CAPÍTULO 14

O Evangelho segundo S. Mateus retoma o curso histórico dessas revelações, mas de maneira a fazer sobressair o espírito que animava o povo. Herodes (amando mais o seu poder terrestre e a sua própria glória do que a submissão ao testemunho de Deus, e convencido mais por um falso pensamento humano do que pela consciência, embora em muitas coisas pareça ter reconhecido o poder da verdade) tinha decapitado o precursor do Messias, João Batista, a quem havia já encarcerado a fim de afastar da vista de sua mulher aquele que tinha repreendido fielmente o pecado em que ela vivia.

Jesus é sensível ao alcance desse ato, que Lhe é relatado.

Cumprindo, em serviço humilde (embora pessoalmente exaltado acima dele) juntamente com João, o testemunho de Deus na congregação, sente-Se unido de coração e na Sua obra com ele, porque a fidelidade no meio do mal une intimamente os corações; e Jesus tinha condescendido em tomar um lugar onde se tratava de fidelidade (ver os Salmos 9:9-10 e 40:9-10). Ouvindo o relato da morte de João, Jesus retira-Se para um lugar deserto. Porém, embora afastando-Se da multidão, que começava assim a agir abertamente na rejeição do testemunho de Deus, Jesus não cessa de suprir todas as suas necessidades, e de testificar desse modo que podia ministrar divinamente a todas as necessidades que havia entre eles. A multidão, que sentia essas necessidades e que, embora não tivesse fé, admirava o poder de Jesus, seguiu-O até ao deserto; e Jesus, movido de compaixão, curou todos os seus enfermos. Chegada à tarde, os discípulos pedem-Lhe que despeça a multidão, para que ela possa comprar comida. Jesus recusa e dá um testemunho notável da presença, na Sua Pessoa, de Aquele que havia de satisfazer os pobres do Seu povo, dando-lhes pão com abundância (Salmo 132:15). Jeová, o Senhor, que estabelecera o trono de Davi, estava ali na Pessoa de Quem havia de herdar esse trono. Não há dúvida de que doze cