1).
(1) Os capítulos que se seguem são deveras Impressionantes no seu carácter. A pessoa de Cristo, como o Jeová do Salmo 132, é introduzida, mas Israel é rejeitado e os discípulos deixados sós enquanto Jesus ora no monte. Depois volta, reagrupa os Seus discípulos, e a região de Genesaré reconhece-O. Temos então, no capítulo 15, a descrição moral completa do terreno sobre o qual Israel permanecia realmente e deve permanecer; mas vai-se muito mais longe quanto ao coração do homem. Em seguida encontramos o que Deus é, revelado em graça à fé, mesmo quando esta se encontra num. Gentio. Historicamente. Ele reconhece ainda. Israel, mas em perfeição divina; agora, está num poder administrativo humano. No capítulo 16 a Igreja é então profeticamente introduzida, e, no capítulo 17, está em vista o reino de glória. No capítulo 16 é-lhes proibido dizer que Ele é o Cristo. Acabou-se.
Para eles, Jesus era apenas «o filho do carpinteiro»; conheciam a Sua família segundo a carne, O reino dos céus não existia aos seus olhos.
A revelação deste reino foi feita algures, noutra passagem da Escritura, onde o conhecimento das coisas divinas foi comunicado. Os Judeus nada viam para além daquelas coisas que o coração natural podia perceber. A benção do Senhor era impedida pela incredulidade deles. Jesus era rejeitado por Israel como profeta do mesmo modo que como Rei.
CAPÍTULO 14
O Evangelho segundo S. Mateus retoma o curso histórico dessas revelações, mas de maneira a fazer sobressair o espírito que animava o povo. Herodes (amando mais o seu poder terrestre e a sua própria glória do que a submissão ao testemunho de Deus, e convencido mais por um falso pensamento humano do que pela consciência, embora em muitas coisas pareça ter reconhecido o poder da verdade) tinha decapitado o precursor do Messias, João Batista, a quem havia já encarcerado a fim de afastar da vista de sua mulher aquele que tinha repreendido fielmente o pecado em que ela vivia.
Jesus é sensível ao alcance desse ato, que Lhe é relatado.
Cumprindo, em serviço humilde (embora pessoalmente exaltado acima dele) juntamente com João, o testemunho de Deus na congregação, sente-Se unido de coração e na Sua obra com ele, porque a fidelidade no meio do mal une intimamente os corações; e Jesus tinha condescendido em tomar um lugar onde se tratava de fidelidade (ver os Salmos 9:9-10 e 40:9-10). Ouvindo o relato da morte de João, Jesus retira-Se para um lugar deserto. Porém, embora afastando-Se da multidão, que começava assim a agir abertamente na rejeição do testemunho de Deus, Jesus não cessa de suprir todas as suas necessidades, e de testificar desse modo que podia ministrar divinamente a todas as necessidades que havia entre eles. A multidão, que sentia essas necessidades e que, embora não tivesse fé, admirava o poder de Jesus, seguiu-O até ao deserto; e Jesus, movido de compaixão, curou todos os seus enfermos. Chegada à tarde, os discípulos pedem-Lhe que despeça a multidão, para que ela possa comprar comida. Jesus recusa e dá um testemunho notável da presença, na Sua Pessoa, de Aquele que havia de satisfazer os pobres do Seu povo, dando-lhes pão com abundância (Salmo 132:15). Jeová, o Senhor, que estabelecera o trono de Davi, estava ali na Pessoa de Quem havia de herdar esse trono. Não há dúvida de que doze cestos de pedaços de pão dizem respeito ao número que, nas Escrituras, significa sempre a perfeição do poder administrativo no homem.
É de notar também que o Senhor espera que os Seus doze discípulos sejam capazes de servir de instrumentos para cumprirem os Seus atos de bênção e de poder, administrando segundo o Seu poder as bênçãos do reino. «Dai-lhes vós de comer», diz Ele (verso 16). Isto aplica-se à bênção do reino do Eterno e aos discípulos de Jesus, os doze, como sendo os ministros; mas há igualmente um princípio muito importante quanto ao efeito da fé em todas as intervenções de Deus em graça. A fé deveria poder usar do poder que atua numa tal intervenção, para produzir as obras que são próprias a esse poder segundo a ordem desta dispensação e da compreensão que a fé tem dela.
Encontraremos noutro lugar este princípio mais plenamente desenvolvido.
Os discípulos queriam despedir a multidão, por não saberem servir-se do poder de Cristo. Deveriam ter sabido usar dele em favor de Israel, de conformidade com a glória d'Aquele que Se encontrava no meio deles.
Se agora o Senhor demonstrava, com perfeita paciência, pelos Seus atos, que Aquele que podia assim abençoar Israel estava no meio do Seu povo, nem por isso deixaria de dar testemunho da Sua separação desse povo, por causa da sua incredulidade. Jesus ordena aos Seus discípulos que entrem num barco e passem para a outra banda do mar sozinhos; e, despedindo Ele próprio a multidão, sobe ao monte, a ura lugar isolado, para orar, enquanto o barco com os discípulos era açoitado pelas ondas, porque o vento era contrário —um quadro vivo do que tem acontecido.
Deus tem, com efeito, enviado o Seu povo sozinho para atravessar o mar tormentoso do mundo, enfrentando uma oposição contra a qual é difícil lutar. Durante esse tempo, Jesus, só, ora nas alturas. Despediu o Seu povo judaico, que O havia rodeado durante o período da Sua presença neste mundo.
Além do seu carácter geral, a partida dos discípulos põe diante de nós, de um modo notável, o Remanescente judeu.
Pedro, individualmente, saindo do barco, vai, em figura, além da posição deste Remanescente. Ele apresenta aquela fé que, desprezando a comodidade terrestre do barco, vai ao encontro de Jesus, que Se lhe revelou. Pedro anda sobre o mar—um ato destemido, mas baseado- na palavra de Jesus: «Vem» (verso 29). Mas note-se que este andar de Pedro sobre as ondas não tem outro fundamento senão estas palavras: «Se és Tu» (verso 28), quer dizer, o próprio Jesus. Não existe apoio algum, nem nenhuma possibilidade de andar, se Cristo for perdido de vista. Tudo depende d'Ele. No barco há um meio bem conhecido, mas nada mais senão a fé, que olha para Jesus, permite andar sobre a água.
O homem, apenas como homem, afunda-se pelo simples fato de estar em semelhante posição. Nada pode suster-se sobre as águas, exceto pela fé que recebe de Jesus a força que há n'Ele e que O imita. Mas é grato imitar a Jesus; está-se então mais perto d'Ele, mais semelhante a Ele. É esta a verdadeira posição da Igreja, em contraste com o Remanescente no seu aspecto normal. Jesus anda sobre a água como em terreno sólido. Àquele que criou os elementos tal como eles são, pode bem dispor das suas qualidades a Seu bel-prazer. Permite que se levantem tempestades para provar a nossa fé. Anda sobre as ondas alterosas do mesmo modo que anda sobre a acalmia. Aliás, a tempestade não faz -diferença. O que se afunda nas águas, tanto o faz no temporal como na calmaria; e o que pode andar sobre elas, tanto o faz na calmaria como no temporal— porém, desde que se olha para as circunstâncias, a fé falta e o Senhor é esquecido. Muitas vezes, com efeito, as circunstâncias levam-nos a esquecer Jesus, ali onde a fé n'Aquele que está acima de todas as coisas deveria tornar-nos capazes de as dominar.
No entanto—Deus seja bendito! — Aquele que, pelo Seu próprio poder, anda sobre as águas está lá para suster a fé e os passos vacilantes do pobre discípulo; de qualquer modo, essa fé tinha levado Pedro tão perto de Jesus que Este lhe estende a mão e o segura. O erro de Pedro foi olhar para as ondas, para a tempestade (que, afinal, nada tinha a ver com o resto), em vez de olhar para Jesus, que não tinha mudado, e andava sobre as próprias ondas, como a sua fé deveria ter observado. Contudo, o grito de angústia põe em ação o poder de Jesus, como a sua fé deveria ter feito; simplesmente era para sua vergonha agora, em vez de ser o gozo da comunhão andando como o Senhor.
Quando Jesus entrou no barco, o vento acalmou. Assim será também quando Jesus voltar para o Remanescente do Seu povo neste mundo.
Então também Ele será adorado como Filho de Deus por todos aqueles que estão no barco com o Remanescente de Israel. Em Genesaré, Jesus exerce de novo o poder que mais tarde expulsará da Terra todo o mal que Satanás ali tem feito. Porque quando Ele voltar, o mundo O reconhecerá. Este é um belo quadro do resultado da rejeição de Cristo, que este Evangelho nos deu já a conhecer no modo como Jesus tomou lugar no meio do povo judeu.
CAPÍTULO 15
Este capítulo apresenta-nos o homem e Deus, contraste moral entre a doutrina de Cristo e a dos Judeus; assim, o sistema judaico é moralmente rejeitado por Deus. Quando falo do sistema, refiro-me a todo o estado moral dos Judeus, sistematizado pela hipocrisia que procurava ocultar a iniquidade, ao mesmo tempo que a aumentava aos olhos de Deus, perante Quem se apresentavam. Serviam-se do Nome de Deus para descerem, sob o pretexto de piedade, mais baixo que as regras da consciência natural. É assim que um sistema religioso se converte no grande instrumento do poder do Inimigo, e mais particularmente quando aquilo de que esse sistema usa ainda o nome, foi instituído por Deus. Mas então o homem é julgado, porque o Judaísmo era o homem com a lei e sob a cultura de Deus.
O Julgamento que o Senhor pronuncia sobre este sistema de hipocrisia, ao mesmo tempo que manifesta a consequente rejeição de Israel, dá lugar a um ensino que se estende muito para além desse sistema; e que, perscrutando o coração humano, e julgando o homem segundo o que dele procede, prova ser o coração uma fonte de toda a espécie de iniquidade; e, desta forma, torna evidente que toda a verdadeira moralidade tem a sua base na convicção e confissão do pecado. Porque, sem esta convicção e sem esta confissão, o coração é sempre falso e em vão se vangloria.
Desta forma também Jesus remonta à origem de tudo, e sai das relações especiais e temporárias da nação judaica para entrar na verdadeira moralidade que pertence a todas as épocas. Os discípulos não observam a tradição dos anciãos (versos 1-2); o Senhor não Se prende com ela.
Aproveita a acusação para fazer notar à consciência dos acusadores esta verdade, que o Juízo motivado pela rejeição do Filho de Deus era permitido também com o fundamento dessas relações que já existiam entre Deus e Israel. Os Escribas e os Fariseus invalidavam pela sua tradição o mandamento de Deus, e isto num ponto de capital importância, aquele de que dependiam todas as bênçãos terrestres para os filhos de Israel. Por meio dessas mesmas ordenanças, Jesus (versos 8-9) denuncia também a hipocrisia, o egoísmo e a avareza daqueles que pretendiam guiar o povo e formar o seu coração à moralidade e ao culto de Jeová. Isaías tinha já pronunciado o julgamento deles.
Era seguida o Senhor mostra à multidão (versos 10 e seguintes) que se trata daquilo que o homem é, do que sai do seu coração, do íntimo do seu ser; e assinala as tristes torrentes que emanam dessa corrupta origem. Mas o que escandalizava aqueles que a si mesmos se consideravam justos, o que era ininteligível para os próprios discípulos, era a simples verdade acerca do coração do homem, tal como é conhecido de Deus. Não há nada mais simples do que a verdade, quando é conhecida; e nada mais difícil nem mais obscuro do que o juízo acerca dela, quando feito pelo coração do homem que a não possui; porque o homem julga segundo os seus próprias pensamentos—e a verdade não está neles. Numa palavra, Israel, e particularmente o Israel religioso e a verdadeira moral são postos em contraste: o homem é colocado sob a sua própria responsabilidade e no seu verdadeiro estado perante Deus.
Jesus sonda o coração; mas, agindo em graça, atua de harmonia com o coração de Deus e manifesta-o saindo, por uns e por outros, dos termos convencionais das relações de Deus com Israel. Uma Pessoa divina, Deus, pode andar na aliança que tem dado, mas não pode ser limitado por ela, A infidelidade do Seu povo a essa aliança fornece a ocasião de nos mostrar o Senhor indo além desse lugar. Note-se aqui o efeito da religião tradicional que cega o julgamento moral. O que haveria de mais claro e de mais simples do que esta verdade, que o que contamina o homem não é o que ele come, mas sim o que sai da sua boca e do seu coração? Mas os discípulos não podiam compreendê-la, influenciados como estavam pelo desprezível ensino farisaico, que substituía a pureza interior por vistosas formas exteriores. Cristo deixa então os termos de Israel e as Suas disputas com os doutores de Jerusalém, para ir visitar os lugares que estavam mais afastados dos privilégios judaicos.
Foi para as bandas de Tiro e de Sidon (verso 21), cidades que Ele próprio tinha usado como exemplo do que estava mais longe do arrependimento. Veja-se o capítulo 11, onde são equiparadas com Sodoma e Gomorra, mas como estando ainda mais endurecidas do que elas.
Uma mulher vem dessas regiões. Era uma mulher dessa raça maldita, segundo os princípios que distinguiam Israel (Deuteronômio 7:1-2).
Era uma mulher cananeia. Vem para pedir a intervenção de Jesus em favor de sua filha, possessa de um demónio. Pedindo a Jesus esse favor, ela serve-se do título que a fé reconhecia ao Senhor na Sua relação com os Judeus: Chama-O «Filho de Davi». Isto dá lugar a um completo desenvolvimento da posição do Senhor, ao mesmo tempo que condições sob as quais o homem podia esperar ter parte no efeito da Sua bondade, na revelação do próprio Deus.
Como Filho de Davi Ele nada tem a ver com uma Cananeia, - Não lhe responde. Os discípulos desejavam livrar-se dela, ainda que concedendo-lhe o que ela pedia, para porem termo à sua importunidade. O Senhor diz-lhes que não fora enviado senão às ovelhas perdidas da Casa de Israel, como lemos no verso 24. Esta era, com efeito, a verdade. Fossem quais fossem os desígnios de Deus, manifestados por ocasião da Sua rejeição (ver Isaías 49), Ele era ministro da circuncisão pela verdade de Deus, a fim de cumprir as Suas promessas feitas aos pais (Romanos 15:8).
A mulher, em linguagem mais simples e direta, expressão mais natural dos seus sentimentos, pede a misericordiosa intervenção d'Aquele em cujo poder ela confia. O Senhor responde-lhe que não é bom tomar o pão dos filhos e dá-lo aos cães (verso 26). Vemos aqui a Sua verdadeira posição, vindo para Israel; as promessas eram para os filhos do reino. O Filho de Davi era o administrador dessas promessas.
Poderia Ele, como tal, desfazer o que distinguia o povo de Deus? Alas esta fé que se fortalece com a necessidade, e que não encontra outro recurso senão no próprio Senhor, aceita a humilhação do seu estado, c conclui que com Ele há pão para matar a fome daqueles que não têm direito a ele.
Esta fé persevera também, porque há uma necessidade premente, e confiança no poder d'Aquele que veio em graça.
Que tinha feito o Senhor na Sua aparente dureza? Tinha levado a pobre mulher ao sentimento e à expressão do seu verdadeiro lugar perante Deus, quer dizer, à verdade a seu respeito. Mas então era verdade para dizer que Deus era menos bom do que ela pensava, menos rico em misericórdia para com a desprezada, que não tinha esperança nem confiança senão nessa misericórdia? Dizer isso teria sido negar o carácter e a natureza de Deus, de que Jesus era a expressão, a verdade, e a testemunha sobre a Terra; teria sido negar-Se a Si próprio e ao objetivo da Sua missão.
Jesus não podia dizer: «Deus não tem uma migalha para uma tal criatura». Antes responde de todo o coração: «Ó mulher! grande é a tua fé; seja isso feito para contigo como tu desejas». Deus sai dos estreitos limites da Sua aliança com os Judeus para atuar na Sua soberana bondade, segundo a Sua própria natureza. Sai deles para ser Deus em bondade e não meramente Jeová em Israel.
Mas esta bondade é manifestada para com uma alma levada a reconhecer, em face dessa bondade, que não tem nenhum direito a ela.
Era para este ponto que a aparente dureza do Senhor a tinha conduzido. Ela recebia tudo pela graça, embora cm si mesma fosse indigna de tudo. É assim, e somente assim, que toda a alma obtém a bênção.
Não é somente o sentimento das suas necessidades—a mulher cananeia tinha-o desde o princípio — eram essas necessidades que a levavam lá. Não basta reconhecer que o Senhor Jesus pode responder a essas necessidades — a mulher vem com esse conhecimento; é necessário estarmos na presença da única fonte de benção e sentirmos que, apesar de ali estarmos, não temos o direito de nos aproveitarmos dela. E isto é uma posição terrível. Quando assim acontece, tudo é graça. Deus pode então agir de harmonia com a Sua bondade, e responde a todos os desejos que o coração possa nutrir para sua felicidade.
Portanto, vemos Cristo aqui como servo da circuncisão pela verdade de Deus, para a confirmação das promessas feitas aos pais, e para que os Gentios pudessem também glorificar a Deus pela Sua misericórdia, como está escrito (Romanos 15:8-9). Ao mesmo tempo esta última verdade torna manifesta a verdadeira condição do homem, e a plena e perfeita graça de Deus. Deus atua segundo esta verdade, permanecendo fiel às Suas promessas; e a sabedoria do Deus é manifestada de um modo que causa admiração.
Vemos como a introdução, neste lugar, da história da mulher cananeia desenvolve e põe em evidencia esta parte do Evangelho. 0 princípio do capítulo expõe o estado moral dos Judeus, a falsidade de uma religiosidade farisaica e sacerdotal; mostra o verdadeiro estado do homem como tal, aquilo de que o coração do homem era a fonte, e revela em seguida o coração de Deus tal como é manifestado em Jesus. Os caminhos de Jesus para com esta mulher mostram a fidelidade de Deus às Suas promessas; e a bênção finalmente concedida faz sobressair a plena graça de Deus em relação com a manifestação do verdadeiro estado do homem, reconhecido pela consciência — a graça elevando-se acima da maldição que pesava sobre o objeto dessa mesma graça — elevando-se acima de tudo, para abrir caminho até à necessidade que a fé lhe apresentava.
O Senhor retira-Se agora dali e vai para a Galileia, lugar onde estava em relação com o desprezado Remanescente dos Judeus. Não era nem Sião, nem o templo, nem Jerusalém, mas os pobres do rebanho, onde o povo estava em espessas trevas (Isaías 9:2). Lá a Sua compaixão segue esse pobre Remanescente e exerce-se ainda em seu favor.
O Senhor renova mais uma vez a evidência, não apenas das Suas ternas misericórdias, mas da Sua presença que satisfazia os pobres do Seu povo, alimentando os com pão! Não é, no entanto, pelo poder administrativo que Ele podia conceder aos Seus discípulos, mas sim segundo a Sua própria perfeição e atuando Ele mesmo. Provê às necessidades do Remanescente do Seu povo. Em consequência, do resto dos pedaços de pão que sobejaram encheram ainda sete cestos (verso 37). Jesus parte dali sem que algo mais tenha acontecido.
Vimos a moral eterna e a verdade interior substituírem a hipocrisia das formas, a religião legal do homem e o seu coração revelado como sendo uma fonte de mal e nada mais; e o coração de Deus, plenamente revelado, elevando-Se acima de ioda a dispensação a fim de manifestar a perfeita graça que está em Cristo. Deste modo as dispensações são pastas de lado, embora plenamente reconhecidas, e, por isso, o homem e Deus plenamente postos em evidência.
É um capítulo maravilhoso no que há de eterno na verdade que concerne a Deus, e o que a revelação de Deus mostra no homem. E isto, note-se, dá ocasião de revelar, no capítulo seguinte, a Igreja, que não é uma dispensação, mas que é fundada sobre o que Cristo é, o Filho do Deus vivo.
No capítulo 12 Cristo era rejeitado segundo uma dispensação, e, no capítulo 13, o reino era substituído. Aqui o homem é pasto de lado, assim como o que ele tinha feito da lei, e Deus atua segundo- a Sua própria graça acima de todas as dispensações. Aparecem então a Igreja e o reino em glória.
CAPÍTULO 16
O capítulo 16 vai mais longe do que a simples revelação da graça de Deus. Jesus revela o que devia formar-se nos desígnios dessa graça onde Ele era reconhecido, mostrando que os orgulhosos do povo de Deus são rejeitados, que Deus os aborrece (Zacarias 11), do mesmo modo como eles O aborrecem. Fechando os olhos (devido à perversidade da vontade deles) aos maravilhosos e beneficentes sinais do Seu poder, que constantemente Ele empregava a favor dos pobres que O procuravam, os Fariseus e Saduceus—surpreendidos com essas manifestações, embora incrédulos de coração e determinação — pedem um sinal do Céu. O Senhor censura-os pela sua incredulidade, mostrando-lhes que eles sabiam bem distinguir a aparência do céu (versos 2-3), mas que os sinais dos tempos os não despertavam. Eram uma geração má e adúltera que estava na Sua frente — e deixa-os: Expressão bem significativa do que se passava então em Israel.
O Senhor Jesus adverte os Seus discípulos da subtileza destes adversários da verdade e d'Aquele que Deus tinha enviado para revelar essa verdade (versos 5-12). Israel, como povo, é abandonado nas pessoas dos seus chefes. Ao mesmo tempo recorda em paciente graça aos discípulos a explicação que lhes havia dado.
Em seguida Jesus pergunta aos Seus discípulos o que era que os homens diziam d'Ele, como lemos nos versos 13 e seguintes. Tratavase de toda a sorte de opiniões, e não de fé; isto é, da incerteza que pertence h indiferença moral, com ausência daquela necessidade cônscia de uma alma que só pode descansar na verdade, no Salvador que se tem encontrado.
Depois Jesus pergunta aos discípulos o que era que eles próprios diziam d'Ele. Pedro, a quem o Pai Se tinha dignado revelar-Se, declara a sua fé, respondendo-Lhe: «Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo».
Não há nenhuma incerteza aqui, nem simples opinião, mas sim o poderoso efeito da revelação feita pelo próprio Pai, da pessoa de Cristo, ao discípulo que Ele havia escolhido para gozar de um tal privilégio.
Aqui a condição do povo manifesta-se de uma maneira notável, não acerca da lei, como no capítulo precedente, mas a respeito de Cristo, que lhe tinha sido apresentado.
Vemo-la em contraste com a revelação da Sua glória àqueles que O seguiam. Deste modo temos três classes distintas: em primeiro lugar os Fariseus arrogantes e incrédulos; em seguida, as pessoas que sentiam e reconheciam haver em Cristo um poder e uma autoridade divinos, mas que continuavam indiferentes; finalmente, a revelação de Deus e a fé divinamente concedida.
No capítulo 15, a graça para com aquela que só nessa mesma graça tem esperança, é posta em contraste com a desobediência e com a perversão hipócrita da lei, pela qual os Escribas e os Fariseus procuravam ocultar essa desobediência sob o pretexto de piedade.
O capítulo 16, julgando a incredulidade dos Fariseus a respeito da Pessoa de Cristo, e pondo de lado esses homens perversos, apresenta a revelação da Sua pessoa como fundamento da Igreja, que devia substituir os Judeus como testemunha de Deus sobre a Terra; e anuncia os desígnios de Deus acerca do seu estabelecimento.
Juntamente com isto, mostra-nos a administração do reino, tal como era agora estabelecido na Terra.
Consideremos primeiramente a revelação da Pessoa de Cristo. Pedro confessa que Jesus é o Cristo, o cumprimento das promessas feitas por Deus e das profecias que anunciavam a sua realização. Ele era Aquele que devia vir, o Messias que Deus tinha prometido. Além disso, Ele era o Filho de Deus. O Salmo 2 tinha anunciado que, apesar dos conluios dos chefes perversos do povo e da orgulhosa inimizade dos reis da Terra, o Rei de Deus seria consagrado sobre o monte de Sião.
Era o Filho, gerado de Deus. Os reis e os juízes da Terra (1) são chamados a submeterem-se Lhe, para não serem feridos com o ceptro do Seu poder, quando Ele tomar as nações por Sua herança. Assim o verdadeiro crente esperava o Filho de Deus, nascido na plenitude dos tempos sobre a Terra.
(1) O estudo dos Salmos fez-nos compreender o que está em relação com o e estabelecimento em bênção do Remanescente Judeu nos últimos dias.
Pedro confessou que Jesus era o Filho de Deus. Natanael também o tinha feito: «Tu és o Filho de Deus, tu és o Rei de Israel» (João 1:49).
E, mais tarde, Marta diz a mesma coisa, No entanto Pedro, especialmente instruído pelo Pai, acrescenta à sua confissão uma palavra simples, mas –muito poderosa: «Tu és o Filho do Deus vivo».
Jesus não é apenas Aquele que cumpre as promessas e responde "às profecias; é do Deus vivo que Ele é Filho, d'Aquele em Quem está a vida e o poder vivificante.
O Filho herda desse poder de vida em Deus, que nada pode vencer nem destruir. Quem é que pode vencer o poder d'Aquele — desse Filho—que era procedente de «Aquele que vive»? Satanás tem o poder da morte; é ele que mantém o homem sob o domínio dessa terrível consequência do pecado; e isto pelo justo Juízo de Deus, que faz a força desse domínio. A expressão do verso 18: «as portas do inferno», do lugar invisível, refere-se a esse reino de Satanás.
E, pois, sobre esse poder, que deixa sem força a fortaleza do Inimigo, que a Igreja é edificada. A vida de Deus não será destruída. O Filho do Deus vivo não será vencido. Portanto, aquilo que Deus edifica sobre a rocha do poder imutável de vida em Seu Filho não será derrubado pelo império da morte. Se o homem sucumbiu e se caiu sob o poder desse império, Deus, o Deus vivo não será vencido por ele. É sobre este fundamento que Deus edifica a Sua igreja. Ela é a obra de Cristo, fundada sobre Si como Filho do Deus vivo—e não do primeiro Adão nem baseada nele, fundada sobre a Sua obra, consumada segundo o poder que esta verdade revela. A Pessoa de Jesus, o Filho do Deus vivo, é a sua força. A ressurreição é a demonstração dessa força. Ali, Ele é declarado Filho de Deus em poder. Consequentemente, não é durante a Sua vida, mas sim quando ressuscitado de entre os mortos que Jesus começa esta obra. A vida estava n'Ele; mas é após o Pai ter quebrado as portas do próprio Inferno (é Ele que, pelo Seu divino poder, tinha feito isso e ressuscitado) que, subido às alturas, Ele começa, pelo Espírito Santo, a edificar aquilo que o poder da morte ou o poder daquele que o detinha — agora já vencido — nunca poderá destruir. É a Sua Pessoa que está em vista aqui e é sobre Ela que tudo é fundado. A ressurreição é a prova de que Ele é o Filho do Deus vivo, e de que as portas do Inferno nada podem contra Ele; o poder delas é destruído pela Sua ressurreição. Por isso nós vemos que a Igreja (embora formada sobre a Terra) é muito mais do que uma dispensação; mas o reino não o é.
A obra da Cruz era necessária; mas aqui não se trata de saber o que o justo Juízo de Deus exigia, ou da justificação de um indivíduo, mas daquilo que anulava o poder do Inimigo.
Era dado a Pedro reconhecer a Pessoa d'Aquele que vivia segundo o poder da vida de Deus. Era uma revelação particular e direta do Céu, da parte do Pai. Sem dúvida, Cristo tinha dado provas bastantes do Quem Ele era; mas as provas não tinham produzido qualquer efeito no coração do homem. A revelação do Pai era o meio de saber Quem Ele era, e isso ia muito além das esperanças de um Messias.
Aqui, o Pai tinha revelado diretamente a verdade da própria Pessoa de Cristo, revelação que ultrapassava toda a questão de relação com os Judeus. Sobre este fundamento, Cristo edificaria a Sua Igreja. Pedro, já assim chamado pelo Senhor, recebe, nesta ocasião, uma confirmação desse título.
O Pai tinha revelado a Simão, filho de Jonas, o mistério da Pessoa de Jesus; e Jesus anuncia também, por meio do nome que lhe dá (1), a estabilidade, a firmeza, a duração, a força prática do Seu servo favorecido pela graça.
(1) A passagem (capítulo 16:10) deve ser lida: «Também eu te digo».
O direito de dar um nome pertence a uma superior que pode marcar àquele que o usa o seu lugar e o seu nome na família ou na posição em que esse inferior se encontra. Este direito, quando é real, supõe o discernimento, compreensão daquilo que se faz: Adão dá nomes aos animais (Gênesis 2:19-20). Nabucodonosor dá novos nomes aos Judeus cativos (Daniel 1:7); o rei do Egito a Eliaquim, que tinha colocado no trono e a quem passou a chamar Jeoaquim (2 Reis 23:34).
Jesus toma, pois, este lugar, dizendo a Pedro: Meu Pai to revelou; e eu também te dou um lugar e um nome relacionado com esta graça. É sobre aquilo que o Pai te revelou que eu vou edificar a minha Igreja (1), contra a qual (fundada como é sobre esta lida que vem de Deus) as portas do império da morte não prevalecerão nunca; e eu que edifico, e que edifico sobre este fundamento inabalável, eu te dou o lugar de uma pedra (Pedro) em relação com este templo vivo.
(1) É importante distinguir aqui a Igreja que Cristo edifica, ainda não acabada, mas que Ele mesmo edifica, e que, manifestada como um todo no mundo, é edificada, sob responsabilidade, pelo homem. Em Efésios 2:20-21, e era 1 Pedro 2:4-5 temos esta construção que cresce e é edificada. Não é feita nenhuma menção do trabalho do homem, quer numa quer noutra dessas passagens; é um trabalho divino, em 1 Coríntios 3, Paulo é um sábio arquiteto; outros podem edificar de madeira, feno ou palha. Á confusão daí resultante tem sido a base do Papado e de outras corrupções que se encontram naquilo que se chama a Igreja. A igreja de Deus, vista na sua realidade, é uma obra divina que Cristo realiza e na qual Ele habita.
Pelo dom de Deus, tu pertences já por natureza ao edifício — pedra viva e tendo o conhecimento desta verdade que é o fundamento e que faz de cada pedra uma parte do edifício Pedro era por excelência uma pedra, por causa daquela confissão; era-o por antecipação pela eleição de Deus. 0 Pai, na Sua soberania, fez-lhe esta revelação.
O Senhor assina-lhe ao mesmo tempo o seu lugar como tendo, Ele, direito de administração e autoridade no reino que ia estabelecer.
Eis o que nos é dito acerca da Igreja, nomeada aqui pela primeira vez, tendo os Judeus sido rejeitados por causa da sua incredulidade, e o homem convencido de pecado.
Um outro assunto se apresenta ligado àquele da Igreja que o Senhor ia edificar; a saber, o reino que devia ser estabelecido. Este reino devia ter a forma do reino dos céus; era-o assim nos desígnios do Deus. Mas tendo o Rei sido rejeitado sobre a Terra, o reino ia estabelecer-se agora de uma maneira especial.
Aliás, embora fosse rejeitado, o Senhor tinha as chaves desse reino; a autoridade pertencia-Lhe. Mas confiá-las-ia a Pedro que, quando Ele, Cristo, tivesse partido, abriria as portas do reino, primeiramente aos Judeus c depois aos Gentios. Pedro devia exercer também a autoridade no reino, da parte do Senhor; de modo que o que ele ligasse na Terra em Nome de Cristo (o verdadeiro Rei, embora assumpto ao Céu) teria sido ligado no Céu; e se desligasse alguma coisa na Terra em Nome de Cristo, isso teria sido desligado no Céu. Numa palavra, Pedro tinha o poder de comando no reino de Deus na Terra, e este reino tinha agora o carácter de reino dos céus, porque o seu Rei estava no Céu, e o Céu marcaria com a sua autoridade os atos de Pedro. Mas o Céu sancionaria os seus atos terrestres, e não o fato de ligar ou desligar para o Céu. A Igreja, relacionada com o carácter do Filho do Deus vivo e edificada por Cristo, embora formada sobre a Terra, pertence ao Céu; o reino, embora dirigido de Céu, pertence à Terra — tem aqui o seu lugar e o seu serviço (1).
(1) Note-se bem isto, de que, aliás, já falei noutro lugar: Não há chaves nenhumas do ou para a Igreja ou Assembleia. Pedro tinha as chaves da administração do reino. Mas a ideia de chaves em relação com a Igreja, ou o poder das chaves na Igreja é puro sofisma. Não há nada de semelhante.
A Igreja é edificada; os homens não edificam com chaves, e é Cristo (e não Pedro) quem a edifica. Por outro lado, os atos assim sancionados eram atos de administração neste mundo. O Céu sancionava esses atos; mas têm relação com o Céu, mas apenas com a administração terrestre do reino. Além disso, forçoso é notar que o que é conferido aqui é individua! e pessoal. Era um nome e uma autoridade conferidos Simão, filho de Jonas.
Algumas outras notas ajudar-nos-ão a melhor compreender o alcance destes capítulos. Na parábola do semeador (capítulo 13), a Pessoa do Senhor não nos é apresentada; trata-se apenas de semear e não de ceifar. Na primeira analogia do reino, Ele é Filho do homem, e o campo é o mundo.
Jesus está inteiramente fora do Judaísmo. O capitulo 14 mostra-nos o estado das coisas, desde a rejeição de João Batista até ao tempo em que o Senhor, por Seu lado, for reconhecido ali mesmo, onde foi rejeitado. No capítulo 15, é a luta moral, e Deus vê-Se a Si próprio ali em graça, como estando acima do mal. Não me deterei mais sobre este assunto, Mas no capítulo 16, temos a Pessoa do Filho de Deus, o Deus vivo, depois a Igreja e Cristo o construtor; no capítulo 17, temos o reino com o Filho do homem vindo em glória. As chaves (embora o Céu sancione o uso que Simão delas faça) eram, como vimos, as do reino (e não da Igreja); e isso — a parábola do Joio o demonstra — devia corromper-se e destruir-se, irremediavelmente. Cristo — e não Pedro — edifica a Igreja (comparar 1 Pedro 2:4-5).
Portanto, quatro coisas são assinaladas pelo Senhor nesta passagem: Primeira, a revelação feita pelo Pai a Simão; Segunda, o nome dado a Simão por Jesus, que ia edificar a Sua Igreja sobre o fundamento revelado naquilo que o Pai tinha comunicado a Simão; Terceira, a Igreja edificada pelo próprio Cristo, ainda incompleta, sobre o fundamento da Pessoa de Jesus» reconhecido como 'Filho do Deus vivo; Quarto, as chaves do reino destinadas a Pedro, isto é, a autoridade no reino, dada a Pedro, como administrando-o da parte de Cristo, ordenando nele o que era da Sua vontade e que teria sido ordenado no Céu. Mas tudo isto está relacionado com Simão pessoalmente, em virtude da eleição do Pai (que, em Sua sabedoria, o tinha escolhido para receber esta revelação), e em virtude da autoridade de Cristo (que lhe tinha dado o nome que o distinguia pessoalmente no gozo deste privilégio).
Tendo o Senhor, deste modo, dado a conhecer os propósitos de Deus acerca do futuro — propósitos que se cumpririam na Igreja e no reino — já não havia lugar para a Sua apresentação é os Judeus como Messias. Não é que Ele abandonasse esse testemunho, cheio de graça e de paciência para com o povo, testemunho que Ele tinha prestado durante todo o Seu ministério, não! Esse testemunho continuava, de fato, mas os Seus discípulos deviam compreender que já não era obra deles anunciá-Lo ao povo como sendo o Cristo. Desde então Ele começou também a fazer compreender aos Seus discípulos que devia sofrer, ser morto e ressuscitar (versos 21 e seguintes).
Ora, por muito abençoado e honrado que Pedro fosse pela revelação que o Pai lhe tinha feito, o seu coração ainda se inclinava de um modo carnal para a glória humana do seu Mestre (e, para dizer a verdade, para a sua própria), e estava longe de se elevar à altura dos pensamentos de Deus. Mas, ai! Ele não está só! ... Ser convencido das mais elevadas verdades, e até mesmo desfrutá-las sinceramente como verdades, é algo muito diferente de ter o coração formado para os sentimentos e para andar no mundo de harmonia com essas verdades.
Não á a sinceridade no gozo da verdade que faz falta. O que é preciso é ter a carne, o ego mortificados, é estar morto para o mundo.
Podemos desfrutar sinceramente da verdade tal como Deus a ensina, e, no entanto, não termos a carne mortificada nem o coração num estado que seja segundo essa verdade em que Ele se move neste mundo.
Ped.ro (há pouco tão honrado pela revelação da glória de Jesus, e constituído, de maneira muito particular, o depositário da administração do reino confiada ao Filho — tendo um lugar destacado no estado de coisas que devia seguir-se à rejeição de Cristo pelos Judeus), Pedro faz agora a obra do Inimigo a respeito da perfeita submissão de Jesus ao sofrimento e à ignomínia que deviam introduzir essa glória e caracterizar o reino.
Infelizmente, a coisa era simples demais: Pedro pensava nas coisas do homem —e não nas de Deus. Mas o Senhor, na Sua fidelidade, repeleo, e ensina aos Seus discípulos que a Cruz é o único caminho, o caminho assente, necessário; e quem quisesse segui-Lo devia entrai nesse caminho que Ele tomava. Aliás, que aproveitaria ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma? Porque era disso que se tratava (1), e não da glória exterior do reino.
(1) Na primeira Epístola de Pedro encontramos frequentemente estes pensamentos — as palavras «esperança», «pedra viva» — aplicados primeiramente a Cristo e depois aos Cristãos. E, concordando com isto» a salvação pela vida cia Cristo, o Filho do Deus vivo, encontramos ainda aqui: «Alcançando o fim da vossa fé, a salvação das almas». Veja-se também todos os versos em que o apóstolo apresenta as suas instruções.
Após ter examinado este capítulo, como sendo a expressão da transição do sistema Messiânico para o estabelecimento da Igreja fundada sobre a revelação da Pessoa de Cristo, desejo chamar também a atenção para os caracteres de incredulidade que -ali se desenvolvem, quer entre os Judeus, quer nos corações dos discípulos. Ser-nos-á útil observarmos um pouco as formas dessa incredulidade: Em primeiro lugar cia toma uma forma mais grosseira, pedindo um sinal do Céu.
Os Fariseus e os Saduceus unem-se para mostrarem a sua insensibilidade a tudo o que o Senhor tinha feito. Pedem uma prova para os sentidos naturais, ou seja, para a sua incredulidade. Não querem crer em Deus, quer escutando as Suas palavras, quer considerando as Suas obras. Seria necessário que Deus satisfizesse a vontade deles, o que não seria nem a fé nem a obra de Deus. Eles tinham inteligência para as coisas humanas bem menos claramente manifestadas, mas não tinham nenhuma inteligência para as coisas de Deus. Por isso não lhes seria dado outro sinal senão o de um Salvador perdido para eles, como Judeus sobre a Terra. Teriam de se submeter, quer quisessem quer não, ao Juízo da incredulidade que manifestavam. O reino ser-lhes-ia tirado; o Senhor deixa-os.
O sinal de Jonas está ligado com o assunto de todo o capítulo.
Vemos em seguida a mesma falta de atenção para com o poder manifestado nas obras de Jesus; mas já não se trata da oposição da vontade incrédula: a preocupação do coração pelas coisas presentes subtrai-o à influência dos sinais já dados. Mas isto é fraqueza, e não má vontade.
No entanto, os discípulos são culpados, e Jesus chama-os «homens de pouca fé», mas não «hipócritas» nem «geração perversa e adúltera».
Vemos depois a incredulidade manifestar-se sob a forma de uma opinião indolente, que mostra que o coração e a consciência daqueles de que se trata não se interessam por um assunto que deveria dominálos — assunto de tal ordem que se o coração pensasse realmente na sua verdadeira importância, não teria descanso enquanto não tivesse tido inteira certeza a seu respeito. Neste caso a alma não sente necessidade de nada e por isso não tem discernimento.
Quando a alma sente necessidades, uma só coisa pode satisfazê-la—e não pode haver descanso enquanto a não encontrar, A revelação de Deus que criou essas necessidades não deixa a alma tranquila até que ela possua com toda a certeza o que a despertou. Os que não sentem necessidades, podem permanecer nas probabilidades, cada um segundo o seu caráter natural, a sua educação e as suas circunstâncias.
Existem muitas coisas para despertar a curiosidade — a mente está ocupada com elas e faz o seu juízo. A fé tem necessidades, e, em princípio, tem compreensão do objeto que responde a essas necessidades; a alma e exercitada até encontrar o que precisa. O fato é que Deus está presente.
É o caso de Pedro. O Pai revela-lhe o Seu Filho. Embora fosse fraco, encontra-se nele uma fé viva, e reconhece-se o estado da sua alma quando diz: «Senhor, para quem iremos nós? Tu tens as palavras da vida eterna, e nós temos visto e crido que tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo» (João 6:68-69). Feliz o homem a quem Deus revela tais verdades! em quem desperta tais necessidades! Pode haver lutas, muita coisa para aprender, muito que mortificar; mas o plano de Deus está ali com a vida que com isso se relaciona. Vimos o seu efeito no caso de Pedro. Cada crente tem o seu lugar no templo do qual Simão era uma pedra tão destacada. Segue-se então que o coração esteja, na pratica, à altura da revelação que lhe foi feita? Não; a carne, ao fim e ao cabo, pode não estar mortificada do lado onde a revelação toca a nossa posição terrestre.
Com efeito, a revelação feita a Pedro implicava a rejeição do Cristo neste mundo — levava necessariamente à humilhação de Cristo e à Sua morte. Esse era o ponto essencial.
Substituir a revelação do Filho de Deus, da Igreja e do reino celeste pela manifestação do Messias na Terra — o que isso significava, senão que Jesus devia ser entregue aos Gentios, ser crucificado, e depois ressuscitar? Mas Pedro não havia prestado moralmente atenção a tudo isso.
Pelo contrário, o seu coração carnal aproveitava-se da revelação que lhe linha sido feita e do que o Senhor lhe tinha dito, para se elevar aos seus próprios olhos. Ele via, pois, a glória pessoal de Jesus, sem lhe apreender as consequências morais. Põe-se a repreender o próprio Senhor e procura afastá-lo do caminho da obediência e da submissão.
O Senhor, sempre fiel, trata-o então como um adversário.
Infelizmente, quantas vezes temos nós gozado, gozado sinceramente de uma verdade, e, no entanto, faltado às consequências práticas que daí decorriam para nós sobre a Terra! Um Salvador celeste, glorificado, que edifica a Igreja — isso implica a Cruz sobre a Terra.
A carne não compreende isto. Ela elevará o seu Messias ao Céu, por assim dizer; mas tomar a sua parte da humilhação que necessariamente se segue não é a sua ideia de um Messias glorioso.
A carne tem de ser mortificada para tomar esse lugar. Para isso é-nos necessária a força de Cristo pelo Espírito Santo.
Um crente que não está crucificado para o mundo não é senão uma pedra de tropeço para todo aquele que procura seguir a Cristo.
Tais são as formas de incredulidade que precedem a verdadeira confissão de Cristo e que, infelizmente, se encontram naqueles que sinceramente O têm confessado e conhecido (não estando a carne mortificada de maneira a fazer andar a alma à altura daquilo que ela aprendeu de Deus, e estando a inteligência espiritual obscurecida pelo pensamento das consequências que a carne rejeita).
Mas se a Cruz é a entrada do reino, a glória não tardará a produzir-se.
Sendo o Messias rejeitado pelos Judeus, um título mais glorioso e de mais profundo alcance é revelado: o Pilho do homem virá na glória de Seu Pai (porque Ele é Filho de Deus) e dará a cada um segundo as suas obras (verso 27). Alguns mesmo dos que ali estavam não provariam a morte (pois era dela que falavam) antes de terem visto a manifestação da glória do reino, que pertencia ao Filho do homem.
Podemos notar aqui o título de «Filho do homem» posto como fundamento; o título de Messias é abandonado, em quanto testemunho prestado nesse tempo, e substituído pelo de «Filho do homem», que Jesus toma ao mesmo tempo que o de Filho de Deus, e que tinha uma glória que Lhe pertencia de pleno direito. Jesus devia vir na glória de Seu Pai, como Filho de Deus, e no Seu reino, como Filho do homem.
É interessante recordar aqui a instrução que nos é dada no princípio do Livro dos Salmos. O justo, distinguido da congregação dos ímpios, foi apresentado no sl 1. No Salmo 2 encontramos a revolta dos reis da Terra e dos príncipes contra o Eterno e contra o Seu Ungido (quer dizer, o Seu Cristo). Ora, a este respeito é declarado o decreto do Eterno. Adonai, o Senhor, rir-Se-á deles desde o Céu. Além disso o Rei de Jeová será estabelecido no Monte de Sião. Eis o decreto: «O SENHOR me disse: Tu és meu Filho, Eu hoje te gerei» (1). E é ordenado aos reis e aos juízes da Terra que beijem o Filho.
(1) Vimos que Pedro ia mais longe. Aqui. Cristo é considerado como o Filho, nascido sobre a Terra no tempo, e não como Filho eternamente no seio do Pai. Pedro, será receber a plena revelação desta verdade, vê-O como Filho segundo o poder da vida divina na Sua própria Pessoa; Pessoa sobre a qual a Igreja, por conseguinte, podia ser edificada. Mas aqui consideramos o que se reporta ao reino.
Nos Salmos seguintes, toda esta glória é obscurecida.
A angústia do Remanescente, na qual Cristo tem uma parte, é-nos relatada. Depois, no Salmo 8, Cristo é proclamado Filho do homem.
Herdeiro de todos os direitos conferidos em soberania ao homem pelos desígnios de Deus. O nome de Jeová torna-se excelente em toda a Terra. Estes Salmos não vão além da parte terrestre destas verdades, exceto na passagem: «Aquele que habita nos céus se rirá deles» (Salmo 2:4); enquanto que em Mateus 16 a relação do Filho de Deus com isto e a Sua vinda com os anjos (para não falar da Igreja) são postas sob os nossos olhos.
Isto é, vemos que o Filho do homem virá na glória do Céu.
Não é que a Sua estadia no Céu seja a verdade anunciada nesta passagem, mas sim que o Filho do homem, vindo para estabelecer o Seu reino sobre a Terra, está revestido da mais elevada glória do Céu.
Ele vem no Seu reino.
O reino está estabelecido sobre a Terra, mas Ele vera com a glória do Céu para o tomar. É o que o capítulo seguinte nos vai mostrar, segundo a promessa do verso 28 deste.
Nos Evangelhos que falam do reino, a transfiguração segue-se imediatamente à promessa de se não provar a morte antes de ver o reino do Filho do homem. E não somente isso, mas Pedro (na sua segunda Epístola 1:16), falando desta cena, declara que era uma manifestação do poder e da vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Diz ele que a palavra profética lhes tinha sido confirmada pela revelação da Sua majestade; de sorte que os apóstolos sabiam do que falavam anunciando o poder e a vinda de Cristo, por terem visto a Sua majestade. É, efetivamente, nesse sentido que o Senhor fala dela aqui, como temos visto.
A transfiguração era uma demonstração da glória em que Ele viria depois para confirmar a fé dos Seus discípulos na perspectiva da Sua morte, a qual lhes acabava de anunciar.
CAPÍTULO 17
No capítulo 17, Jesus leva Pedro, Tiago e João a um alto monte, e ali transfigura-Se perante eles: «0 Seu rosto resplandeceu como o Sol e os Seus vestidos se tomaram brancos como a luz». Moisés e Elias apareceram também, falando com Ele. Por agora, deixaremos o assunto da Sua conversação, o qual é profundamente interessante, até chegarmos ao Evangelho de Lucas. Este evangelista acrescenta alguns pormenores que, sob certos aspectos, dão outro aspecto desta cena.
Aqui, o Senhor aparece em glória e Moisés e Elias com Ele. Um, o legislador dos Judeus; e o outro, igualmente distinto, o profeta que procurou reconduzir as dez tribos apóstatas ao culto de Jeová, e que, desesperando do povo, voltou para Horebe, de onde a lei linha saído, e foi em seguida levado para o Céu, sem passar pela morte.
Estes dois personagens eminentes por excelência nas relações de Deus com Israel, um fundador, o outro restaurador do povo segundo a lei, estes dois homens aparecem com Jesus. Pedro (surpreendido com esta aparição, alegre por ver o seu Mestre associado com estes pilares do sistema judaico, com servos de Deus e tão eminentes, ignorando a glória do Filho do homem e esquecendo a revelação da glória da Sua Pessoa como Filho de Deus), Pedro deseja fazer três tendas, e colocar Jesus, Moisés e Elias ao mesmo nível, como oráculos. Alas a glória de Deus manifesta-se; isto é, o sinal conhecido em Israel como morada (Shechinah) dessa glória (1); e a voz do Pai é ouvida. A graça pode colocar os Moisés e os Elias na mesma glória que o Filho de Deus, e associá-los com Ele; mas se a estultícia do homem, na sua ignorância, pretende pô-los juntos, como tendo neles mesmos uma autoridade igual sobre o coração do fiel, o Pai tem de reivindicar imediatamente os direitos de Seu Filho. Nem um só instante se passa antes de a voz do Pai proclamar a glória da Pessoa de Seu Filho, a Sua relação com Ele mesmo, proclamando que Ele é o objeto de toda a Sua afeição, que encontra n'Ele todo o Seu prazer.
É a Ele que os discípulos devem escutar. Moisés e Elias têm desaparecido. Cristo está ali só, como Aquele que deve ser glorificado, Aquele que deve ensinar aqueles que escutavam a voz do Pai. O próprio Pai O distingue, O apresenta à atenção dos discípulos, não como sendo digno do amor deles mas como objeto das Suas próprias delícias. Em Jesus Ele Se comprazia. Assim os afetos do Pai são-nos apresentados como regra para os nossos, oferecendo-lhes um objeto comum. Que posição para pobres criaturas como nós! Que graça! (2) (1) Pedro, instruído pelo Espírito Santo, chama-lhe «a glória excelente».
(2) Não é por causa do valor divino do seu testemunho que Moisés e Elias desaparecem. Não podia haver disso unia confirmação mais forte do que está Cena, como diz Pedro. Mas, não só eles não eram o tema do testemunho de Deus, como o era Cristo, mas também o seu testemunho se não referia às coisas celestes, que deviam então ser reveladas em conexão com o Filho, vindo do Céu, e as suas exortações não o atingiam. O próprio João Batista estabelece esta diferença (João 3:13 e 31-34). É por isso que, como é revelado, o Filho do homem devia ser elevado. Por isso o Senhor ordena aqui aos Seus discípulos que não digam que Ele é o Messias, porque o Filho do homem devia sofrer. Era uma mudança na vida e no ministério do Senhor, e a glória futura do reino era revelada aos discípulos; mas então Ele devia sofrer (ver João 12:27). A história dos Judeus tinha terminado ao capítulo 12, ou, mais exatamente, no capítulo 11; e o fundamento da mudança estava posto. Encontramos João e o Senhor, ambos rejeitados; uma submissão perfeita; depois todas as coisas entregues a Cristo por Seu Pai, e Ele revelando o Pai (comparar João 13:14). Mas em Mateus, fora do Judaísmo, começa pelo que Ele trouxe, não procurando fruto no homem.
Ao mesmo tempo a lei e toda a ideia da sua restauração sob a antiga aliança tinham passado; e Jesus, glorificado como Filho do homem e Filho do Deus vivo, fica o único despenseiro do conhecimento e dos pensamentos de Deus.
Os discípulos prostram-se sobre os seus rostos, com grande medo, ao ouvirem a voz de Deus. Jesus, para quem esta glória esta voz eram naturais, encoraja-os, como sempre fazia neste mundo, dizendo-lhes: «Não tenhais medo» (verso 7). Eles estavam com Ele, que era o objeto da afeição do Pai; porquê, pois, temer?! O melhor amigo deles era a manifestação de Deus sobre a Terra; a glória pertencia-Lhe. Moisés e Elias tinham desaparecido, do mesmo modo que a glória, que os discípulos não eram ainda capazes de suportar. Jesus — que lhes tinha sido assim manifestado na glória que Lhe era dada e nos direitos da Sua gloriosa Pessoa nas Suas relações com o Pai — Jesus fica-lhes, o mesmo que eles tinham sempre conhecido. Mas esta glória não devia ser o assunto do testemunho deles até que Ele, o Filho do homem, ressuscitasse de entre os mortos — o Filho do homem no Seu sofrimento. Era preciso então dar a grande prova de que Ele era o Filho de Deus em poder.
O testemunho a este respeito devia ser prestado, e Ele entraria pessoalmente naquela glória que acabava de ser exposta perante os olhos deles.
Levanta-se então uma dificuldade no espírito dos discípulos produzida pela doutrina dos escribas acerca de Elias.
Elias — diziam eles — devia vir antes da manifestação do Messias; e, com efeito, a profecia de Malaquias 4:5-6 dava lugar a essa expectativa. Os discípulos perguntam a Jesus: «Porque dizem então os Escribas que é mister que Elias venha primeiro?» (isto é, antes da manifestação do Messias); ao passo que nós acabamos de ver que Tu és, TU, esse Messias. E no entanto Elias ainda não veio. Jesus confirma as palavras da profecia, acrescentando que Elias restauraria todas as coisas (verso 11). «Mas — continua o Senhor — digo-vos que Elias já veio, e não o conheceram, mas fizeram-lhe tudo o que quiseram. Assim farão eles também padecer o Filho do homem» (verso 12). Então os discípulos compreenderam que Ele falava de João Batista, que tinha vindo no espírito e no poder de Elias, como o Espírito Santo tinha anunciado a Zacarias, seu pai (Lucas 1:17).
Mas esta passagem exige algumas considerações: Em primeiro lugar, quando o Senhor diz (Mateus 17:11): «Em verdade Elias virá primeiro, e restaurará todas as coisas», apenas confirma o que os escribas diziam, segundo a profecia de Malaquias, como se dissesse: «Eles têm razão ». Em seguida o Senhor declara o efeito da vinda de Elias: «Restaurará todas as coisas». Ora, o Filho do homem devia ainda vir. Jesus tinha dito aos Seus discípulos: «Não acabareis de percorrer as cidades de Israel sem que venha o Filho do Homem», como lemos em Mateus 10:23. Entretanto o Filho do homem tinha vindo e era Ele mesmo que falava com eles. Mas esta vinda do Filho do homem, de que Ele falava, é a Sua vinda em glória, quando for manifestado Filho do homem em Julgamento, segundo Daniel 7.
Era assim que tudo o que tinha sido dito aos Judeus seria cumprido; e, no Evangelho segundo S. Mateus, Jesus fala aos Seus discípulos seguindo esta expectativa. No entanto Jesus devia ser apresentado à nação, e devia sofrer. Era necessário que a nação fosse posta à prova pela apresentação do Messias segundo a promessa. Isto foi feito, e como Deus tinha predito pelos profetas: «Ele foi desprezado dos homens». De igual modo João O precedeu segundo Isaías 40, como a voz no deserto, no espírito e poder de Elias; mas João foi rejeitado, como devia sê-lo o Filho do homem (1).
(1) João Batista rejeita também a aplicação para si próprio de ml4:5-6; enquanto que Isaías 40 e Malaquias 3:1 Lhe são aplicados em Lucas 1:76 e 7:27.
Então o Senhor, por meio destas palavras, anuncia aos Seus discípulos, em relação com a cena que eles acabavam de contemplar e com toda esta parte deste Evangelho, que o Filho do homem, tal como era agora apresentado aos Judeus, devia ser rejeitado. Este mesmo Filho do homem devia ser manifestado em glória, tal como eles o tinham listo momentaneamente sobre o monte. Com efeito, Elias devia vir, como diziam os Escribas, mas João Batista tinha preenchido essa função de Elias em poder para a apresentação do Filho do homem; a qual (sendo os Judeus deixados, como deviam ser, à sua própria responsabilidade) terminaria com? Sua rejeição, e com a rejeição de Israel até aos dias em que Deus começasse de novo as Suas relações com o Seu povo sempre bem-amado, fosse qual fosse a sua condição. Deus restabeleceria então todas as coisas (obra gloriosa que Ele realizaria introduzindo o Seu Unigénito Filho no mundo). A expressão de «restabelecer todas as coisas» refere-se aqui aos Judeus, e num sentido moral.
Em Atos, capítulo 3, refere-se ao efeito da própria presença do Filho do homem.
A presença temporária do Filho do homem foi o momento da realização de uma obra da qual depende a glória eterna, e na qual Deus foi plenamente glorificado, acima e além de todas as dispensações; de uma obra cuja glória visível do Filho do homem é o fruto, tanto quanto esta glória depende da Sua obra, e não da Sua Pessoa divina; de uma obra enfim na qual, moralmente, Ele foi perfeitamente glorificado, glorificando plenamente a Deus. Todavia, no que concerne às promessas feitas aos Judeus, esta presença do Filho do homem não era senão o último passo na prova a que esse povo era submetido pela graça. Deus sabia bem que eles rejeitariam o Seu Filho; mas não quis tê-los por definitivamente culpados até que eles o tivessem feito.
Deste modo Deus, na Sua sabedoria divina (embora cumprindo mais tarde as Suas imutáveis promessas), apresenta-lhes Jesus — o Seu Filho, o Messias que eles esperavam.
Dá-lhes todas as provas necessárias. Envia-lhes João Batista como Seu percursor no espírito e poder de Elias.
O Filho de Davi nasceu em Belém, com todos os sinais que deveriam ter convencido esse povo. Mas os Judeus estavam cegos pelo orgulho e pela sua própria justiça, e tudo rejeitaram.
Não obstante, convinha que Jesus Se adaptasse em graça, quanto à Sua posição, ao estado miserável de Israel.
Assim também, antítipo de Davi rejeitado no seu tempo, partilhava da aflição do Seu povo. Se os Gentios oprimiam esse povo, Ele, o seu Rei, devia associar-Se à sua angústia, dando ao mesmo tempo todas as provas do que Ele era, e buscando os Seus em amor. Uma vez rejeitado, tudo se converte em pura graça. Os Judeus já não têm direito a coisa alguma segundo as promessas, e ficam reduzidos a receberem tudo dessa mesma graça, como faria um pobre Gentio. Deus não faltará à Sua graça. Assim Deus colocou-os na verdadeira condição de pecadores, e não deixará de cumprir as Suas promessas. Este é o tema de Romanos 11.
Ora o Filho do homem, que virá, será este mesmo Jesus que agora Se retirou. Os céus recebe-Lo-ão até ao tempo do restabelecimento de todas as coisas de que falaram os profetas.
Mas aquele que era o Seu precursor durante a Sua presença temporária neste mundo, não podia ser o mesmo Elias. João era, pois, conforme a manifestação de então do Filho do homem, exceto a diferença que necessariamente decorria da Pessoa do Filho do homem. Este não podia ser senão um, enquanto que isso podia não ser o caso para João Batista e Elias. Mas como Jesus manifestou todo o poder do Messias, todos os Seus direitos a tudo o que pertencia a esse Messias, sem revestir ainda a glória exterior, por não ter ainda chegado o Seu tempo (João 7), também João cumpriu moralmente e em poder a missão de Elias para preparar o caminho do Senhor ante a Sua face (segundo o verdadeiro carácter da Sua vinda, tal como ela se cumpria então), e respondeu literalmente a Isaias 40, e mesmo a Malaquias 3, as únicas passagens que lhe são aplicadas. É por esta razão que João afirmou que ele não era Elias, e que o Senhor disse: E se quereis dar crédito, é este o Elias que havia de vir», (Mateus 11:14). É por isso também que João nunca aplicou a si mesmo Malaquias 4:5-6, anunciando-se apenas como aquele que cumpria Isaías 40:3-5, e isto em todos os Evangelhos, qualquer que seja o seu carácter particular (1).
(1) Ver a nota precedente.
Mas continuemos o estudo deste capítulo. Se o Senhor sobe à glória, a verdade é que também desce a este mundo, mesmo agora, em Espírito e em simpatia, e encontra a multidão e o poder de Satanás, com os quais nós temos de nos haver. Enquanto o Senhor estava no monte, um infeliz pai trazia aos discípulos seu filho que era lunático e possesso de um demónio (versos 14 e seguintes). Aqui é revelado um outro carácter da incredulidade do homem, até mesmo do crente — a incapacidade de se servir do poder que está, por assim dizer, à sua disposição no Senhor.
Cristo, o Filho de Deus, o Messias, o Filho do homem, tinha vencido o Inimigo, tinha manietado o homem forte e tinha o direito de o expulsar. Como homem, SER obediente, apesar das tentações de Satanás, Cristo tinha-o vencido no deserto, e tinha assim, como homem, o direito de o destituir do seu poder sobre o homem, quanto a este mundo; e é o que Ele tem feito. Expulsando os demónios e curando os enfermos, Ele livrava o homem do poder do Inimigo.
«Deus — diz Pedro, em Atos 10:38 — ungiu a Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com virtude; o qual andou fazendo bem e curando a todos os oprimidos do diabo».
Ora, este poder deveria ter sido usado pelos discípulos, os quais deveriam ter sabido usar, pela fé, do poder que Jesus tinha assim manifestado sobre a Terra; mas eles não puderam ajuda-lo. Portanto, que vantagem havia em trazer este poder à Terra, se os discípulos não tinham fé para o usar? O poder estava ali. O homem podia aproveitarse dele para sua completa libertação de toda a opressão do inimigo, mas não tinha fé para o fazer—até mesmo os crentes não a tinham. A presença de Cristo tomava-se assim inútil sobre a Terra, visto que até mesmo os Seus discípulos não sabiam como aproveitar-se dela. Havia, mais fé no homem que tinha trazido o filho do que neles, pois a necessidade de auxílio levou-o a buscar o remédio. Todos, portanto, ficam sob esta sentença do Senhor: «ó geração incrédula e perversa!» (verso 17). Ele tem de os deixar; e aquilo que a gloria tinha revelado ao Céu, o incrédulo o realizará neste mundo.
Note-se que não é o mal no mundo que põe fim à intervenção especial de Deus; pelo contrário, dá lugar à intervenção da graça. Cristo tinha vindo por causa do império de Satanás sobre o homem. Ele retira-Se porque aqueles que O tinham recebido são incapazes de usar o poder que Ele trouxe Consigo, ou que concede para os livrar; não sabem aproveitar as vantagens de que gozam. Faltava-lhes a fé. No entanto notemos ainda esta importante e impressionante verdade que, enquanto esta dispensação de Deus continua, Jesus não deixa de atender a fé individual com benção, até mesmo quando os Seus discípulos não sabem glorificá-Lo por meio do exercício da fé. A mesma sentença que condena a incredulidade dos discípulos convida o atribulado pai ao gozo da bênção. Afinal de contas, para nos podermos aproveitar deste poder, temos de estar em comunhão com Jesus pela energia prática da fé.
Jesus abençoa, pois, o pobre pai segundo as suas necessidades, e, cheio de paciência, retoma o curso das instruções que dava aos Seus discípulos acerca do objetivo da Sua rejeição c da Sua ressurreição como Filho do homem.
Amando o Senhor e incapazes de levarem por diante as suas ideias além das circunstâncias do momento, os discípulos sentem-se perturbados; todavia isto era a redenção, a salvação, a glória de Cristo.
Antes, porém, de continuar, e expondo-lhes o que convinha aos discípulos de um Senhor rejeitado e a posição que iam ocupar, põe diante deles a Sua glória divina e a relação deles com Aquele que a possuía, do modo mais impressionante, se ao menos eles a pudessem ter compreendido.
Ao mesmo tempo coloca-Se com perfeita condescendência e ternura no mesmo lugar deles, ou antes, coloca-os a eles no mesmo lugar que Ele tem como Filho do grande Rei do templo e de toda a Terra, como vemos nos versos 24-27.
Os que cobravam o tributo para o serviço do templo vieram e perguntaram a Pedro se o seu Mestre não o pagava.
Sempre pronto a salientar-se, esquecido da glória que tinha visto e da revelação que lhe fora feita pelo Pai, Pedro, descendo ao nível normal dos seus próprios pensamentos, ansioso por ver o seu Mestre considerado como um bom Judeu, e sem O consultar, responde que sim.
O Senhor antecipa-Se a Pedro, quando ele entra, e mostra-lhe o Seu conhecimento divino do que tivera lugar longe de Si. Ao mesmo tempo fala de Pedro e de Si como sendo ambos filhos do Rei do templo (Filho de Deus, mantém ainda em paciente bondade o Seu humilde lugar como Judeu) e estando, por conseguinte, ambos livres do tributo.
Mas não deviam escandalizar ninguém. Comanda então a Criação (porque Ele pode tudo assim como conhece todas as coisas) e faz com.
que um peixe traga a importância necessária, associando de novo o nome de Pedro ao Seu.
Ele tinha dito: «Para que os não escandalizemos», e agora diz: «Dá-o por mim e por ti». Maravilhosa e divina condescendência! Aquele que sonda os corações e dispõe à vontade da Criação, o Filho do Soberano Senhor do templo coloca os Seus pobres discípulos na mesma relação com Seu Pai celestial, com o Deus que era adorado nesse mesmo templo. Submete-Se aos deveres que teriam sido exigidos justamente aos estranhos, mas coloca o Seu discípulo na posse de todos os privilégios que Lhe pertencem como Filho. Vemos claramente a relação entre esta comovente expressão da graça divina e o assunto destes capítulos. Demonstra todo o alcance da mudança que se estava operando.
"É interessante notar que a primeira Epístola de Pedro é baseada em Mateus 16, e a segunda no capítulo 17, que acabamos de estudar (1).
(1) Estas duas Epístolas, após terem estabelecido a redenção pelo precioso sangue de Cristo, e a regeneração pela semente incorruptível da Palavra, tratam do governo de Deus, Na primeira, encontramos a sua aplicação aos Seus, para os conservar; na segunda, esta aplicação é feita aos maus e ao mundo. Vai até aos elementos abrasados» que se fundirão, e. finalmente, até aos novos céus e à nova Terra.
No capítulo 16, Pedro, instruído pelo Pai, confessa que o Senhor é o Filho do Deus vivo; e o Senhor diz que sobre esta pedra edificará a Sua Igreja, e que aquele que tinha o império da morte não prevaleceria contra ela.
Assim também Pedro, na sua primeira Epístola, declara que eles eram de novo nascidos para uma viva esperança pela ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos.
Ora, é por esta ressurreição que o poder da vida do Deus vivo é manifestado. Em seguida Pedro fala de Cristo como sendo a Pedra Viva, ao Qual vindo nós também como pedras vivas, somos edificados templo santo para o Senhor.
Na segunda Epístola, ele refere, de maneira especial, a glória da transfiguração como prova da vinda e do reino do Filho do homem; fala também, nesta segunda Epístola, do Juízo do Senhor.
CAPÍTULO 18
Aqui, os grandes princípios que convêm à nova ordem de coisas são comunicados aos discípulos. Examinemos um pouco estas doces e preciosas instruções do Senhor.
Podem ser consideradas de duas maneiras. Revelam os caminhos de Deus a respeito do que tomaria o lugar do Senhor sobre a Terra como testemunho prestado à graça e à verdade, e, além disso, descrevem o carácter que é, em si, o verdadeiro testemunho que deve ser dado. Este capítulo pressupõe Cristo rejeitado e ausente, e a glória do capítulo 17 como futura. Passa em claro o capítulo 17 para se ligar com o capítulo 16 (exceto os versos finais do capítulo 17, que dão um testemunho prático da abdicação que Cristo fez dos Seus verdadeiros direitos até que Deus os faça valer).
O Senhor fala dos dois assuntos incluídos no capítulo 16 — o Reino e a Igreja. O que conviria ao reino seria a simplicidade de uma criança que não sabe fazer valer os seus direitos perante um mundo que não lhe presta atenção o espírito de dependência e de humildade. Os habitantes desse reino têm de se tornar como meninos. Na ausência do Senhor rejeitado, era este o espírito que convinha aos que O seguem.
Todo aquele que receber um menino em nome de Jesus, recebe-O a Ele mesmo. Por outro lado, todo aquele que puser uma pedra de tropeço no caminho de um desses pequeninos que creem em Jesus (1), será submetido a um terrível julgamento (versos 5-6).
Desgraçadamente é mesmo isto o que o mundo faz; mas, ai do mundo por causa disso! (1) Aqui o Senhor distingue «um pequenino que crê». Nos outros versos fala de uni menino, fazendo do seu carácter, como tal, o modelo do Cristão no mundo.
Quanto aos discípulos, se aquilo que eles mais estimavam se convertesse num ardil para eles, deviam arrancá-lo e destruí-lo (versos 8-9) — deviam ter, agindo em graça, o máximo cuidado para não serem um tropeço para aquele que cria em Cristo, e usar da mais implacável severidade quanto a si mesmos, em tudo que para eles representasse ocasião de queda. A perda de tudo aquilo que neste mundo era precioso nada representava quando comprado com o seu estado eterno num outro mundo; porque era disso que então se tratava, e o pecado não podia encontrar lugar lia casa de Deus. Solicitude acerca dos outros, mesmo dos mais fracos; severidade para consigo mesmo —tal era a regra do reino, para que nenhuma cilada ou mal pudesse ali manifestar-se. Quanto às ofensas, era necessária uma perfeita graça no perdão. Não deviam desprezar estes pequeninos; porque, se cies não sabiam abrir o seu caminho neste mundo, eram, contudo, o objeto do favor especial do Pai, tal como aqueles que, nas cortes terrestres, tinham o privilégio particular de ver a face do rei (verso 10). Não é que não houvesse pecado neles, mas o Pai não desprezava aqueles que estavam longe de Si. O Filho do homem tinha vindo para salvar o que estava perdido (1).
E não era da vontade do Pai celeste que perecesse ura só — nem um só — destes pequeninos (versos 11-14).
(1) Como doutrina, o estado de pecado do menino e a sua necessidade do sacrifício de Cristo são claramente verificados aqui. Ele não diz «buscar», para eles. O emprego da parábola da ovelha extraviada é aqui muito impressionante.
Não duvido de que o Senhor fala aqui aos pequeninos, como aqueles que Ele tinha em Seus braços; mas inculca nos Seus discípulos o espírito de humildade e de dependência, por um lado, e, por outro lado, esse espírito do Pai que eles deviam imitar para serem verdadeiramente filhos do reino.
Não deviam andar segundo o espírito do homem que quer manter o seu lugar e fazer-se valer; mas deviam humilhar-se e suportar o desprezo, e, ao mesmo tempo (o que é a verdadeira glória), imitar o Pai, que considera os humildes e os admite na Sua presença. O Filho do homem tinha vindo cm favor daqueles que eram desprezíveis e desprezados.
Eis o espírito do reino. É este o espírito da graça de que se fala no fim do capítulo 5. É o espírito do reino.
Mas a Igreja mais particularmente devia ocupar o lugar de Cristo na Terra. Quanto às ofensas pessoais, este mesmo espírito de doçura convinha ao Seu discípulo; ele devia ganhar o seu irmão. Se aquele que tinha pecado contra o seu irmão escutava, então o assunto devia, ser sepultado no coração daquele que tinha sido ofendido; se não escutava, o ofendido devia levar consigo duas ou três pessoas e ir junto do ofensor a fim de atingirem a sua consciência e servirem de testemunhas; mas se estes meios assim estipulados fossem ineficazes, era preciso dar conhecimento à Igreja do assunto; e se o culpado não se submetesse, devia ser considerado como um estrangeiro, como o era para. Israel um pagão e um publicano. Não se trata aqui da disciplina pública da Igreja, mas do espírito em que os crentes deviam andar. Se o transgressor cedia à advertência, era preciso perdoar-lhe setenta vezes sete vezes por dia.
Mas, embora se não trate da disciplina da Igreja, vemos que a Assembleia toma o lugar de Israel sobre a Terra.
A expressão: os que estão dentro e os que estão -fora reporta-se doravante a ela. O Céu teria ratificado o que a Igreja ligar na Terra; e o Pai também concederia o que dois ou três concordassem em pedir; porque Cristo está onde dois ou três se reunirem em Seu Nome (1).
(1) Ê importante recordar aqui que — enquanto o Espírito Santo é plenamente reconhecido em Pessoa em Mateus, como por exemplo, no nascimento do Senhor, e, no capítulo 10, agindo e falando como Pessoa divina nos discípulos que realizavam o serviço que lhes fora destinado, porque é sempre por Ele a só por Ef que nós podemos agir justamente — a vinda do Espírito Santo, na ordem de uma dispensação divina, não faz parto do ensino deste Evangelho, embora seja reconhecido de fato no capítulo 10.
A presença de Cristo em Mateus, visível como homem, termina com a Sua ressurreição; o Remanescente Judeu é enviado da Galileia para o mundo como um corpo aceite, para evangelizar os Gentios, e Jesus declara que estará com eles até à consumação do século. Assim, aqui encontrasse no meio de dois ou três reunidos em Seu Nome. A Igreja aqui não é o corpo constituído pelo batismo do Espírito Santo sobre a Terra; mas se dois ou três estão reunidos em Seu Nome, Cristo está no meio deles. Ora, eu n2o duvido de que todo o bem da vida de Cima e a Palavra de Vida Vem do Espírito, roas isso c outra coisa, e a Igreja aqui n3o é nem o corpo nem a casa cm virtude da descida do Espírito Santo. Este ensinamento e esta revelação eram posteriores, e, felizmente, continuam verdadeiros; mas aqui temos Cristo no meio daqueles que estão reunidos em Seu Nome. Mesmo no capítulo 16, é Ele que edifica, mas isso é outra coisa. Evidentemente que é espiritualmente que Ele está presente.
Assim, quer para as decisões a tomar, quer para as orações, eles eram como Cristo na Terra, porque o próprio Cristo estava ali com eles.
Que solene verdade! Favor imenso concedido a dois ou três quando verdadeiramente reunidos em Seu Nome! Mas este é um assunto de profunda consternação quando existe apenas a pretensão à unidade, mas sem a menor realidade. (1) (1) É deveras impressionante ver aqui que a única sucessão na função de ligar e desligar que o Céu sanciona é a dos dois ou três reunidos em Nome de Cristo.
Ura outro elemento próprio do carácter do reino, que tinha sido manifestado em Deus e em Cristo, é a graça que perdoa. Também nisto os filhos do reino devem ser os imitadores de Deus, e perdoar sempre. Mas isto refere-se somente a ofensas pessoais, e não à disciplina pública. Devemos perdoar até ao fim, ou antes, não encontrar limites para esta ação, do mesmo modo que Deus tudo nos perdoou.
Ao mesmo tempo que isto, creio que as dispensações de Deus para com os Judeus são aqui descritas. Eles não só tinham violado a lei, mas tinham também morto o Filho de Deus. Cristo intercedeu por eles, dizendo: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lucas 23:34).
Em resposta a esta oração; um perdão provisório foi anunciado pelo Espírito Santo, pela boca de Pedro (Atos 3).
Alas esta graça foi também rejeitada. Quando se tratava de fazer graça aos Gentios que, sem dúvida, lhes deviam os cem dinheiros, não queriam ouvir falar disso, e foram entregues ao castigo (1), até que o Eterno pudesse dizer «Já recebeu em dobro... por todos os seus pecados».
Numa palavra, o espírito do reino não consiste em poder exterior, mas em humildade, E, neste estado, está-se perto do Pai, e então é fácil serse doce e humilde neste mundo.
Aquele que tiver sentido o favor de Deus não procurará ser grande sobre a Terra; está imbuído do espírito da graça, acarinha os humildes, perdoa àqueles que lhe têm feito mal, está junto de Deus e parece-se com Ele nos seus caminhos.
(1) Este ato de entregar ao castigo, e a revelação formal da posição celeste intermediária em relação com o Filho do homem na glória encontram-se em Atos 1, quando Estevão relata a história do povo Judeu, desde Abraão, o primeiro chamado como fundamento da promessa, até àquele momento.
O mesmo espírito da graça reina quer na Igreja quer nos seus membros. Somente a Igreja representa Cristo sobre a Terra; e é a ela que se referem essas regras fundadas sobre a aceitação de um povo como pertencendo a Deus. Dois ou três realmente reunidos cm Nome de Jesus, atuam com a Sua autoridade e gozam dos Seus privilégios junto do Pai, porque o próprio Jesus está ali, no meio deles.
CAPÍTULO 19
Este capítulo prossegue o assunto do espírito que convém ao reino dos céus, e penetra profundamente nos princípios que governam a natureza humana e no que era então divinamente introduzido. O Senhor aproximou-Se da Judeia; e uma questão dos Fariseus dá lugar à exposição da Sua doutrina acerca do matrimónio. Deixando a lei dada por causa da dureza dos seus corações, Ele reporta-Se (1) à instituição de Deus, segundo a qual o homem e a mulher se deviam unir, para serem apenas um aos olhos de Deus.
(1) A relação é marcada aqui entre a coisa nova e a natureza, como Deus a tinha formado no princípio, passando por cima da lei, considerada somente como algo de intermediário. Era um novo poder, porque o picado tinha aparecido, mas a Criação de Deus é reconhecida, mostrando inteiramente o estado do coração que não admite a sua fraqueza. O pecado corrompeu o que Deus tinha criado de bom. O poder do Espírito de Deus, que não foi dado pela redenção, coloca o homem e o seu caminho absolutamente fora de todo o estado da carne, e introduz um novo poder divino, pelo qual o homem anda neste mundo, seguindo o exemplo de Cristo. Mas, com isto, temos a mais completa sanção daquilo que o próprio Deus estabeleceu no princípio. Isto é bom, embora pudesse haver algo de melhor. E muito impressionante a maneira como a lei é posta de lado para voltar à primitiva instituição de Deus, o poder espiritual, não retirando inteiramente o coração de toda a cena, embora ele ali andasse. O Senhor reconhece, no casamento, o filho, o carácter do jovem, o que é de Deus e o que é amável na natureza.
Mas o estado do coração do homem é sondado. Isto não depende do carácter, mas dos motivos, e é plenamente posta à prova por Cristo (há uma completa mudança dispensacional, porque eram prometidas riquezas a um Judeu fiel), e por ura Cristo rejeitado — o caminho do Céu — toda a coisa e a prova de toda a coisa, isto é, do coração do homem.
Deus fez o homem íntegro com certas relações de família. O pecado corrompeu completamente essa velha ou primeira Criação do homem.
A vinda fio Espírito Santo trouxe um poder que, no segundo homem, nos transporta da velha para a nova Criação e nos dá as coisas celestes — somente, isto não é ainda quanto ao vaso o corpo. Mas isso não pode negar nem condenar o que Deus criou no princípio. É impossível. No princípio Deus os fez.
Quando chegamos ao estado celeste, tudo Isso desaparece, mas não os fruto que daí provêm por graça. Se um homem, pelo poder do Espírito Santo, tem O dom de o fazer e fica inteiramente celeste, tanto melhor; mas é absolutamente mau falar contra as relações que Deus criou no princípio, ou condená-las, ou minimizá-las, ou denegrir a autoridade que Deus conferiu a tudo isso. Se um homem pode viver santamente acima e fora dessas relações, para servir a Cristo, está muito bem, mas isso é raro e excepciona".
Estabelece, ou antes restabelece o verdadeiro carácter do vínculo indissolúvel do matrimónio. Digo indissolúvel, porque a exceção para o caso de infidelidade não abrange um; a pessoa culpada havia já quebrado o vínculo. O homem e a mulher já não eram uma só carne.
Ao mesmo tempo, se Deus dava a força espiritual para isso, era ainda melhor ficar só (versos 10-12).
O Senhor renova então as Suas instruções acerca das crianças, testemunhando a Sua afeição por elas. Parece-me que Ele o faz aqui relacionando o fato com a ausência de tudo o que liga ao mundo, às suas distrações e às suas concupiscências, e reconhecendo o que é amável, confiante e visivelmente puro na natureza; ao passo que, no capítulo 18, tratava-se do carácter intrínseco do reino.
Depois disto, Jesus mostra (em relação com a introdução do reino na Sua Pessoa) a natureza da dedicação absoluta e do completo sacrifício de todas as coisas para O seguirem, se verdadeiramente procuravam agradar a Deus. O espírito do mundo, as paixões carnais e as riquezas são em todo o sentido opostos a um tal ato. Sem dúvida, a lei de Moisés restringia essas paixões; mas supunha-as e, em certo sentido, suportava-as. Segundo a glória do mundo, uma criança nada valia.
Que poder poderia ela ter nessa glória? Mas ela é preciosa aos olhos do Senhor.
A lei prometia a vida àquele que a observasse. O Senhor torna-a simples e prática nas suas exigências, ou antes recorda essas exigências na sua verdadeira simplicidade.
As riquezas não eram proibidas pela lei; quer dizer, embora as obrigações morais entre homem e homem fossem mantidas pela lei, o que ligava o coração ao mundo não era julgado por ela. Segundo o governo de Deus, a prosperidade ligava-se à obediência à lei, porque ela reconhecia o mundo e reconhecia que o homem vivia nele — e ali o provava. Cristo reconhece isto mesmo; mas os motivos do coração são postos à prova. A lei era espiritual, e o Filho de Deus estava ali.
Encontramos outra vez o que já tínhamos visto, isto é, o homem posto à prova e Deus revelado.
Tudo na natureza da lei é intrínseco e eterno, porque Deus está já revelado. Cristo julga tudo o que corrompe o coração, que atua sobre o seu egoísmo e o separa assim de Deus. «Vende o que tens — diz Ele — e segue-me». Infelizmente o jovem não podia renunciar às suas riquezas, ao seu bem-estar, a si próprio. «É difícil — diz Jesus—entrar um rico no reino dos céus». Isto era evidente: era o reino de Deus, o reino dos céus; o eu, o egoísmo, o mundo não tinham ali nenhum lugar. Os discípulos, não compreendendo que não existe bem algum no homem, espantavam-se de que um homem tão favorecido e tão bem intencionado estivesse ainda longe da salvação. Quem poderia então salvar-se? Revela-se então toda a verdade: É impossível aos homens; eles não podem vencer as concupiscências da carne.
Moralmente, elas são o próprio homem quanto à sua vontade e aos seus afetos. Não se pode branquear um negro nem tirar as manchas da pele a um leopardo: o que eles exibem está na sua própria natureza.
Mas para Deus — bendito seja o Seu Nome — tudo é possível.
Estas instruções acerca das riquezas levam Pedro a perguntar qual seria a porção daqueles que tinham renunciado a tudo. Somos assim reconduzidos à glória do capítulo 17.
Haverá uma regeneração; o estado de coisas será inteiramente renovado sob o domínio do Filho do homem. Nesse tempo, os discípulos sentar-se-ão sobre doze tronos para julgarem as doze tribos de Israel. Eles terão o primeiro lugar na administração do reino terrestre. Cada um, porém, terá o seu próprio lagar; porque, quaisquer que fossem as coisas às quais tinham renunciado por amor de Jesus, receberiam o cêntuplo e a vida eterna. Aliás, a decisão não será estabelecida sobre as aparências, nem segundo o lugar que os homens ocupam no velho sistema, e perante os outros homens. Muitos dos primeiros serão os últimos— e muitos dos últimos serão os primeiros.
Com efeito, era de recear que o coração carnal do homem, num espírito mercenário, não aceitasse um tal encorajamento como forma de recompensa por todo o seu trabalho e por todos os seus sacrifícios, e procurasse fazer de Deus seu devedor.
CAPÍTULO 20 e 21
É por isso que, na parábola pela qual o Senhor continua o Seu discurso, Ele estabelece claramente o princípio da graça e da soberania de Deus naquilo que Ele dá, e de uma maneira distinta para com aqueles que Ele chama. O Senhor faz depender do Seu chamamento e da Sua graça os Seus dons àqueles que Ele introduz na Sua vinha.
Podemos notar que, quando o Senhor responde a Pedro, o faz como consequência de ele ter deixado tudo para seguir a Cristo após a Sua chamada. O motivo era o próprio Cristo; por isso Ele diz: «Vós, que me seguistes». Fala daqueles que tudo deixaram por amor do Seu Nome. Eis o motivo! A recompensa é um incentivo para quando, por amor de Cristo, estamos já no caminho. É sempre assim, quando se fala de recompensa no Novo Testamento (1).
(1) Com efeito, a recompensa, nas Escrituras, é sempre um estimulo para aqueles que estão em aflição e em sofrimento, por terem entrado, por motivos mais elevados, nos caminho de Deus. Fora assim com Moisés, com o próprio Cristo, cujos motivos se encontravam num perfeito amor, como sabemos, e, no entanto, por causa da alegria que estava perante Ele, suportou a Cruz, tendo desprezado a vergonha. Estava (archêgos kaiteleiôtés) no caminho da fé.
Aquele que foi chamado à undécima hora dependia desta chamada para a sua entrada no trabalho; e se o seu amo, na sua bondade, decidia dar-lhe tanto como aos outros, eles deveriam alegrar-se com isso. Aos primeiros havia sido feita justiça; recebiam o que havia sido estipulado. Os últimos desfrutavam da graça do amo. E o Senhor faz notar que eles aceitaram o princípio da graça, da confiança nessa graça: «Dar-vos-ei o que for justo». O ponto essencial da parábola é justamente esse — a confiança na bondade do dono da vinha, e a graça como ponto de partida da sua ação. Mas quem o compreendia? Um Paulo podia entrar tarde na obra, tendo sido chamado por Deus nessa altura, e, não obstante, ser um testemunho mais poderoso da graça do que os obreiros que tinham trabalhado desde a aurora do Evangelho.
O Senhor prossegue o Seu assunto com os discípulos.
Sobre a Jerusalém, onde o Messias deveria ter sido recebido e coroado, para ser rejeitado c condenado à morte, mas para ressuscitar em seguida; e quando os filhos de Zebedeu vêm pedir-Lhe os dois primeiros lugares no reino, Ele responde- lhes que pode conduzi-los ao sofrimento; mas quanto aos primeiros lugares no Seu reino, não pode concedê-los (segundo os desígnios do Pai) senão àqueles para quem o Pai os havia preparado. Que maravilhosa renúncia a Si próprio! É para o Pai, para nós, que Ele trabalha. De nada dispõe.
Pode conceder àqueles que O seguirem uma parte dos Seus sofrimentos, mas todas as outras coisas serão dadas segundo os desígnios do Pai. Mas que real glória para Cristo e que perfeição n'Ele, e que privilégio para nós de não termos senão este motivo e de partilharmos os sofrimentos do Senhor! E que purificação para os nossos corações carnais nos é aqui proposta, fazendo-nos atuar só para um Cristo sofredor, compartilhar da Sua Cruz, e nos entregarmos a Deus para a recompensa! O Senhor aproveita então o momento para explicar os sentimentos que convém aos Seus seguidores e cuja perfeição eles tinham visto n'Ele.
No mundo, procurava-se a autoridade, procurava-se ser grande; mas o espírito de Cristo era o espírito de serviço, que fazia escolher o último lugar e mostrar uma dedicação absoluta aos outros. Formosos e perfeitos princípios, cuja plena e brilhante perfeição foi manifestada em Cristo. Abandonar tudo, a fim de depender confiadamente na graça d'Aquele que servimos; e, como consequência, a prontidão em tomar o lugar mais humilde, sendo assim servos de todos — eis o que deveria ser o espírito dos que tem pane no reino, tal como o estabeleceu agora o Senhor que foi rejeitado. Ê isto o que convém àqueles que O seguem (1). Esta parte do Evangelho termina com o verso 28, principiando então as cenas finais da vida do nosso Bendito Salvador.
(1) Note-se a maneira como os filhos de Zebedeu e sua mãe procuram o primeiro lugar no próprio momento em que o Senhor Se dispõe a tomar o último, sem reserva. Infelizmente, quantos exemplos semelhantes não vemos nós a cada passo! Isto serve para mostrar a maneira absoluta como o Senhor Se despojou de tudo. Eis aqui os princípios do reino celeste: perfeita abnegação, contenta mento na completa dedicação; é o fruto do amor que não procura o seu próprio bem — condescendência que decorre daquilo que não se procura; submissão quando se é desprezado, doçura e humildade de coração, o amor produz ao mesmo tempo quer o espírito de serviço para com os outros, quer a humildade Que fica contente com esta posição. O Senhor cumpriu isto até à morte, dando a Sua vida em resgate de muitos.
No verso 29 (2) começa a Sua última apresentação a Israel como Filho de Davi, O Eterno, o verdadeiro Rei de Israel, o Messias. Começa, a este respeito, a Sua carreira em Jericó, o lugar onde Josué entrou no país — lugar onde a maldição permaneceu por tão longo tempo.
(2) O caso do cego de Jericó marca, nos três primeiros Evangelhos, o princípio das circunstâncias finais da vida de Cristo, as quais conduziam à Cruz, estando terminado o conteúdo gerei e os ensinamentos de cada um deles. Desde então Jesus é apresentado como Filho de Davi, sendo como tal a última apresentação que faz de Si próprio a esse povo» e sendo-Lhe premiado o testemunho de Deus sob esse título.
Abre os olhos cegos do Seu povo, dos que creem n’Ele e O recebem como o Messias, pois Ele o era verdadeiramente, embora rejeitado.
Os cegos saúdam-No como Filho de Davi, e Ele responde à sua fé, abrindo-lhes os olhos. Seguem-No — figura do verdadeiro Remanescente do Seu povo, que espera por Ele.
Em seguida Jesus, dispondo de tudo o que pertence a um povo de boa vontade, faz a Sua entrada em Jerusalém como Rei e Senhor, de conformidade com o testemunho de Zacarias. Mas, apesar de ali entrar como Rei — último testemunho para a cidade amada, que (para sua ruína) ia rejeitá-Lo—vem como um Rei humilde e manso. O poder de Deus atua sobre o coração das multidões; e elas aclamam Jesus como Rei, como Filho de Davi, servindo-se das expressões do Salmo 118 (1), que celebra o sábado milenial introduzido pelo Messias, devendo ser então reconhecido pelo povo.
(1) Este Salmo é particularmente profético para o tempo da futura recepção do Senhor; é muitos vezes citado em relação com essa recepção.
As multidões estendem os seus vestidos para prepararem o caminho do seu glorioso, mas humilde Rei. Cortam ramos das árvores para Lhe darem testemunho, e Ele é conduzido em triunfo até Jerusalém, enquanto o povo exclama: «Hosana ao Filho de Davi; bendito O que vem em nome do Senhor; hosana nas maiores alturas!».
Quão felizes seriam, se os seus corações tivessem sido transformados, para conservarem esse testemunho pelo Espírito; mas Deus, era Sua soberania, dispunha os seus corações para prestarem esse testemunho.
Ele não podia permitir que o Seu Filho fosse rejeitado sem o receber.
E agora o Rei, mantendo totalmente a Sua posição de humildade e de testemunho, vai passar tudo em revista.
Aparentemente, são as diferentes classes do povo que vêm para O julgar e para O enredar; mas, de fato, elas apresentam-se todas perante Ele para receberem das Suas mãos, umas após as outras, o julgamento de Deus a seu respeito.
É uma cena emocionante esta que se desenrola aqui, perante os nossos olhos — o verdadeiro Juiz, o Rei eterno, apresentando-Se, peia última vez, ao Seu povo rebelde, com o testemunho mais glorioso prestado ao Seu poder e aos Seus direitos; e eles vindo para O atormentarem e para O condenarem, levados pela sua própria maldade a desfilarem perante Ele uns após os outros, expondo abertamente o seu verdadeiro estado, para receberem seu próprio julgamento, sem que Ele deixe, por um instante sequer, (a não ser na purificação do templo, antes de começar esta cena) a posição de Fiel e Verdadeira testemunha em toda a humildade na Terra.
Há duas partes a distinguir nesta narrativa. A primeira apresenta o Senhor no Seu carácter de Messias e de Jeová.
Como Senhor, ordena que Lhe seja trazido o jumento (verso 1-3). Entra na cidade, segundo a profecia, como Rei (versos 7-11). Purifica o templo com autoridade (versos 12-13). Às objeções dos sacerdotes, Ele responde com o Salmo 8, que fala da maneira como o Eterno tira a Sua glória e estabelece os Seus justos louvores pelos lábios das criancinhas (versos 15-16). No templo, cura também a Israel (verso 14). Depois o Senhor deixa-os, não podendo ficar na cidade, que já não podia reconhecer, mas ficando fora com o Remanescente. No dia seguinte, por uma imagem notável, Ele mostra a maldição que vai cair sobre o povo. Israel era a figueira do Eterno, mas atravancava a terra.
Estava ornamentada de folhas, mas não produzia nenhum fruto. A figueira, julgada pelo Senhor, seca imediatamente.
É uma figura dessa infeliz nação, do homem na carne com todas as suas vantagens, que não dava nenhum fruto para o Cultivador.
Com efeito, Israel tinha todas as formas exteriores de religião; era zeloso pela lei e pelas ordenanças, mas não dava fruto para Deus.
Enquanto colocado sob a responsabilidade de o dar, isto é, sob a antiga aliança, nunca o dará.
A rejeição de Jesus pôs fim a essa esperança. Deus atuará em graça sob a nova aliança, mas aqui não se trata disso.
A figueira representa Israel, tal como se encontrava: o homem cultivado por Deus, mas em vão. Tudo estava acabado.
Não duvido de que aquilo que o Senhor diz aqui aos discípulos a respeito de remover montanhas (versos 20-22), sendo um grande princípio geral, se refere também ao que devia ter lugar em Israel por meio do ministério deles.
Encarado como um corpo sobre a Terra, como nação, Israel desapareceria e perder-se-ia entre os Gentios. Os discípulos eram o que Deus acolhia segundo a sua fé.
Vemos o Senhor entrar em Jerusalém como Rei — Jeová, o Rei de Israel—e em seguida o Julgamento pronunciado sobre a nação.
Seguem-se então os pormenores do Julgamento sobre as diversas classes que formavam esse povo. Em primeiro lugar vem os principais sacerdotes e os anciãos, que deveriam ter guiado o povo; chegam-se ao Senhor e põem em questão a Sua autoridade (versos 23 e seguintes). Dirigindo-se Lhe desse modo, tomam o lugar de chefes da nação e presumem ser juízes, aptos a pronunciarem-se sobre a validade de qualquer juízo que pudesse ser feito; de contrário, porque se ocupavam eles de Jesus? O Senhor, na Sua infinita sabedoria, faz-lhes uma pergunta que põe à prova a sua competência, e, segundo a sua própria confissão, eles eram incompetentes. Então, como julgá-Lo?! (1) Dizer-lhes qual era o fundamento da Sua autoridade, era inútil. Era tarde demais para lhes comunicar qual era esse fundamento.
(1) Reenviar à consciência é, muitas vezes, a resposta roais acertada, quando a vontade é perversa.
Lapidá-Lo-iam se Ele tivesse declarado a Sua verdadeira origem. Por isso lhes responde: Pronunciai-vos sobre a missão de João Batista.
E se eles não podiam fazê-lo, por que então inquirir acerca da Sua própria? Eles não podiam pronunciar-se. Reconhecer a missão de João Batista como enviado de Deus equivalia a reconhecer a Cristo. Negar que João tinha sido enviado por Deus acarretar-Lhes-ia o perderem a sua influência junto do povo. Não havia, para eles, problema de consciência! Confessam a sua incompetência. Então Jesus declina a competência deles como chefes e guardiões da fé do povo: Eles tinham-se julgado a eles mesmos. Então, a partir do verso 28 até ao verso 14 do capítulo 22, o Senhor põe claramente diante dos olhos deles a sua conduta e os caminhos de Deus a seu respeito.
Em primeiro lugar, tendo a pretensão de fazerem a vontade de Deus, não a faziam; enquanto que os que eram manifestamente maus se haviam arrependido e a tinham feito. Eles, vendo isto, ficaram ainda mais endurecidos.
Em seguida, não só a consciência natural não tinha sido atingida neles, nem pelo testemunho de João nem pelo arrependimento de outros, embora Deus tivesse empregado todos os meios próprios para os fazer dar fruto digno dos Seus cuidados, como também só encontrou neles perversidade e rebelião. Os profetas tinham sido rejeitados, e o Seu Filho sê-lo-ia de igual modo. Eles queriam a herança do Filho para si próprios (verso 38). Não podiam deixar de reconhecer que as consequências de um tal crime seriam necessariamente a destruição desses malvados e a entrega da vinha a outros. Jesus aplica-lhes a parábola citando o Salmo 118 (versos 22-23), anunciando que a pedra rejeitada pelos construtores se tornaria a principal pedra angular; além disso, todo aquele que caísse sobre esta pedra — como fazia a nação naquele momento — seria despedaçado; e aquele sobre quem ela caísse—esta será a sorte da nação rebelde nos últimos dias — ficaria reduzido a pó (verso 44). Os principais sacerdotes e os Fariseus compreenderam que Ele falava deles, mas não ousaram pôr as mãos sobre Ele, porque as multidões O tinham por profeta.
Tal é a história de Israel considerada na sua própria responsabilidade até aos últimos dias. Jeová buscava fruto na Sua vinha.
CAPÍTULO 22
Aqui, o comportamento da nação quanto ao convite da graça é, por sua vez, apresentado. A parábola é, portanto, uma semelhança do reino dos céus. -Deus quer honrar o Seu Filho celebrando as Suas bodas. Em primeiro lugar, os Judeus, já comi dados, são chamados para a festa. Eles não querem vir a ela. Isto foi feito durante a vida de Cristo. Depois, estando tudo preparado, Deus envia de novo os Seus mensageiros para os induzirem a vir. Esta é a mis são dos apóstolos à nação, quando a obra da redenção foi cumprida. Os Judeus desprezam a mensagem ou matam os mensageiros (1).
(1) O desprezo e a violência são as duas formas da. Rejeição do testemunho de Deus, e ás verdadeira testemunha. Eles odeiam um e amam o outro, cu se ligam a um c desprezam o outro.
O resultado é a destruição dos malvados e da sua cidade. Trata-se do julgamento que se abateu sobre Jerusalém.
Devido à recusa de aceitarem o convite, são agora admitidos ao festim os infelizes, os Gentios, os que estavam de fora—e a sala de núpcias fica cheia de convidados.
Mas aqui uma outra coisa se apresenta. Encontrámos, é verdade, o Julgamento de Jerusalém nesta parábola, mas, como é uma semelhança do reino, temos nela também o Julgamento do que se encontra dentro do reino. Cada circunstância tem de estar de harmonia com o seu carácter.
Ora, para uma festa nupcial é preciso um vestido de núpcias.
Se Cristo vai ser glorificado, tudo tem de estar de acordo com a Sua glória. Fede haver uma aparente entrada no reino, uma profissão de Cristandade; mas quem não estiver vestido daquilo que convém às núpcias será lançado fora. Temos de estar revestidos do próprio Cristo. Por outro lado, tudo está preparado — nada é pedido. Os convidados não tinham de levar coisa alguma. O Rei tinha provido a tudo. Alas temos de estar imbuídos do espírito daquilo que é feito. Se houver o pensamento do que é próprio para uma festa nupcial, a necessidade de um vestido de núpcias será evidentemente sentida; caso contrário, a honra do Filho do Rei terá sido esquecida. O coração será estranho à festa; o próprio homem será tratado como estranho pelo Julgamento do Rei, quando tomar conhecimento dos convidados que entraram.
Assim foi também manifestada a graça a Israel — e Israel é julgado por ter recusado o convite do grande Rei para a festa de Seu Filho. E é também julgado o abuso desta graça por parte daqueles que aparentemente aceitaram o convite. A entrada dos Gentios é anunciada. Termina aqui a história do Julgamento de Israel em geral, e do carácter que tomará o reino.
Depois disso (versos 15 e seguintes), as diferentes classes de Judeus são apresentadas, cada uma por sua vez. Primeiro, os Fariseus e os herodianos (quer dizer aqueles que favoreciam a autoridade dos Romanos e aqueles que se lhes opunham) procuravam confundi-Lo nas Suas palavras.
O bendito Salvador responde-lhes com aquela perfeita sabedoria que sempre manifestava em tudo quanto fazia e dizia.
Da parte deles, aquilo não era senão pura maldade, manifestando uma ausência total de consciência. O seu próprio pecado os tinha colocado sob o jugo romano, posição contrária, com efeito, àquela que deveria ser a do povo de Deus na Terra. Assim, e aparentemente, Cristo tinha de Se tornar alvo das suspeitas das autoridades, ou então renunciar à pretensão de ser o Messias e, por consequência, o Libertador. Mas quem havia dado lugar a este dilema? Não era o fruto dos próprios pecados deles? O Senhor mostra-lhes que eles próprios tinham aceitado o jugo. O dinheiro comportava a marca do fato: que dessem, portanto, o dinheiro a quem ele pertencia; e que dessem também — o que eles não faziam — a Deus o que era de Deus. O Senhor deixa-os sob o jugo que eram obrigados a confessar que haviam aceitado.
Lembra-lhes os direitos de Deus, os quais eles tinham esquecido. Tal deveria ter sido o estado de Israel segundo o estabelecimento do poder em Nabucodonosor «uma videira mui larga, de pouca altura» (Ezequiel 17:6).
Vêm a seguir os Saduceus à Sua presença e interrogando a respeito da ressurreição, pensando provar o seu absurdo. Ora, do mesmo modo como o estado da nação havia sido posto em evidência na conversa de Jesus com os Fariseus, também a incredulidade dos Saduceus é aqui demonstrada. Os Saduceus pensavam apenas nas coisas deste mundo, querendo negar a existência de um outro mundo. Mas, por maior que fosse o estado de degradação e de sujeição em que o povo tinha caído, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob não mudava. As promessas feitas aos pais permaneciam inalteráveis, e os pais estavam vivos para delas gozarem mais tarde. Era a Palavra e o poder de Deus que estavam em questão. O Senhor mantinha-os com poder e evidência.
Os Saduceus são reduzidos ao silêncio.
Os doutores da lei, surpreendidos com a Sua resposta, fazem uma pergunta, que dá oportunidade ao Senhor para extrair do conteúdo da lei o que, aos olhos de Deus, é a sua essência, apresentando assim a sua perfeição, e o que — seja qual for o meio por que possa ser alcançada — faz a felicidade dos que andam nela. Apenas a graça se eleva mais alto.
Terminam aqui as interrogações deles. Tudo está julgado e posto à luz a respeito da posição do povo e das seitas de Israel; e o Senhor tem posto diante deles os perfeitos pensamentos de Deus a seu respeito, quer acerca do estado espiritual do povo, quer das Suas promessas ou da substância da lei.
Era agora a vez de Jesus levantar uma questão para fazer sobressair a Sua própria posição. Propõe aos Fariseus conciliarem o título de «Filho de Davi» com o de «Senhor» que o próprio Davi Lhe dera, e isto em relação com a ascensão desse mesmo Cristo para Se assentar à destra de Deus até que os Seus inimigos sejam postos por escabelo de Seus pés, e Ele estabeleça o Seu trono em Sião. Ora, esta era a chave da posição de Cristo nesse momento. Incapazes de Lhe responder, ninguém mais ousou fazer-Lhe perguntas.
Com efeito, se os Judeus tinham podido compreender este Salmo 110, também tinham compreendido todos os desígnios de Deus acerca de Seu Filho no momento em que iam rejeitá-Lo. Isto terminava necessariamente estas conversas, mostrando a verdadeira posição de Cristo, que, embora o Filho de Davi, tem de subir ao Céu para receber o reino, e, enquanto espera por ele, ficar sentado à direita de Deus, de acordo com os direitos da Sua gloriosa Pessoa —-Senhor de Davi, do mesmo modo que Filho de Davi.
Existe um outro ponto interessante que deve ser acentuado aqui.
Nestas conversas e discursos com as diferentes classes dos Judeus, o Senhor revela o estado espiritual deles a respeito das suas relações com Deus, e em seguida a posição que Ele próprio tomou. Em primeiro lugar mostra a posição nacional que eles tinham perante Deus, como sendo responsáveis para com Ele, de acordo com a consciência natural e os privilégios que lhes pertenciam. O resultado seria serem eles cortados e substituídos por outros na vinha do Senhor (capítulo 21:28-46). Em seguida o Senhor expõe a condição deles em relação com a graça do reino, assim como a introdução dos pecadores gentios. Também aqui o resultado é serem cortados e a cidade destruída (1).
(1) Desde o verso 28 do capitulo 21 até ao fim, encontramos a responsabilidade da nação considerada como gozando dos seus antigos privilégios, segundo os quais ela deveria ter produzido freto.
Não o tendo feito, um outro povo a substitui. Mas não é isso a causa do Julgamento que se executava contra Jerusalém, devendo ainda exercer-se de maneira mais terrível, que levará à destruição da cidade. A morte de Jesus, o último daqueles que tinham sido enviados para buscarem fruto, acarreta o julgamento sobre esses assassinos (Mateus 21:31-41). A destruição de Jerusalém é a consequência da rejeição do testemunho ao reino, testemunho enviado para os chamar em graça. Trata-se do início do Julgamento sobre os vinhateiros — os Escribas, os principais sacerdotes e os chefes do povo. O Julgamento executado, por causa da rejeição do testemunho, vai mais longe (verso 7). Uns desprezam a mensagem, os outros maltratam os mensageiros; sendo a graça assim rejeitada, a cidade é queimada e os seus habitantes são cortados (comparar: capítulo 23:36 e ver a profecia histórica em Lucas 21). Esta distinção c mantida em cada um dos três Evangelhos.
Depois os Herodianos, amigos dos Romanos, e os Fariseus, seus inimigos, pretensos amigos de Deus, fazem sobressair a verdadeira posição dos Judeus frente ao poder imperial dos Gentios e perante Deus. Na Sua entrevista com os Saduceus, o Senhor mostra-lhes a certeza das promessas feitas aos pais, e as relações de Deus com eles acerca da vida e da ressurreição. Depois mostra aos Escribas o verdadeiro alcance da lei, e enfim a posição que Ele, o Filho de Davi, tomava, segundo o Salmo 110; posição que se ligava com a Sua rejeição pelos condutores da nação que o rodeava.
CAPÍTULO 23
Este capítulo mostra claramente até que ponto os discípulos são considerados em relação com a nação enquanto povo judeu, embora o Senhor julgue os chefes que seduziam o povo e desonravam a Deus com a sua hipocrisia. Jesus diz à multidão e aos Seus discípulos (verso 2): «Na cadeira de Moisés se assentaram os Escribas e os Fariseus».
Sendo deste modo os intérpretes da lei, deviam ser obedecidos em tudo o que diziam segundo a lei, embora o seu comportamento não fosse senão hipocrisia, O que é importante aqui é a posição dos discípulos, que é efetivamente a mesma que a de Jesus. Estão em relação com tudo o que é de Deus na nação, isto é, com a nação enquanto povo reconhecido de Deus — por consequência com a lei como tendo autoridade da parte de Deus. Ao mesmo tempo o Senhor julga, e os discípulos também deviam na prática julgar o andamento da nação, enquanto representada publicamente pelos seus chefes.
Deviam cuidadosamente evitar o comportamento dos Escribas e dos Fariseus, embora continuando a fazer parte da nação.
Depois de ter reprovado a esses pastores do povo a sua hipocrisia, o Senhor assinala a maneira como eles próprios condenavam os atos dos seus pais — edificando os sepulcros dos profetas que eles tinham assassinado. Eles eram, pois, os filhos daqueles que tinham morto os profetas, e Deus punha-os à prova enviando-Lhes também profetas, justos e escribas; eles encherão a medida da sua iniquidade perseguindo e matando esses enviados—condenando-se assim eles mesmos pelas suas próprias palavras — a fim de que todo o sangue dos justos, derramado desde Abel até Zacarias, caísse sobre essa geração, como se lê nos versos 35-30.
Terrível acumulação de culpas, desde o começo da inimizade que o homem pecador, quando colocado sob responsabilidade, tem mostrado sempre para com o testemunho de Deus; e que aumentava todos os dias, porque a consciência endurecia mais e mais à medida que se obstinava contra esse testemunho. À verdade era tanto mais evidente quanto era certo que as suas testemunhas haviam sofrido. Era um escolho visível a evitar na marcha do povo.
Mas o povo perseverava em fazer o mal, e cada passo em frente nesse caminho, cada ato semelhante, ora uma prova do seu crescente endurecimento. Tudo estava acumulado sobre a cabeça dessa geração reprovada.
Note-se aqui o carácter atribuído aos apóstolos e aos profetas cristãos.
Escribas, sábios, profetas, são enviados aos Judeus — à nação rebelde.
Isto mostra claramente qual o ponto de vista em que eles são considerados neste capítulo. Até mesmo os apóstolos são «sábios», são «escribas» enviados aos Judeus.
Mas a nação—Jerusalém, a cidade bem amada de Deus — é culpada e é julgada. Cristo, como temos visto desde a cura do cego perto de Jerico, apresenta-Se como o Eterno, o Rei de Israel. Quantas vezes quis Ele ajuntar os filhos de Jerusalém, e eles não quiseram! (versos 37-39). E agora a sua casa ia ficar deserta até que, convertidos de coração, se servissem das expressões do Salmo 118, e, em seu desejo, aclamassem a vinda D'Aquele que vem em nome do Eterno, esperando a libertação das Suas mãos e pedindo-Lha— numa palavra, até que clamem: Hosana Àquele que vem. Não veriam mais a Jesus até que, humilhados de coração, proclamassem bendito Aquele que esperavam, e que agora rejeitavam — enfim, até que estejam preparados de coração. A paz virá depois; o desejo precede o Seu aparecimento.
Os últimos três versos mostram-nos claramente a posição dos Judeus, ou de Jerusalém como centro do sistema judaico perante Deus. Desde há muito, e muitas vezes, Jeová o Salvador, quisera ajuntar os filhos de Jerusalém como a galinha ajunta os seus pintainhos debaixo das suas asas, mas eles não quiseram. A sua casa permanecerá abandonada e deserta, mas não para sempre. Depois de terem morto os profetas e lapidado aqueles que lhes tinham sido enviados, os Judeus tinham crucificado o seu Messias, e rejeitado e matado aqueles que Ele lhes tinha enviado para lhes anunciarem a graça, mesmo depois da Sua rejeição.
Por isso não O verão mais até que se arrependam e o desejo de O verem germine em seus corações, de modo que estejam preparados para O bendizerem — e O bendigam em seus corações, e façam confissão desse desejo. 0 Messias, que ia deixá-los não será mais visto por eles até que o arrependimento incline os seus corações para Aquele que nesse momento rejeitavam. Depois, eles O verão. 0 Messias, vindo em nome de Jeová, será manifestado ao Seu povo Israel. Ê Jeová, o seu Salvador, Quem aparecerá, e o Israel, que 0 tinha rejeitado, como tal O verá. O povo entrará assim no gozo das suas relações com Deus.
Tal é o quadro moral e profético de Israel. Os discípulos, como Judeus, eram considerados como fazendo parte da nação, embora como um Remanescente espiritualmente separado dela, e dando testemunho no seu meio.
CAPÍTULO 24
Vimos já que a rejeição do testemunho do reino em graça á a causa do Julgamento que se abate sobre Jerusalém e seus habitantes. Ora, o capítulo 24 dá-nos a posição desse testemunho no meio do povo; dános o estado espiritual dos Gentios e a relação em que se encontravam com o testemunho dado pelos discípulos. Depois temos o estado espiritual de Jerusalém, que era a consequência da rejeição do Messias e o seu desprezo pelo testemunho. Temos, enfim, a derrocada universal que terá lugar no fim desse tempo — estado de coisas que terminará pela aparição do Filho do homem e a congregação dos eleitos de Israel desde os quatro ventos.
Esta notável passagem merece toda a nossa atenção.
Ela é ao mesmo tempo uma profecia e um ensinamento dirigidos aos discípulos para os orientar no caminho que eles teriam de seguir através dos acontecimentos que iam ter lugar.
Jesus deixa c templo, e isto para sempre. Ato solene que, pode dizerse, executava o Juízo que Ele acabava de proferir. A Casa estava agora deserta. Mas o coração dos discípulos permanecia ainda acorrentado a esse templo pelos seus antigos preconceitos. Assim, chamam a atenção de Jesus para os magníficos edifícios que formavam o conjunto.
Mas Jesus anuncia-lhes a sua destruição total. Depois, tendo-se retirado com Ele para o Monte das Oliveiras, os discípulos perguntamLhe quando terão lugar essas coisas, e qual será o sinal da Sua vinda e da consumação do século (verso 3). Relacionam a destruição do templo com a vinda de Cristo e a consumação do século. Esta — convém notá-lo — é o fim do período durante o qual Israel estava sujeito a lei sob a antiga aliança, período que devia cessar para dar lugar ao Messias e à nova aliança. É preciso notar ainda que se trata do governo da Terra da parte de Deus, e dos Julgamentos que se executarão aquando da vinca de Cristo, que porá fim ao século de então. Os discípulos confundiam o que o Senhor tinha dito a respeito da destruição do templo com essa época(1).
(1) De fato, esta posição de Israel e o testemunho que a ela se refere foram interrompidos pela destruição de Jerusalém; é por isso que este acontecimento se apresenta ao espírito em relação com a profecia de que não e certamente o cumprimento. O Senhor ainda não veio, nem a grande tribulação; mas o citado de coisas, ao qual o Senhor faz alusão até ao fim do verso 14, sofre uma interrupção violenta e judiciária pela destruição de Jerusalém, de sorte que há, sob este ponto de vista, uma relação entre os dois acontecimentos.
O Senhor trata do assunto do Seu ponto de vista (quer dizer, do ponto de vista do testemunho que os discípulos deviam prestar em relação com os Judeus, durante a Sua ausência, e do ponto de vista da consumação do século). Nada acrescenta acerca da destruição de Jerusalém, que já tinha anunciado. O tempo da Sua vinda era ocultado de propósito. Além disso, a destruição de Jerusalém por Tito pôs fim, com efeito, à posição que as instruções do Senhor tinham em vista. Já não existia nenhum testemunho reconhecível entre os Judeus. Quando esta posição for reassumida, a aplicabilidade da passagem sê-lo-á também. Depois da destruição de Jerusalém até esse momento só a Igreja é tida em consideração.
O discurso do Senhor divide-se em três partes: Primeira, o estado geral dos discípulos e do mundo durante o tempo do testemunho, até ao fim do verso 14; Segunda, o período caraterizado peio fato de que a abominação da desolação é estabelecida no lugar santo (verso 15); Terceira, a vinda do Senhor e a congregação dos eleitos em Israel (verso 29).
Eis o que caracteriza o tempo do testemunho dos discípulos: Falsos Cristos, falsos profetas entre os Judeus, e a perseguição movida aos que prestam testemunho, entregando-os por fim aos Gentios. Mas há detalhes mais precisos ainda a respeito desses dias: Haveria falsos Cristos em Israel; haveria guerras, fomes, pestes e terramotos.
Mas eles não deviam perturbar-se: ainda não seria o fim.
Essas coisas não seriam senão o princípio das dores (versos 5-8).
Eram principalmente coisas exteriores. Havia outros acontecimentos que poriam os discípulos ainda mais à prova — coisas mais íntimas.
Os discípulos seriam entregues aos seus inimigos para serem afligidos, mortos, odiados de todas as nações. O resultado disto será que, entre os que fizeram profissão de serem discípulos, muitos se escandalizarão; e uns aos outros se trairão e se entregarão.
Surgirão falsos profetas e seduzirão a muitos, e porque a iniquidade se multiplicará, o amor de muitos se esfriará — que triste quadro! Mas estas coisas dão lugar ao exercício de lima Fé já provada. Aquele que perseverar até ao fim será salvo. Isto diz respeito à esfera própria do testemunho em particular. O que o Senhor diz não é de modo nenhum limitado ao testemunho em Canaã; mas como Canaã é o ponto de partida do testemunho, tudo está em relação com essa região como centro dos caminhos de Deus.
Em seguida (verso 14), o Evangelho do reino será pregado em todo o mundo para testemunho a todas as nações; e então virá o fim — a consumação do século. Ora, embora o Céu seja a fonte da autoridade quando o reino for estabelecido, Canaã e Jerusalém formam os seus centros terrestres.
De modo que a ideia do reino, embora estendendo-se a todo o mundo, leva os nossos pensamentos para a Terra de Israel, E «este Evangelho do reino» (1) de que se fala aqui; não é a proclamação da união da Igreja com Cristo, nem a redenção na sua plenitude, como foi pregada e ensinada pelos apóstolos, após a ascensão do Senhor; mas é o reino que ia ser estabelecido na Terra, como João Batista e o próprio Senhor tinham anunciado.
(1) O Evangelho do reino foi confiado a Israel no capítulo 10, e aqui, embora isso não constitua o objeto de uai traina mento, é o assunto que vão até ao verso 14, não havendo, porém, distinção formal. A missão do capítulo 28 diz respeito aos Gentios; mas então não há nada do reino, antes o contrário, embora Cristo seja ressuscitado.
Porém, todo o poder Lhe e dado no Céu e na Terra.
O estabelecimento da autoridade universal de Cristo glorificado será pregado em todo o mundo, para pôr à prova a obediência dos discípulos, e para fornecer o objeto da fé a todos aqueles que tinham ouvidos para ouvir.
Eis, pois, a história geral do que se fará até ao fim do século, sem entrar no assunto da proclamação que fundou a Igreja propriamente dita. A destruição iminente de Jerusalém e a recusa dos Judeus de aceitarem o Evangelho fizeram com que Deus suscitasse um testemunho especial por intermédio de Paulo, sem anular a verdade do futuro reino. O que se segue demonstra que este estabelecimento do testemunho do reino terá lugar no fim, e que o testemunho chegará a todas as nações antes de vir o Julgamento que porá fim ao século.
Mas haverá um momento em que, dentro de uma determinada esfera (a saber: Jerusalém e seus arredores), se desencadeará um período especial de sofrimento com respeito ao testemunho em Israel. Falando da abominação que produz a desolação, o Senhor recorda-nos Daniel a fim de podermos compreender o assunto de que Ele fala.
Ora Daniel (capítulo 12, onde se fala desta tribulação) coloca-nos definitivamente nos últimos dias —no tempo em que Miguel se levantará em defesa do povo de Daniel, isto é, dos Judeus, que se encontram sob o domínio dos Gentios — dias em que haverá um tempo de tribulação tal como nunca houve desde o princípio do mundo até agora, e nem haverá jamais, e em que o Remanescente será libertado (Daniel 12:1). Na última parte do capítulo precedente desse profeta, este tempo é chamado «o tempo do fim» (Daniel 11:40), e a destruição do rei do norte é profeticamente declarada. Ora o profeta anuncia (Daniel 12:11-12) que mil trezentos e trinta e cinco dias antes da plena bênção (e bem-aventurado aquele que nela participar) o sacrifício contínuo será abolido e a abominação que causa a desolação será estabelecida; Além disso anuncia que, desde esse momento, haverá mil duzentos e noventa dias (isto é, mais um mês do que os mil duzentos e sessenta dias de que se fala em Apocalipse, e durante os quais a mulher que foge da serpente é alimentada no deserto; e também um mês mais de que os três anos e meio do fim do capítulo 7 de Daniel, verso 25). Depois disso, como vemos aqui, vem o Julgamento e o reino é entregue aos santos.
Desta forma está bem provado que esta passagem (Mateus 24:15) se refere aos últimos dias e à posição dos Judeus por essa época. Os acontecimentos do tempo passado, desde que o Senhor falou, confirmam este pensamento. Nem durante mil duzentos e sessenta dias, nem mil duzentos e sessenta anos depois do tempo de Tito, nem tampouco trinta dias ou trinta anos depois se deu qualquer acontecimento que pudesse ser o cumprimento desses dias de Daniel.
Os períodos já passaram há muitos anos. Israel não foi libertado, nem Daniel se viu na sua sorte no final desses dias.
É igualmente claro que se trata aqui, nesta passagem, de Jerusalém e dos seus arredores, porque aqueles que se encontram na Judeia são convidados a fugir para os montes (verso 16).
Os discípulos que se encontrarem na Judeia nessa época deverão orar para que a sua fuga não se dê em dia de sábado (verso 20) —mais uma prova de que os Judeus são o assunto da profecia; mas é também um testemunho da terno cuidado que o Senhor tem daqueles que são Seus, ocupando-Se deles, mesmo no meio desces acontecimentos sem paralelo, do tempo que faria no momento da sua fuga.
Além disso, diversas circunstâncias mostram, se mais provas fossem necessárias, que se trata do Remanescente judaico, e não d a Igreja.
Nós sabemos que todos os fiéis devem ser arrebatados para irem ao encontro do Senhor nos ares, e que depois voltarão com Ele (1 Tessalonicenses 4:17 e 14). Mas aqui vemos que haverá falsos cristos na Terra, e dirão: «Eis que ele está no deserto», «eis que ele está no interior da casa» (versos 24-26). Alas os santos, que serão arrebatados e que voltarão com o Senhor, nada têm que ver com os falsos cristos na Terra, visto que irão para o Céu para estarem com Ele ali, antes da Sua vinda à Terra. Pelo contrário, e fácil de compreender que os Judeus, que esperam uma libertação terrestre, sejam susceptíveis de tais tentações e sejam enganados por esses pretensos cristos, se não estiverem guardados pelo próprio Deus.
Vê-se, pois, que esta parte da profecia se aplica aos últimos dias, aos três últimos anos e meio ao fim dos quais o Julgamento se manifestará pela vinda do Filho do homem. O Senhor virá subitamente, como um relâmpago, como uma águia sobre a sua presa, lá ao lugar onde se encontrar o objeto do Seu Julgamento (versos 27-28).
Imediatamente após a tribulação desses últimos três anos e meio, todo o sistema hierárquico de governo será abalado e inteiramente destruído (verso 29). Aparecerá então o sinal do Filho do homem, no céu, e todas as tribos da Terra verão o Filho do homem vindo sobre as nuvens do céu com poder e grande glória (versos 29-30). Este verso 30 é a resposta à segunda parte da pergunta dos discípulos, no verso 3.
O Senhor dá aos Seus discípulos as advertências necessárias para a sua orientação; mas o mundo não verá nenhum sinal, por mais claros que sejam esses sinais para aqueles que compreendem. Mas esse sinal não será dado senão no momento da aparição do Senhor. O resplendor da glória d'Aquele que o mundo tinha desprezado fará ver a esse mesmo mundo quem é Aquele que vem; e será do lado de onde o mundo menos O esperava! Que terrível momento esse quando, em vez do Messias que responderia ao seu orgulho terrestre, virem aparecer nos céus o Cristo que eles rejeitaram! Depois o Filho do homem, assim vindo e manifestado, mandará os Seus anjos ajuntar os Seus escolhidos, desde os quatro ventos, de uma à outra extremidade dos céus (verso 31). É isto o que termina a história dos Judeus e mesmo a de Israel, em resposta à pergunta dos discípulos, e manifesta os caminhos de Deus acerca do testemunho no meio do povo que O tinha rejeitado, anunciando o tempo da sua profunda angústia, e o Julgamento que estalará no meio desta cena, quando Jesus vier, sendo completa a subversão de todos os poderes, grandes e pequenos.
O Senhor dá a história do testemunho em Israel, e a desse próprio povo, desde o momento da Sua partida até à Sua vinda; mas o espaço de tempo durante o qual não haverá nem povo, nem templo, nem cidade, não é especificado, é isto o que dá especial importância à tomada de Jerusalém. Não se fala diretamente aqui desse acontecimento— o Senhor não o descreve; mas a tomada de Jerusalém pós fim à ordem de coisas às quais o discurso do Senhor se aplica, a essa ordem de coisas que não retoma a sua aplicação até que Jerusalém e os Judeus estejam de novo em cena, O Senhor anuncia-o desde o princípio. Os discípulos pensavam que a vinda do Senhor teria lugar ao mesmo tempo que a destruição de Jerusalém. Às perguntas que eles lhes tinham feito, Jesus responde de maneira que o Seu discurso lhes fosse útil até à tomada de Jerusalém, Mas, uma vez feita a menção da abominação e da desolação, achamo-nos transportados aos últimos dias.
Os discípulos deviam compreender os sinais que o Senhor lhes dava.
A destruição de Jerusalém, como disse já, pelo próprio fato em si, detinha a aplicação do discurso de Jesus, A nação judaica foi então posta de lado; mas o verso 34 tem um sentido muito mais amplo, e, realmente, mais apropriado. Os Judeus incrédulos subsistirão como tal até que tudo seja cumprido. (Comparar o capítulo 32 de Deuteronômio, versos 5 e 20, que tem particularmente em vista esse Julgamento de Israel). Deus oculta o Seu rosto até ver qual será o fim deles, porque são uma geração muito perversa, filhos em quem não há fé. E isto teve lugar. São uma raça à parte até ao dia de hoje. Essa geração subsiste — tal qual monumento de infalibilidade dos caminhos de Deus e das palavras do Senhor.
Enfim, o governo de Deus, exercido a respeito desse povo, está traçado até ao fim. O Senhor vem e congrega os eleitos dispersos de Israel (verso 31).
A história profética continua no verso 31 do capítulo 25, que se liga ao verso 30 do capítulo 24. E como este verso 31 do capítulo 24 dá o relato do ajuntamento de Israel depois do aparecimento do Filho do homem, o verso 31 do capítulo 25 anuncia a Sua ação em Juízo com os Gentios. O Filho do homem aparecerá, sem dúvida, como um raio, a respeito da apostasia, a qual será como um corpo morto perante Ele.
Mas quando vier solenemente para tomar o Seu lugar terrestre em glória, esse. Acontecimento não passará como um relâmpago.
Assentar-Se-á sobre o trono da Sua glória, e todas as nações serão congregadas perante Ele, assentado sobre o trono de Juízo, e elas serão julgadas segundo a forma como trataram os mensageiros do reino, que foram para lhe comunicar. Estes mensageiros são «os irmãos» de que se fala aqui (capítulo 25, verso 40); os que os receberam são «as ovelhas» (25:32-33); os que negligenciaram a sua mensagem são «os cabritos» (25:32; 41 e seguintes). O relato, começando no verso 31 do capítulo 25, da separação das ovelhas dos cabritos e dos seus resultados, representa as nações que são julgadas sobre a Terra segundo o tratamento que deram a esses mensageiros.
É o Julgamento dos vivos, pelo menos no que concerne às nações — um Juízo tão definitivo como o dos mortos. Não se trata aqui do Juízo guerreiro de Cristo, como no capítulo 19 de Apocalipse. É uma sessão do Seu supremo tribunal no Seu direito de governar a Terra, como em Apocalipse 20:4. Falo do princípio, ou antes, do caráter do Julgamento. Não tenho dúvidas de que esses «irmãos» são Judeus, tal como eram os discípulos, quer dizer que se encontrarão numa posição semelhante quanto ao seu testemunho.
Os Gentios que tiverem recebido a sua mensagem serão aceites como se tivessem tratado Cristo da mesma maneira. O Pai tinha-lhes preparado o gozo do reino; e eles entram nele, embora estando sobre a Terra, porque Cristo tinha vindo no poder da vida eterna (1).
(1) Não há nenhuma razão possível para aplicar esta parábola àquilo que se chama o Julgamento Geral — expressão absolutamente contrária à Escritura. Em primeiro lugar, há três espécies de personagens, e não simplesmente duas: os cabritos, as orelhas e os irmãos. Em seguida vem o Julgamento só dos Gentios; aliás, a causa do Julgamento é totalmente inaplicável à própria grande massa destes últimos. A cassa do Julgamento c a maneira como m irmãos foram recebidos. Ora, durante longos séculos nenhum foi enviado à imensa maioria dos Gentios. Deus não teve em consideração os tempos dessa ignorância, e, no início da Epistola aos Romanos é indicada outra causa do seu Julgamento. Tratou-se já dos Cristãos e dos Judeus no capitulo 24 e na primeira parte do capítulo 25. São justamente aqueles que o Senhor encontrará sobre a Terra aquando da Sua vinda, e que serão julgados segundo a maneira como tiverem recebido os mensageiros que Ele lhes tiver enviado.
Passei, de momento, sobre a parte compreendida entre o capítulo 24:31 e o capítulo 25:31 porque a parte final deste último capítulo é o complemento de tudo o que se refere ao governo e ao Julgamento da Terra. Mas há uma classe de pessoas cuja história, nos seus grandes traços morais, encontra o seu lugar entre os dois versos que acabo de mencionar. São os discípulos de Cristo fora do testemunho dado entre Israel, os discípulos aos quais Ele confiou o Seu serviço e uma posição relacionada Consigo mesmo, durante a Sua ausência. Esta posição e este serviço estão em relação com o próprio Cristo, e não com Israel, em qualquer lugar que esse serviço seja realizado.
Porém, antes de chegarmos a estes versos, há alguns de que ainda não falei, e que se aplicam mais particularmente ao estado de coisas em Israel, como advertência aos discípulos que ali se encontravam, e descrevem o Julgamento distintivo que tem lugar entre os Judeus nos últimos dias. Faio deles aqui, porque toda esta parte do discurso— a saber desde o capítulo 24:31 ao capítulo 25:31 — é uma exortação do Senhor, uma direção aos discípulos acerca dos seus deveres durante a Sua ausência. Refiro-me aos versos 36 a 44 do capítulo 24. Os discípulos falam-nos da contínua expectativa que lhes impunha a ignorância do momento em que o Filho do homem apareceria, e em que eram intencionalmente deixados (o Julgamento terrestre); enquanto que, desde o verso 45, o Senhor Se dirige mais diretamente e de uma maneira mais geral ao seu comportamento durante a Sua ausência, não em relação com Israel, mas com os Seus — os domésticos da Sua Casa. Tinha-lhes confiado a tarefa de fornecerem a estes um alimento conveniente na Sua Casa. É esta a responsabilidade do ministério na Igreja.
É importante notar que, na primeira parábola, o estado da Igreja é considerado como um todo; a parábola das virgens e a dos talentos indicam uma responsabilidade individual.
Por isso o servo infiel é expulso e tem a sua parte com os hipócritas. O estado da Igreja responsável dependia de aguardarem a vinda de Cristo, ou do seu coração dizer: Ele tarda em vir. É no regresso do Senhor que o Juízo será pronunciado sobre a fidelidade dos Seus servas durante esse intervalo. A fidelidade será aprovada nesse dia.
Por outro lado, o esquecimento prático da Sua vinda conduzirá à libertinagem e à tirania.
Trata-se aqui de um sistema intelectual. «O mau servo diz em seu coração: O meu senhor tarde virá; a sua vontade está interessada nisso. O resultado era que a sua vontade carnal se manifestava. Já não era o serviço dedicado aos domésticos da casa, esperando de coração a aprovação do senhor quando ele voltasse; mas a mundanidade no comportamento e na pretensão a uma autoridade arbitrária à qual o serviço que lhe estava confiado dava ocasião.
Ele come e bebe com os temulentos; une-se ao mundo e participa dos seus caminhos; espanca os seus conservos de sua livre vontade. Eis aonde se chega quando se esquece deliberadamente a vinda de Jesus durante a Sua ausência, e se considera a Igreja como estabelecida no mundo. Em vez do serviço fiel encontra-se a tirania e o mundanismo.
E não é exato este quadro? O que aconteceu aos que tinham o lugar de serviço na Casa de Deus? Eis as consequências, em qualquer dos casos: o servo fiel que, por amor e devoção ao seu Mestre, se dedicou ao bem-estar da Sua Casa, será, quando do regresso do seu Senhor, estabelecido sobre todos os Seus bens; aqueles que tiverem sido fiéis no serviço da Casa serão colocados sobre todas as coisas pelo Senhor, quando Ele tomar o Seu lugar de poder e atuar como Rei. Todas as coisas são entregues a Jesus pelo Pai. Àqueles que, em humildade, tiverem sido fiéis no Seu serviço durante a Sua ausência serão estabelecidos sobre tudo o que Lhe foi confiado, isto é, sobre todas as coisas—elas não são outra coisa senão «os bens» de Jesus. Por outro- lado, aquele que durante a ausência do Senhor se arrogou o lugar de mestre, e se deixou conduzir pelo espírito da carne e do mundo ao qual estará unido, não será tratado somente como o mundo; o seu Senhor virá inesperadamente e ele receberá o castigo dos hipócritas. Que sublime lição esta para todos aqueles que se atribuem um lugar de serviço na Igreja! E é de notar aqui que não nos é dito que o servo mau se tenha embriagado, mas que come e bebe com os que o fazem, Ele alia-se ao mundo e segue os seus hábitos.
De resto, por muito mau que seja o coração do servo malvado, este é o aspecto geral que tomará o reino nesse dia. O esposo tardará, com efeito; e as consequências que daí se poderão esperar do coração do homem não deixarão de se realizar. Mas o efeito, que vemos então, é pôr em evidência aqueles que tinham realmente a graça de Cristo (1) e aqueles que a não tinham.
(1) Como é solene o testemunho prestado aqui ao efeito produzido pela perda da parte da Igreja da espera atual do regresso do Senhor Isto faz com que a igreja professante corra para a opressão hierárquica c para o mundanismo, de modo a, no fim, ser cortada como hipócrita. Ela diz cm seu coração: O meu Senhor tarda em vir — renunciando assim à espera presente. É o que tem dado origem à sua ruína espiritual. A verdadeira posição cristã foi perdida, quando foi posta de lado a vinda do Senhor. E note-se que, embora o homem se encontre nesse estado, é considerado como servo responsável.
CAPÍTULO 25
Os professos, durante a ausência do Senhor, são apresentados aqui como virgens que saem ao encontro do Noivo para O alumiarem no Seu caminho até casa. Nesta passagem Ele não é o Noivo da Igreja.
Ninguém mais vai ao Seu encontro para as Suas bodas com a Igreja no Céu.
A noiva não aparece nesta parábola. Se ela tivesse sido introduzida, teria sido Jerusalém sobre a Terra. A Igreja, como tal, não está em cena nestes capítulos.
Trata-se aqui da responsabilidade individual (1) durante a ausência de Cristo, O que caracterizava os fiéis nesta época é que eles saíam do mundo, do Judaísmo, de tudo, até da religião em relação com o mundo, para irem ao encontro do Senhor que vem.
(1) Quanto aos servos, no capítulo 24, trata-se de responsabilidade coletiva.
O Remanescente judaico, pelo contrário, espera Jesus no lugar onde se encontra.
Se esta expectativa fosse real, o pensamento daquilo que será necessário para Aquele que vem — a luz, o azeite — caracterizava o que é governado por ele. Por outro lado, bastará ao coração esperar na companhia dos professos e levar lâmpadas com eles. No entanto, as virgens tomam todas, a sua posição; saem; deixam a casa para irem ao encontro do Noivo. Ele demora. É isto o que tem acontecido.
Todas adormecem (verso 5). Toda a igreja professante perdeu o pensamento do regresso do Senhor — até mesmo os fiéis que têm o Espírito. Devem ter ido também a qualquer lado para dormirem comodamente — a um lugar de repouso para a carne. Mas à meianoite, subitamente, ouve-se o clamor: «Aí vem o Esposo; saí-Lhe ao encontro!» (verso 6). Mas, ai! Ainda temos necessidade da mesma chamada, como no princípio- Ainda devemos sair para irmos ao Seu encontro. As virgens levantara-se e espevitara as suas lâmpadas. Há tempo bastante entre o clamor da meia-noite e a chegada do Noivo para, verificar o estado de cada uma. Ora, havia virgens que não tinham azeite nas suas vasilhas. As suas lâmpadas tinham-se apagado (1).
(1) A palavra significa antes; Tochas. Elas tinham, ou deveriam ter azeite nas suas vasilhas para alimentar a chama.
As prudentes tinham azeite, mas era-lhes impossível partilhá-lo com as outras. Somente as que o tinham entraram com o Noivo para tomarem parte nas bodas (versos 7-10). O esposo recusa reconhecer as outras. Que tinham elas que fazer ali? As virgens deviam iluminar com as suas lâmpadas.
Não o tinham feito. Porque haviam então de partilhar da festa? Tinham falhado naquilo que lhes garantia ali um lugar. A que título teriam elas agora o direito de ali entrarem? As virgens que estavam na festa eram as que acompanhavam o Noivo. Aquelas não o tinham feito. Também não entrariam na festa. Mas até mesmo os Cristãos fiéis têm esquecido a vinda de Cristo! Adormeceram! ...
Mas, pelo menos, possuíam o que era essencial para essa vinda. A graça do Noivo faz com que o clamor seja ouvido (verso 6), proclamando a Sua chegada. O clamor desperta as virgens; elas têm azeite nas suas vasilhas; e a demora, que dá lugar a que as lâmpadas das infiéis se apaguem, dá tempo às fiéis para se prepararem e estarem no seu lugar; e, por muito esquecidas que possam ter sido, entram com o noivo para a festa nupcial (1).
(1) Note-se aqui que o despertar é produzido pelo grito. Ele desperta tudo. Ê suficiente para provocar em todos os praticantes uma atividade necessária, mas tem por efeito pô-los todos à prova, e separá-los. Não eia o momento de obter azeite ou socorros de graça daqueles que eram já praticantes; a conversão não 6 o tema desta parábola. Não duvido de que a questão do se procurar azeite não está ali senão para mostrar que não era o momento de o fazer.
Passemos agora do estado de alma ao serviço. Porque, na verdade (verso 14), isto é como um homem que, tendo de se ausentar de sua casa — porque o Senhor habitava em Israel — confia os seus bens aos seus servos antes de partir. Temos aqui os princípios que caracterizam, os servos fiéis, ou o contrário. Não se trata agora da espera pessoal, individual, e da posse do azeite necessário para ter um lugar no cortejo glorioso do Senhor; também não se trata da posição pública e geral daqueles que estavam ao serviço do Mestre, caracterizada no seu conjunto como uma posição, e assim designada por um só servo; mas o que encontramos aqui é a fidelidade individual no serviço, como antes na expectativa do Noivo. O Mestre, no Seu regresso, regulará as Suas contas com cada um, individualmente.
Ora, qual era a posição dos servos? Qual é o princípio que produzirá a fidelidade? Note-se em primeiro lugar que não se trata de dons providenciais, de bens terrestres. Não são “os bens” que Jesus confiou aos Seus servos quando Se ausentou. Eram dons que os preparavam para o labor no Seu serviço enquanto Ele estivesse ausente. O Mestre era soberano e sábio. Deu diferentemente a cada um, e a cada um segundo a sua capacidade. Todos eram aptos para os serviços que lhes eram confiados, e eram-lhes concedidos os dons necessários para a sua realização. Fidelidade no seu desempenho era a única coisa que estava em questão. O que distinguia os fiéis dos infiéis era a confiança no seu Mestre.
Tinham bastante confiança no Seu bem conhecido caráter, na Sua bondade, no Seu amor para trabalharem sem outra autorização além do conhecimento que eles tinham do Seu caráter pessoal e da inteligência que essa confiança e esse conhecimento produziam. Que necessidade havia de lhes dar importantes somas de dinheiro, se não fosse para negociarem com elas? Acaso Ele se havia enganado quando lhes concedeu esses dons? A dedicação que resultava do conhecimento que eles tinham do seu Mestre contava com o amor d'Aquele que eles conheciam. Trabalhavam e eram recompensados.
Este é o verdadeiro caráter e o motivo do serviço na Igreja. Alas era isto o que faltava ao terceiro servo. Não conhecia o seu Mestre — não confiava n'Ele.
Nem sequer soube fazer o que era consequente com os seus próprios pensamentos (versos 24-27). Esperava uma autorização que lhe desse segurança contra o caráter que o seu coração atribuía falsamente ao seu Mestre. Aqueles que conheceram o caráter do seu Mestre entraram no Seu gozo.
Existe uma diferença entre esta parábola e a de Lucas 19:12-27. Nesta, cada servo recebe uma mina; a responsabilidade é a única coisa que está em causa. Portanto, aquele que ganhou dez minas é estabelecido sobre dez cidades. Na primeira trata-se da soberania e da sabedoria de Deus, e aquele que trabalha é guiado pelo conhecimento que possui do seu Mestre e os desígnios de Deus em graça são cumpridos. O que tem a maior parte recebe ainda mais (versos 20,21 e 29), A recompensa é, ao mesmo tempo, mais geral. Aquele que ganhou dois talentos e o que ganhou cinco entram ambos e de igual modo no gozo do Senhor que serviram (versos 21 e 23). Conheceram-No sob o Seu verdadeiro caráter; entram no Seu pleno gozo. Que o Senhor nos conceda a todos a mesma graça! Mas há mais que isso na parábola das virgens. Refere-se mais direta e mais exclusivamente ao caráter celestial dos crentes. Não se trata da Igreja propriamente dita, como corpo, pois os fiéis saíram para irem ao encontro do Noivo, que voltava para as todas. O reino dos céus, quando o Senhor voltar para executar o Julgamento, tomará o carácter de pessoas saídas do mundo e mais ainda do Judaísmo — de tudo o que pertence à carne sob a forma de religião; de toda a forma mundana estabelecida — para não terem de tratar senão com o Senhor que vem, e para irem para Ele.
Este era o caráter dos fiéis desde o princípio, como tendo parte no reino dos céus, se compreendessem a posição em que a rejeição de Cristo os tinha colocado. As virgens, é verdade, entraram de novo, e isso falseava o seu caráter; mas o clamor da meia-noite repô-las no seu verdadeiro lugar. Por isso elas entram com o Noivo, e não se trata de julgar nem de recompensar, mas de estar com Cristo.
Na primeira parábola e na de Lucas o assunto é o regresso de Jesus à Terra, e a recompensa individual — resultado, no reino, do seu comportamento durante a ausência do Rei (1).
(1) Na parábola dos talentos, em Mateus, temos, sem dúvida, o estabelecimento «sobre muito»; é o Reino, mas há um sentido mais completo na expressão: Entra no gozo do teu Senhor; e a bênção é ali uniformemente derramada sobre todos aqueles que têm sido fiéis no serviço, grandes ou pequenos.
Não se trata disso na parábola das virgens. As que não têm azeite não entram de modo nenhum na festa de núpcias. Isto basta. As outras tem a sua bênção em comum; entram com o Noivo para a festa. Não se trata de recompensa particular, nem de diferença de comportamento entre elas. Era a expectativa dos seus corações, embora a graça tivesse de as restaurar. Qualquer que tivesse sido o lugar do serviço, o galardão estava certo. Esta parábola diz respeito e limita-se à parte celestial do reino como tal. É uma semelhança do reino dos céus.
Podemos notar aqui que a demora do Mestre é igualmente assinalada na terceira parábola (verso 19): «E muito tempo depois». A fidelidade e a constância dos servos eram assim postas à prova. Que o Senhor nos conceda a graça de sermos achados agora no fim dos tempos, fiéis e dedicados, para que possa dizer-nos: «Bem está, servos bons e fiéis!». Uma coisa digna de nota, é que, nestas parábolas, os servos, ou os que saíram no princípio, são os mesmos que se encontram no fim.
O Senhor não mantém a suposição da demora além de «nós, os que ficarmos vivos» (1).
(1) É assim a respeito das igrejas no Apocalipse. O Senhor fala as igrejas que existiam, embora essas assembleias sejam — não duvido— urna história completa da Igrejas.
Lágrimas e ranger de dentes são a porção daquele que não tem conhecido o seu Mestre, e que O tem ultrajado com os pensamentos que alimentou acerca do Seu caráter.
A história profética, interrompida desde o fim do verso 31 do capítulo 24, é retomada no verso 31 do capítulo 25.
Vimos o Filho do homem aparecer como um relâmpago e em seguida juntar o Remanescente de Israel dos quatro ventos da terra. Mas não é tudo. Se Ele aparece assim de maneira súbita e inesperada, estabelece igualmente o Seu trono de Justiça e de glória sobre a Terra. Se destrói os Seus Inimigos, que encontra sublevados contra Si, assenta-Se também no Seu trono para julgar todas as nações.
Este é o Julgamento sobre a Terra dos vivos.
Encontram-se aqui quatro partes diferentes: O Senhor, o próprio Filho do homem—os irmãos, as ovelhas e os bodes. Creio que os irmãos aqui são os Judeus, esses Judeus que Ele tinha empregado como mensageiros para pregarem o reino durante a Sua ausência. O Evangelho do reino devia ser pregado como testemunho a todas as nações; e então viria o fim do século. Ora, isto tinha já tido lugar na época de que se fala aqui. O resultado disso será manifestado perante o trono do Filho do homem sobre a Terra.
O Senhor chama, pois, a esses mensageiros «Seus irmãos». Tinha-lhes dito que seriam maltratados, e eles o foram. No entanto havia homens que tinham recebido o seu testemunho.
Ora, era tal a afeição do Senhor pelos Seus fiéis servos, era tal o caso que fazia deles que julgava aqueles a quem o testemunho era enviado conforme a maneira como eles tinham recebido esses mensageiros, quer em bem quer em mal, como se eles tivessem feito essas coisas a Si próprio.
Que encorajamento para as Suas testemunhas, durante esses tempos de tribulação, onde a atividade da sua fé será posta à prova! Ao mesmo tempo fazia-se moralmente justiça àqueles que eram julgados; porque tinham rejeitado o testemunho, fosse quem fosse aquele que o tinha prestado.
Em seguida a Palavra de Deus dá-nos as consequências do comportamento, quer de uns, quer de outros, é o Rei — porque este é o caráter que Cristo tomou agora sobre a Terra—que pronuncia o Juízo; e chama «as ovelhas» (aqueles que tinham acolhido os mensageiros e tinham simpatizado com eles nos seus sofrimentos e nas suas perseguições) para herdarem do reino que lhes tinha sido preparado desde a fundação do mundo; pois tais tinham sido as intenções de Deus a respeito desta Terra. Deus tinha sempre em vista o reino. Eles eram os benditos de Seu Pai (do Pai do Rei). Não se tratava de filhos que compreendessem a sua própria relação com o Pai; mas eram o objeto da bênção do Pai do Rei deste inundo. Além disso eles deviam entrar na vida eterna; porque tal era, por graça, o poder da Palavra que eles tinham recebido em seus corações.
Possuidores da vida eterna, eles serão abençoados num mundo abençoado também (verso 34).
Aqueles que tinham desprezado o testemunho e as testemunhas, tinham, por essa mesma razão, desprezado o Rei que os tinha enviado; irão para os tormentos eternos (versos 45-46).
Assim, todo o efeito da vinda de Cristo, em relação com o reino e Seus mensageiros durante a Sua ausência, é desenrolado perante os nossos olhos: A respeito dos Judeus, até ao verso 31 do capítulo 24; a respeito dos Seus servos, durante a Sua ausência, até ao fim do verso 30 do capítulo 25, incluindo o reino dos céus no seu estado atual e os galardões celestiais que serão concedidos; e em seguida, acerca das nações abençoadas sobre a Terra aquando do Seu regresso, desde o verso 31 deste capítulo 25 até ao fim.
CAPÍTULO 26
O Senhor tinha terminado os Seus discursos. Prepara-Se agora para sofrer e para fazer a Sua última e comovente despedida dos Seus discípulos, à mesa da Sua última Páscoa na Terra, mesa em que instituiu o simples e precioso memorial que recorda com um interesse tão profundo os Seus sofrimentos e o Seu amor. Esta parte do Evangelho não exige muitas explicações—não, certamente, por falta de interesse, mas porque carece mais de ser sentida do que explicada.
Com que simplicidade o Senhor anuncia o que deve acontecer! (verso 2). Tinha chegado já a Betânia, seis dias antes da Páscoa (João 12:1); ali permaneceu, exceto para a última ceia, até ser preso no jardim de Getisêmani, embora visitasse Jerusalém e ali tivesse tomado a Sua última refeição.
Examinámos já os discursos pronunciados durante esses seis dias, assim como os Seus atos, tais como a purificação do templo. O que precede este capítulo é a manifestação dos direitos do Senhor como Emanuel, Rei de Israel, ou o Juízo do grande Rei a respeito do povo — Julgamento expresso em palavras às quais o povo não podia dar resposta; e enfim o estado dos Seus discípulos durante a Sua ausência.
Vemos agora a submissão de Cristo aos sofrimentos que iam abater-se sobre Si, mas que, realmente, não constituíam senão o cumprimento dos desígnios de Deus Seu Pai — e a obra do Seu próprio amor.
O quadro do pecado terrível do homem na crucificação de Jesus desenrola-se ante nossos olhos. Mas o próprio Senhor o anuncia (verso 2) antecipadamente com toda a calma de Alguém que tinha vindo justamente para isso. Antes dos principais sacerdotes mutuamente se consultarem, Jesus fala dela como de uma coisa consumada; «Bem sabeis que daqui a dois dias é a Páscoa; e o Filho do homem será entregue para seja crucificado». Era seguida os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos do povo reúnem-se para acertarem os seus planos a fim de se apoderarem de Jesus e se desfazerem d'Ele (versos 34).
Numa palavra, temos primeiro os maravilhosos desígnios de Deus, e a submissão de Jesus, segundo o Seu conhecimento desses desígnios e das circunstâncias que os realizarão; depois os perversos desígnios do homem que não fazem senão cumprir os de Deus. O pormenorizado propósito deles de não O prenderem durante a festa, por temerem o povo (verso 5), não era de Deus e falha: Ele devia sofrer durante a festa.
Judas era apenas um instrumento da maldade deles na mão de Satanás que, no fim de contas, não fez senão regular as coisas segundo a intenção divina. Os principais do povo queriam, mas em vão, evitar prendê-Lo na ocasião da festa, por causa da multidão que podia favorecer a Jesus, se Ele apelasse para ela. Tinham já procedido de igual modo (Marcos 11:18) aquando da Sua entrada em Jerusalém.
Eles pensavam que Jesus faria esse apelo, por que a maldade conta sempre encontrar os seus próprios princípios nos outros. É por isso que falha frequentemente quando pensa enredar os justos: Eles são simples — e ela não o é. Aqui, era a vontade de Deus que Jesus sofresse durante a festa. Mas Deus tinha preparado um doce alívio para o coração do Salvador — um bálsamo para o Seu coração mais do que para o Seu próprio corpo — circunstância empregada pelo Inimigo para induzir Judas ao extremo e pô-lo em relação com os principais sacerdotes.
Betânia — cuja recordação se liga aos últimos momentos de tranquilidade e de paz da vida do Salvador e onde moravam Marta e Maria e Lázaro, o ressuscitado — Betânia (1) recebe Jesus pela última vez: Retiro bendito, mas momentâneo, de um coração que, sempre pronto para se derramar em amor, era sempre oprimido num mundo de pecado que não respondia nem podia responder a esse amor; de um coração que, no entanto, nos deu, nas suas relações com esta família bem-amada, o exemplo de uma perfeita afeição, embora humana, que encontrava doçura em ser apreciada e correspondida.
(1) Não é na casa de Marta que esta cena tem lugar, mas sim na de Simão, o leproso. Marta servia, e Lázaro estava à mesa. Isto torna mais inteiramente pessoal o ato inteligente de Maria.
A perspectiva da Cruz, que Ele teria de contemplar com resoluta firmeza, não privava o Seu coração da doçura desta comunhão, embora a tornasse solene e comovedora. Fazendo a vontade de Deus, Jesus não cessou de ser homem. Condescendeu em tudo ser por amor de nós. Não podia mais reconhecer Jerusalém, e este santuário de Betânia O abrigava por um momento da rude mão do homem. Podia mostrar ali o que sempre fora como homem. É com razão que o ato daquela que, em certo sentido, podia apreciar o que Ele sentia (1) (aquela cuja afeição compreendia instintivamente o ódio que se erguia contra o objeto que ela amava, ódio que fazia realçar essa afeição), ato que exprimia a apreciação que o seu coração fazia do valor e da graça de Jesus, é contado no mundo inteiro (versos 6-13).
(1) Não se encontra nenhum exemplo mostrando que os discípulos tenham alguma vez compreendido o que Jesus lhes dizia.
É uma cena, um testemunho que coloca o Salvador sensivelmente perto de nós e desperta nos nossos corações um sentimento que os santifica unindo-os à Sua bem-amada Pessoa... A Sua vida habitual era uma tensão permanente de alma em proporção do poder do Seu amor —uma vida de dedicação no meio do pecado e da miséria. Por um momento, Ele pode reconhecer, e reconhece (em presença do poder do mal que então ia ter o seu curso, e do amor que, pelo verdadeiro conhecimento de Jesus, cultivado ficando sentado a Seus pés, a Ele se ligava, inclinando-Se assim sob a força desse amor) essa dedicação por Si mesmo, manifestada pelas coisas às quais a Sua alma se submetia em perfeição divina. Podia reconhecer o verdadeiro significado de palavras inteligentes, proferidas como resultado da ação divina no recôndito da alma (2).
(2) Cristo encontrou em casa do fariseu o coração da pobre mulher, que era uma pecadora, e ali revela abertamente o pensamento de Deus, dizendo-o de modo que todos ouvissem. Aqui, Ele encontra o coração de Marin, justifica e satisfaz o seu afeto e dá, uma aprovação divina ao que ela faz. O Senhor encontra no sepulcro o coração de Maria de Magdala, para o qual o mundo era vazio, se Ele ali não estivesse — e revela o pensamento de Deus sob a sua mais elevada forma de benção. Tal é o efeito da dedicação a Cristo.
O leitor fará bem em estudar cuidadosamente esta cena de impressionante condescendência e manifestação de alma.
Desde o capítulo 16 até ao fim do capítulo 25, Jesus, Emanuel, Rei e Juiz Supremo, havia, feito passar tudo em Julgamento perante Ele.
Tinha terminado o que tinha para dizer. A este respeito, a Sua tarefa no mundo estava cumprida.
Toma então o lugar de vítima. Já não tinha senão que sofrer, e pode deixar-Se ir livremente para desfrutar comoventes expressões de afeição, brotando de um coração que Lhe é dedicado. Apenas podia provar o mel e prosseguir avante; mas prova-o e não rejeita uma afeição que o Seu coração podia apreciar e que apreciava.
Notemos ainda o efeito de uma profunda afeição pelo Senhor. Esta afeição respira necessariamente a atmosfera em que o espírito do Senhor se encontrava então. A mulher que O tinha ungido não estava informada das circunstâncias que iam ter lugar, nem era profetisa. Mas a aproximação dessa hora de trevas foi sentida por alguém cujo coração estava posto em Jesus (1).
(1) A inimizade dos chefes de Israel era conhecida dos discípulos: «Mestre, ainda agora os Judeus procuravam apedrejar-te, e voltas para lá?», e logo a. seguir Tomé — testemunho pleno de graça para com aquele que, mais tarde, mostrou a sua incredulidade quanto à ressurreição de Jesus: «Vamos nós também» para morrermos com Ele». O coração de Maria, sem dúvida, sentia essa inimizade, c, à medida que ela crescia, crescia também a sua afeição pelo Senhor.
As diversas formas do mal desenrolavam-se perante Ele e mostravamse no seu verdadeiro caráter; e, sob a influência de um mesmo senhor, o próprio Satanás, juntaram-se em redor do único objetivo contra o qual valia a pena pôr em ordem essa concentração de maldade que revelava abertamente o verdadeiro caráter de cada um.
Mas a perfeição de Jesus, que fazia sobressair a inimizade do homem, revelava a afeição que se encontrava em Maria; e ela, por assim dizer, refletia a perfeição no afeto; e como esta perfeição era posta em ação e revelada pela inimizade, o mesmo acontece com a sua afeição.
Por isso o coração de Jesus não podia senão corresponder-lhe. Jesus, por causa dessa inimizade, era ainda mais o objeto de um coração que, certamente guiado por Deus, instintivamente apreendia o que se estava a passar.
O tempo do testemunho e até mesmo da explicação das Suas relações com todos aqueles que O rodeavam tinha terminado.
O Seu coração podia gozar livremente das afeições verdadeiras, boas e espirituais de que era alvo—afeições que, qualquer que fosse a sua forma humana, mostravam bem claramente a sua origem divina.
Nesse solene momento, Ele era o alvo e o centro de toda a atenção do Céu.
Jesus tinha o sentimento da Sua posição. Os Seus pensamentos estavam concentrados na Sua partida. Durante o exercício do Seu poder, oculta-Se e esquece-Se de Si. Mas agora, oprimido, rejeitado e como um cordeiro levado para o matadouro, sente que é o justo objeto dos pensamentos dos Seus, de todos aqueles que têm corações para apreciar o que Deus aprecia, O Seu coração está cheio do que vai acontecer. (Ver os versos 2,10-13; 18 e 21).
Algumas palavras mais acerca da mulher que ungiu a Jesus: O efeito de ter o coração fixado com afeto em Jesus é revelado nela de uma maneira notável. Preocupada com Ele, ela sente a Sua posição. Sente o que O aflige; e isto leva o seu afeto a agir de harmonia com a devoção especial que a situação inspira. Assim como o ódio contra Ele se desenvolve até às intenções homicidas, também o espírito de dedicação por Ele se desenvolve nela. Por conseguinte, com o seu ato de afeto, ela faz precisamente o que convém à posição do Senhor. Sem dúvida a pobre mulher não estava inteligentemente esclarecida a esse respeito, mas fez o que convém. O valor tão infinitamente precioso que a Pessoa de Jesus tinha para ela torna-a clarividente a respeito do que se passava em Seu espírito. Aos seus olhos Cristo estava investido de todo o interesse das Suas circunstâncias; e derrama prodigamente sobre Ele o que é a expressão do seu afeto. Fruto desse sentimento, o seu ato responde às circunstâncias; e embora fosse apenas o instinto do seu coração, toma aos olhos de Jesus todo o valor que a perfeita inteligência do Senhor lhe podia atribuir, inteligência que abrangia ao mesmo tempo o sentimento do seu coração e os acontecimentos que iam ter lugar.
Mas esse testemunho de afeto e de devoção a Cristo desperta o egoísmo, a falta de coração das outras testemunhas desta cena.
Censuram a pobre mulher e provam tristemente (para não falar de Judas (1)) quão pouco o conhecimento do que diz respeito a Jesus desperta necessariamente em nossos corações os afetos que convêm a esse conhecimento (versos 8-9).
(1) O coração de Judas é o ponto de partida desse mal, mas os outros discípulos, não estando ocupados de Cristo, caem na esparrela.
Logo após este acontecimento (versos 14-16), Judas sai e concorda com os infelizes sacerdotes entregar-lhes Jesus pelo preço de uni escravo.
O Senhor prossegue a Sua carreira de amor; e do mesmo modo como tinha aceitado o testemunho de afeto da pobre mulher, manifesta agora pelos Seus discípulos um afeto de valor infinito para as nossas almas.
O verso 16 conclui o assunto de que temos estado a falar — o conhecimento que Cristo tinha, segundo Deus, do que O esperava, os conluios dos principais sacerdotes, o afeto da pobre mulher aceite pelo Senhor, o frio egoísmo dos discípulos c a traição de Judas.
O Senhor institui então o memorial da verdadeira Páscoa.
Envia os Seus discípulos para fazerem os preparativos para a celebração da festa em Jerusalém. Designa Judas como sendo aquele que havia de entregá-Lo aos Judeus (versos 17-25). Notar-se-á que o Senhor não exprime aqui simplesmente o Seu conhecimento daquele que devia traí-Lo! Ele sabia isso quando chamou Judas; mas diz: «um de vós me há de trair» (verso 21). Era precisamente isto o que comovia o Seu coração.
E Ele desejava que os comovesse a eles de igual modo.
Jesus mostra em seguida que é de um Salvador entregue à morte que 6 preciso recordarem-se. Já não se trata de um Messias vivendo na Terra; tudo isso era passado. Já não se tratava da recordação da libertação de Israel da escravidão do Egito. Cristo—e um Cristo morto — começava uma ordem de coisas inteiramente nova. Era n'Ele que eles deviam pensar agora — n'Ele, morto neste mundo.
Em seguida Jesus chama a atenção deles para o sangue da nova aliança e para o que faz com que esse sangue se estenda a outros além dos Judeus, sem contudo os nomear.
«Ele é derramado por muitos». Aliás, este sangue não é somente destinado, como no Sinai, a confirmar a aliança, por cuja Fidelidade eles eram responsáveis: ele era derramado em remissão de pecados.
De modo que a Ceia do Senhor apresenta a recordação de Jesus morto, de Jesus que, ao morrer, rompeu com o passado, lançou o fundamento da nova aliança, obteve a remissão dos pecados e abriu a porta aos Gentios. A Santa Ceia apresenta-O perante nós somente na Sua morte.
O Seu sangue é separado do Seu corpo; Ele está morto. Não se trata nem de Cristo vivendo sobre a Terra, nem de Cristo glorioso no Céu.
Está separado do Seu povo, quanto aos seus gozos na Terra; mas eles devem esperá-Lo como o companheiro da felicidade que Ele lhes assegurou—porque Ele digna-Se sê-lo — para melhores dias; «Já não beberei deste fruto da vide, até àquele dia em que o beba novo (1) convosco, no reino de meu Pai» (verso 29). Mas, uma vez quebrados esses elos, quem, senão Jesus, poderia sustentar a luta? Todos O abandonam.
(1) «Novo», não é de novo (Néon), mas sim de outa espécie (Kainon).
Os testemunhos da Palavra de Deus cumprem-se, porque estava escrito: «Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão» (verso 31).
Todavia, Jesus iria renovar as Suas relações, como Salvador ressuscitado, com esses pobres do rebanho, lá mesmo onde Se tinha já identificado com eles durante a Sua vida (verso 32). Tria adiante deles para a Galileia. Esta promessa é verdadeiramente notável, porque o Senhor retoma, sob uma nova forma, as Suas relações judaicas com eles e com o reino. Podemos notar aqui que como o Senhor tinha julgado todas as classes de pessoas (até final do capítulo 25), mostra agora o caráter das Suas relações com todos aqueles com quem as tinha mantido. Quer se tratasse da mulher, quer se tratasse de Judas, ou dos discípulos, cada qual toma o seu lugar em relação com o Senhor. É tudo o que se encontra aqui. Se Pedro teve energia natural bastante para ir um pouco mais longe, seria apenas para dar uma queda maior no lugar onde só o Senhor podia permanecer de pé.
E agora (versos 36 e seguintes) o Senhor isola-Se para apresentar em súplicas a Seu Pai os sofrimentos que O esperam.
Mas, embora isolando-Se para oração, leva Consigo três dos Seus discípulos, para que, nesse tão solene momento, eles pudessem vigiar com Ele. Eram os mesmos três que tinham estado com Ele por ocasião da transfiguração. Eles deviam ver a Sua glória no reino e os Seus sofrimentos.
Afasta-Se deles um pouco, indo mais para diante. Eles, porém, adormeceram, tal como tinham feito no monte da transfiguração. Esta cena é-nos descrita em Hebreus 5:7.
Jesus não bebia ainda o cálice, mas tinha-o perante Si. Na Cruz, Ele bebeu-o, sendo feito pecado por nós, e a Sua alma sentiu-se desamparada de Deus. Aqui, o poder de Satanás atua empregando a morte como terror a fim de O oprimir. Mas a consideração deste assunto terá lugar mais adequado quando estudarmos o Evangelho segundo S. Lucas, Vemos aqui a alma de Jesus sob o peso da morte — antecipada—como somente Ele o podia conhecer, e ela não tinha ainda perdido o seu aguilhão. Sabemos quem é que tem o poder da morte, e a morte tinha por enquanto o pleno caráter de salário do pecado, e a maldição, o do Juízo de Deus. Mas Jesus vigia e ora. Por um lado, como homem, submetido pelo Seu amor a este assalto, em presença da mais poderosa tentação a que podia ser submetido, Ele vigia; por outro lado, expõe a Sua aflição a Seu Pai. A Sua comunhão não foi interrompida, por grande que fosse a Sua angústia. Esta angústia era-Lhe mais dolorosa em submissão e dependência do Pai.
Mas nós devíamos ser salvos. Se Deus devia ser glorificado n'Ele que Se tinha encarregado da nossa causa, o cálice não podia ser afastado d'Ele. A submissão de Jesus é perfeita.
Jesus lembra com ternura a Pedro a sua falsa confiança (1), fazendolhe sentir a sua fraqueza (versos 40-41); mas Pedro estava demasiado cheio de si mesmo para aproveitar a lição. Despena do sono, mas a confiança que tem em si mesmo não é abalada. Era-lhe necessária uma experiência mais triste para o curar...
(1) É maravilhoso ver o Senhor na profunda agonia da antecipação do cálice — somente o apresentando ao Pai, o não o bebendo ainda — voltar-Se para os discípulos e falar-lhes com uma graça plena de calma, como se estivesse na Galileia; voltando depois exatamente à mesma terrível luta de espírito, que oprimia a Sua alma. Acrescento que em Mateus Ele é vítima, e que aquilo quo Ele encontra aqui c todo o agravamento, sem circunstâncias atenuantes.
Jesus toma, pois, o cálice; mas toma-o da mão de Seu Pai. A vontade de Seu Pai era que Ele o bebesse. Entregando-Se assim inteiramente a Seu Pai, não é nem das mãos dos Seus inimigos nem das de Satanás (embora eles fossem os instrumentos) que Ele o toma. De conformidade com a perfeição com que Se havia submetido à vontade de Deus a este respeito, entregando-Lhe todas as coisas, é só da Sua mão que Ele o recebe. É a vontade do Pai. É desta forma que nós escapamos de causas secundárias e das tentações do Inimigo, buscando só a vontade de Deus que ordena todas as coisas. É d'Ele que recebemos aflições e provações, se elas nos sobrevêm.
Mas já não há necessidade de que os discípulos vigiem: Chegou a hora (1). Jesus ia ser entregue às mãos dos homens.
(1) Proponho-me falar dos sofrimentos do Senhor, estudando o Evangelho segundo S. Lucas, onde eles são descritos mais pormenorizadamente; porque é como Filho do homem que Ele é ali particularmente apresentado.
Isto era dizer tudo. Judas indica-O com um beijo.
Jesus vai ao encontro da multidão e repreende Pedro por ter procurado resistir com armas carnais. Se Cristo tivesse querido escapar, poderia ter pedido doze legiões de anjos —e tê-las-ia! Mas devia cumprir-se toda a Escritura (2).
(2) Note-se aqui o lugar que o Senhor, num momento tão solene e tão próximo da Cruz, dá às Escrituras, que dizem que é necessário que assim aconteça — porque esse momento tinha chegado (verso 54).
Estas são as palavras de Deus.
Era a hora da Sua submissão aos efeitos da maldade do homem e ao poder das trevas, e ao Julgamento de Deus contra o pecado. É o cordeiro para o matadouro. Então todos os discípulos O abandonam (verso 56). Entrega-Se, chamando, porém, a atenção da multidão para o que estavam a fazer. Se ninguém pode demonstrar a Sua culpabilidade, Ele não negará a verdade- Confessa a glória da Sua Pessoa como Filho de Deus, e declara que desde agora verão o Filho do homem, já não em doçura, como Aquele que não esmagaria a cana quebrada, mas vindo sobre as nuvens do céu c assentado à direita do Poder (versos 56-64).
Tendo dado este testemunho, Jesus é condenado por aquilo que disse de Si próprio — pela confissão da verdade. As falsas testemunhas não foram bem sucedidas. Os sacerdotes e os chefes de Israel eram culpados da Sua morte, em virtude da rejeição do testemunho que Ele dera da verdade. Ele era a Verdade; eles estavam sob o poder do pai da mentira, rejeitando o Messias, o Salvador do Seu povo (versos 65, 66). Já não virá mais a eles, senão como Juiz.
Insultam-No e ultrajam-No. Desgraçadamente, como temos visto, cada um toma o seu lugar aqui: Jesus, o de vítima; os outros tornam o lugar da traição, da rejeição, do abandono, negando o Salvador! Que triste quadro! Que solene momento! Quem poderia suportá-lo? Somente Cristo! E como Vítima! Como tal, Ele devia ser despojado de tudo, e isto na presença de Deus. Tudo o mais desaparece, exceto o pecado, que levava à Cruz; e, por graça, o próprio pecado também, ante a poderosa eficácia do sacrifício. Confiando em si mesmo, Pedro hesita, e, quando é reconhecido, mentindo e jurando, nega o seu Mestre! Depois, dolorosamente convencido da impotência do homem frente ao inimigo da sua alma e do pecado, sai e chora amargamente.
Essas lágrimas não podiam apagar a sua culpa, mas provando que havia, por graça, integridade de coração, elas dão testemunho dessa impotência a que a própria integridade de coração não podia dar remédio (1).
(1) Penso que veremos, comparando os Evangelhos, que o Senhor foi interrogado em casa de Caifás, na noite em que Pedro O negou; e que os principais sacerdotes e os anciãos, deliberaram de novo pela manhã, e, interrogando o Senhor, receberam d'Ele a confissão em virtude da qual O entregaram a Pilatos. Durante a noite, os ativos chefes somente se reuniram. De manhã houve uma assembleia regular do Sinédrio.
CAPÍTULO 27
Depois os infelizes sacerdotes e chefes do povo entregam o seu Messias aos Gentios, tal como Ele tinha dito aos Seus discípulos.
Judas, no desespero, sob o poder de Satanás, enforca-se, depois de haver atirado o prémio da sua iniquidade aos pés dos principais sacerdotes e dos anciãos. Satanás é forçado a prestar testemunho à inocência do próprio Senhor, por tuna consciência que ele enganou.
Que cena! Então os sacerdotes, que não sentiram na consciência o pecado de comprarem a Judas o sangue de Jesus, têm escrúpulo de porem o dinheiro na tesouraria do templo, porque ele era o preço do sangue. Perante tudo o que se estava a passar, o homem mostrou-se tal qual é, e mostrou o poder de Satanás sobre ele. Os sacerdotes, tendo reunido em conselho, deliberaram comprar um campo para sepultura de estrangeiros. Estes eram, a seus olhos, bastante profanos para nele serem sepultados — contando que eles próprios não fossem contaminados por um tal dinheiro! Era, no entanto, o momento da graça de Deus para os estrangeiras, e o do Julgamento de Israel. Aliás, eles estabelecem desse modo um perpétuo memorial do seu próprio pecado, e do sangue que fora derramado. Aceldama, isto é, campo de sangue, é tudo quanto resta neste mundo das circunstâncias desse grande sacrifício. O mundo é um campo de sangue, mas de sangue que fala mais do que o sangue de Abei.
É sabido que esta profecia se encontra no Livro de Zacarias, capítulo 11, versos 12 e 13. A palavra «Jeremias» pôde escapar no texto, no tempo em que ali não havia senão «pelo profeta»; ou então, como na ordem requerida pelos talmudistas, «Jeremias» era o primeiro no Livro dos Profetas, dizia-se provavelmente: «Jeremias ou um dos profetas» (ver Mateus 16:14). Mas não é este o lugar próprio para discutir esta questão.
Termina aqui a parte deles nas cenas judaicas. O Senhor comparece agora perante Pilatos. Aqui a questão não se Ele é o Filho de Deus, mas se é o Rei dos Judeus.
Embora Ele fosse Rei dos Judeus, era só no caráter de Filho de Deus que consentiria aos Judeus o receberem-No.
Tivessem-No eles recebido como Filho de Deus e Ele teria sido o seu Rei. Mas Isso não podia ser: Ele tinha de cumprir a obra da expiação.
Havendo-0 rejeitado como Filho de Deus, os Judeus negam-No agora como seu Rei. Mas os Gentios tornam-se também culpados na pessoa do seu chefe na Palestina, cujo governo lhes tinha sido confiado. O chefe gentio deveria ter reinado com justiça. O seu representante na Judeia reconheceu a maldade dos inimigos de Cristo; a sua consciência, alarmada pelo sonho de sua mulher, procura escapar-se à iniquidade de condenar Jesus. Mas o verdadeiro príncipe deste mundo, quanto ao exercício atual do poder, era Satanás. Pilatos, lavando as mãos (vã esperança de se libertar da sua responsabilidade), entrega o inocente à vontade dos Seus inimigos, embora dizendo não achar n'Ele falta alguma. E entrega aos Judeus um homem culpado de uma sedição c de um homicídio, em lugar do Príncipe da vida (versos 26). Mas foi ainda por causa da Sua confissão, e por isso somente, que Ele foi condenado; confessou, perante o tribunal dos Gentios, a mesma coisa que tinha confessado no tribunal judaico, isto é, a verdade, fazendo boa confissão do que concernia à verdade quanto àqueles perante quem Se encontrava.
Barrabás (1) — expressão do espírito de Satanás, que foi homicida desde o princípio, e de rebelião contra a autoridade que Pilatos deveria manter—Barrabás era estimado pelos Judeus; e, com ele, a injusta indolência do governador, que era impotente contra o mal, procurou satisfazer a vontade do povo que deveria ter governado. «Todo o povo» se tornou culpado do sangue de Jesus; expressão solene, que se tem cumprido até aos nossos dias, esperando que a graça soberana, de conformidade com os planos de Deus, a retire — palavras solenes, mas terríveis: «O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos» (verso 25).
(1) Coisa estranha: Esta palavra significa «filho de Abba», isto é, do Pai, como se Satanás troçasse deles por meio desse nome.
Triste e terrível ignorância que a obstinação trouxe sobre um povo que rejeitou a Luz! Ah! Como cada qual, repito, toma o seu lugar na presença desta pedra angular—um Salvador rejeitado! O comum dos Gentios, os soldados, fazem-no com escárnio, com aquela brutalidade que lhes era habitual como pagãos e como carrascos; mas eles o faraó com alegria e adoração, quando Aquele de quem eles troçaram for verdadeiramente o Rei dos Judeus em glória.
Jesus suporta tudo. Era a hora da Sua perfeita submissão a todo o poder do mal: era preciso que a paciência tivesse a sua obra perfeita para que a sua obediência fosse completa em todo o sentido. Ele suportou tudo sem conforto, para não faltar em obediência a Seu Pai.
Que diferença entre este comportamento e o do primeiro Adão, rodeado de bênçãos! Cada qual, nesta hora solene em que tudo é posto à prova, tem de ser servo do pecado ou da tirania da impiedade.
Constrangem um certo Simão (conhecido mais tarde, ao que parece, entre os discípulos) a levar a Cruz de Jesus; e levam o Senhor ao lugar da Sua crucificação.
Uma vez ali, Ele recusa o que poderia entorpecer. Não quer evitar o cálice que devia beber, nem privar-Se das Suas faculdades para ser insensível ao que Deus queria que Ele sofresse - (versos 30-38). As profecias dos Salmos cumprem-se na Sua Pessoa por meio daqueles que nem sequer pensavam no que faziam. Ao mesmo tempo, os Judeus conseguiam assim chegar ao último grau de vileza.
O seu Rei é pregado na Cruz! Mas eles têm de sofrer o opróbrio, embora contra a sua vontade. Mas de quem é a culpa? ...
Endurecidos e insensíveis, os Judeus compartilham com um malfeitor a triste satisfação de insultarem o Filho de Deus, o seu Rei, o Messias, e isto para a sua própria ruína (versos 39-44), e citam — tão cega é a incredulidade! —as suas próprias Escrituras, como expressão do seu próprio pensamento, o que ú posto na boca dos incrédulos inimigos de Jeová. Jesus bem o sentiu; mas a angústia da Sua provação, na qual, no fim de contas, Ele era uma testemunha calma e fiel, o abismo dos Seus sofrimentos escondia algo de muito mais terrível que toda esta maldade ou este desprezo dos homens. As ondas levantaram, sem dúvida, a sua voz (1).
(1) Encontrares em Mateus, particularmente juntos, a desonra feita ao Senhor e os insultos que Lhe dirigiam; e em Marcos encontramos o abandono de Deus.
Uma após outra as ondas da iniquidade desfazem-se contra Ele; mas quem poderá sondar o abismo que sob elas O aguardava? O Seu coração, a Sua alma— vaso de um amor divino — somente eles podiam descer mais abaixo do que o fundo desse abismo aberto ao homem pelo pecado, a fim de tirar os que ali jaziam, depois de haver sofrido as suas dores na Sua própria alma. Um coração que sempre fora fiel, era desamparado de Deus. Aonde o pecado tinha levado o homem, o amor levou o Senhor, mas com uma natureza e compreensão em que não havia distância nem separação, de modo que o desamparo foi sentido em toda a sua plenitude. Ninguém mais senão Àquele que Se encontrava nessa posição podia sondá-lo ou senti-lo.
É também um espetáculo maravilhoso ver o único homem justo neste mundo declarar, no fim da sua vida, que era desamparado de Deus.
Mas era assim que Ele O glorificava, como ninguém tinha podido fazê-lo, e num lugar onde ninguém senão Ele o podia — feito pecado na presença de Deus, sem véu para o ocultar, sem misericórdia para o suportar.
Os pais, cheios de fé, tinham, nas suas aflições, feito a experiência da fidelidade de Deus, que respondia à esperança dos seus corações. Mas Jesus (no tocante à Sua alma nesse momento) clamava em vão. «Um verme, c não um homem» perante os olhos dos homens; Ele devia suportar o desamparo de Deus, em Quem confiava.
Tendo os seus pensamentos muito longe dos d'Ele, os que O rodeavam nem sequer compreendiam as Suas palavras, mas cumpriam as profecias pela sua ignorância. Jesus, dando testemunho, pela força da Sua voz, que não era o peso da morte que O oprimia, rende o espírito (versos 45-50).
A eficácia da Sua morte é apresentada neste Evangelho sob um duplo aspecto. Primeiro, o véu do templo foi rasgado de alto a baixo (verso 51). Deus, que sempre estivera oculto atrás do véu, mostrou-Se completamente por meio da morte de Jesus. A entrada no santuário é franqueada — caminho novo e vivo que Deus nos consagrou através do véu (Hebreus 10:19-20). Todo o sistema judaico, as relações do homem com Deus sob a preponderância desse sistema, o sacerdócio, tudo caía com o rasgão do véu.
Cada qual se achou na presença de Deus, sem o impedimento do véu.
Os sacerdotes deviam estar sempre na Sua presença. Mas, pelo mesmo ato, o pecado, que tornaria impossível a nossa presença ali, foi, para o crente, completamente tirado de diante de Deus. 0 Deus santo e o crente purificado dos seus pecados são postos em relação peia morte de Cristo. Que amor é este que realizará uma tal obra! Além de tudo o mais, era tal a eficácia da Sua morte que, quando a Sua ressurreição quebrou os laços que os prendiam, muitos mortos apareceram na cidade — testemunhas do poder d'Aquele que, havendo sofrido a morte, Se elevou acima dela e venceu e destruiu o seu poder e a tomou em Suas próprias mãos. A bênção estava agora na ressurreição. A presença de Deus sem véu, e a presença de pecadores purificados diante d'Ele provam a eficácia dos sofrimentos de Cristo.
A ressurreição dos mortos, sobre os quais o rei dos terrores já não tinha mais direito, mostrava a eficácia da morte de Cristo pelos pecadores, e o poder da Sua ressurreição.
O Judaísmo acabou e o poder da morte também para aqueles que têm fé. O véu foi rasgado, a sepultura restituiu a sua presa (versos 52-53); Ele c o Senhor dos mortos e dos vivos (1).
(1) A glória de Cristo, na Sua ascensão e como Senhor de todos, não se encontra, historicamente, no quadro de Mateus.
Resta ainda um testemunho particular do- poder omnipotente da morte de Jesus c do alcance desta palavra: «E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim» (ver João 12:32). O centurião que estava de guarda aquando da crucificação do- Senhor, vendo o terramoto e as coisas que tinham sucedido, cheio de temor, reconhece a glória da Pessoa do Salvador; e, embora estrangeiro para Israel, dá o primeiro testemunho de fé entre os Gentios: «Verdadeiramente este era Filho de Deus».
Mas a narrativa continua. Algumas pobres mulheres — a quem a devoção dá, muitas vezes, da parle de Deus, mais coragem do que aos homens, cuja posição é mais responsável e mais agitada — estavam perto da Cruz, vendo o que faziam Àquele que elas amavam (1) (versos 55-56).
(1) A parte que as mulheres tomam em toda esta história é muito instrutiva, especialmente para elas. A atividade do serviço público, o qual podemos chamar «a obra», pertence naturalmente aos homens, isto é, tudo o que diz respeito àquilo que, gerai mente, denominamos Ministério; embora as mulheres participem particularmente em preciosas atividades. Mas existo ura outro lugar na vida cristã que mais particularmente lhes diz respeito: é a pessoal e terna afeição a Cristo. Foi uma mulher que ungiu o Senhor, enquanto os discípulos murmuravam; eram mulheres que estavam ao pé da Cruz, enquanto todos, exceto João, O tinham abandonado; foram mulheres que foram ao sepulcro, e foram anunciar a verdade aos apóstolos, os quais tinham ido para suas casas; enfim, eram mulheres que proviam às necessidades do Senhor.
E, cm verdade, isto vai mais além. A dedicação ao serviço pertence talvez aos homens, mas o instinto de afeição, o qual penetra mais intimamente na posição de Cristo, e se encontra assim mais imediatamente em relação com os Seus sentimentos, numa comunhão mais íntima com os sofrimentos do Seu coração, essa ú a parte da mulher — e, seguramente, uma parte feliz.
A atividade do serviço para Cristo coloca o tomem um pouco fora dessa posição, sobretudo se ele não for vigilante. De resto, cada coisa tem o seu lugar. Falo do que é característico, porque há mulheres que têm servido muito, e homens que s3o muito impressionáveis. Note-se também, como penso ter dito Já, que esta afinidade do coração para com Jesus é o estado em que são recebidas as comunicações do verdadeiro conhecimento. O primeiro e pleno Evangelho á anunciado à pobre mulher pecadora, que lava os pés do Senhor; o ato de ungir o Senhor foi uma revelação dada a Maria para o dia do Seu sepultamento; a nossa mais alta posição foi comunicada a Maria de Magdala; a comunhão que Pedro desejava é anunciada a João, que reclinava a cabeça no seio de Jesus. E em todas estas comunicações as mulheres têm grande participação.
Mas essas mulheres não eram as únicas a substituir os apavorados discípulos. Outros (versos 57-60) — como tantas vezes acontece — que tinham estado na obscuridade, com medo do mundo, logo que as profundidades da sua afeição são agitadas pelos sofrimentos d'Aquele a quem realmente amam, no momento doloroso em que outros estão atemorizados, incitados pela rejeição de Cristo, acham que é chegado o momento para tomarem uma decisão e tornam-se destemidas testemunhas do Senhor. Associados até agora com os que tinham crucificado o Senhor, têm agora de aceitar esse ato ou declararem-se Seus seguidores. Pela graça tomam esta última decisão.
Deus tinha preparado tudo antecipadamente. O Seu Filho tinha de ter a Sua sepultura com os ricos. José vai ousadamente ter com Pilatos e pede o corpo de Jesus. Envolve o corpo, que Pilatos lhe manda dar, num fino c limpo lençol, e põe-No no seu próprio sepulcro novo, o qual nunca tinha servido para guardar a corrupção do homem.
Maria de Magdala e a outra Maria (1) — porque elas eram conhecidas — assentaram-se perto do sepulcro, ligadas por tudo o que restava para a sua fé d'Aquele que tinham amado e seguido com adoração durante a Sua vida (verso 61).
(1) Quer dizer, a mulher de Clopas e a mãe de Tiago e de José, a qual é muitas vezes designada por «a outra Maria». Em João 19:25, Maria, mulher de Clopas, tem sido tornada como uma aposição da irmã da mãe de Jesus, mas é um erro. Trata-se de outra pessoa. Havia quatro mulheres: Três Marias e a irmã da mãe de Jesus.
Mas a incredulidade não crê em si própria e, temendo que aquilo que nega seja verdade, descrê de tudo. Os principais sacerdotes (versos 62, 66) pedem a Pilatos que o sepulcro seja guardado, a fim de frustrarem toda a tentativa que os discípulos pudessem fazer para estabelecerem a doutrina da ressurreição sobre a falta do corpo de Jesus no sepulcro em que tinha sido posto. Pilatos manda que eles próprios guardem o sepulcro; de forma que tudo quanto eles fizeram foi tornarem-se a si próprios testemunhas involuntárias do fato, para nos assegurarem o cumprimento daquilo que eles temiam. Assim Israel era culpado desse esforço de inútil resistência ao testemunho que Jesus tinha dado da Sua própria ressurreição. Eles mesmos eram um testemunho contra si quanto à verdade.
As precauções que Pilatos talvez não tivesse tomado, os sacerdotes as tomaram até ao ponto máximo, de modo que todo o erro quanto ao fato da Sua ressurreição era impossível.
A ressurreição do Salvador é resumidamente apresentada em Mateus.
O objetivo ó ainda, após a ressurreição, ligar o ministério e o serviço de Jesus — transferido agora para os discípulos — com os pobres do rebanho, com o Remanescente de Israel. O Senhor reúne-se ainda na Galileia, onde os tinha constantemente ensinado e onde habitavam os desprezados do povo, longe do orgulho dos Judeus. Isto ligava o trabalho deles com o Seu, naquilo que o caracterizava particularmente em relação com o Remanescente de Israel.
Examinarei noutra passagem das Escrituras os pormenores da ressurreição.
Aqui, ocupar-me-ei somente do alcance deste acontecimento cm Mateus.
CAPÍTULO 28
Findara o sábado (sábado à noite, segundo o nosso calendário— verso 1) e as duas Marias foram ver o sepulcro.
De momento foi tudo o que fizeram. Os versos 1 e 2 não são consecutivos; e os versos 2, 3 e 4 estão -ligados. Quando o terramoto e as circunstâncias que o acompanharam tiveram lugar, ninguém ali estava senão os soldados. À noite, tudo estava em segurança, tudo estava arrumado. Na manhã seguinte os discípulos nada sabiam.
Quando as mulheres chegaram ao sepulcro de madrugada, o anjo que estava assentado à porta do sepulcro deu-lhes as boas novas da ressurreição do Senhor. O anjo do Senhor desceu e abriu a porta do túmulo que o homem tinha fechado com todas as precauções possíveis (1). Com efeito, os Judeus somente tinham garantido o excepcional testemunho, a verdade da pregação dos apóstolos, colocando ali os soldados.
(1) Mas eu creio que o Senhor Jesus já tinha deixado o sepulcro antes de a pedra ser removida. Essa remoção destinava-se apenas a chamar a atenção do homem paia o fato.
As mulheres, pela sua visita ao sepulcro na tarde anterior e de manhã quando o anjo lhes falou, receberam pela fé uma plena certeza do fato da ressurreição do Salvador.
Tudo quanto é aqui apresentado são fatos. As mulheres tinham estado junto do sepulcro ao anoitecer. A intervenção do anjo mostrou aos soldados o verdadeiro caráter da saída do Senhor do túmulo; e a visita das mulheres, de madrugada, estabeleceu o fato da Sua ressurreição como um objetivo de fé para si mesmas. E elas vão anunciar o acontecimento aos discípulos do Senhor que — longe de terem feito o que os Judeus lhe atribuíram—nem sequer acreditaram nas palavras das mulheres. O próprio Senhor Jesus aparece às mulheres que, tendo acreditado nas palavras do anjo, voltaram do sepulcro.
Como disse já, Jesus liga-Se à Sua antiga obra no meio dos pobres do rebanho, longe do centro das tradições judaicas e do templo e de tudo o que ligava o povo a Deus, segundo a antiga aliança. Marca aos discípulos ura encontro na Galileia, e ah eles O encontram e O reconhecem.
É ali, nessa antiga cena do labor de Cristo, segundo Isaias 3 e 9, que eles recebem de Jesus a sua missão. Por isso não se fala neste Evangelho da ascensão de Cristo, mas de «todo o poder que Lhe e dado no Céu e na Terra», e, por conseguinte, a missão confiada aos discípulos estende-se a todas as nações (aos Gentios). Era a elas que eles deviam proclamar os direitos do Senhor, e delas fazer discípulos.
Porém, não se tratava simplesmente do Nome do Eterno que eles tinham de anunciar, nem a sua missão era somente em relação com o Seu trono em Jerusalém. Senhor dos céus e da Terra, os Seus discípulos deviam proclamá-Lo por todas as nações, baseando a sua doutrina na confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Eles deviam ensinar, não a lei, mas os preceitos de Jesus. O Senhor estaria com eles, com os discípulos que assim O confessassem, até à consumação dos séculos (versos 18-20). É isto que liga tudo o que será realizado até que Cristo Se assente no grande trono branco, como lemos em Apocalipse 20:11, com o testemunho que Ele próprio deu na Terra, no meio de Israel. É o testemunho do reino e do seu Chefe, uma vez rejeitado por um povo que O não conhecia. Isto liga o testemunho dado às nações com um Remanescente em Israel, reconhecendo Jesus como O Messias, mas agora ressuscitado de entre os mortos, como Ele mesmo tinha dito, mas não com um Cristo reconhecido como assumpto ao Céu. Jesus não é somente apresentado, nem tampouco Jeová, como o objetivo do testemunho, mas a revelação do Pai, do Filho e do Espírito Santo como Santo Nome mediante o qual as nações foram postas em relação com Deus.
FIM DO EVANGELHO SEGUNDO S. MATEUS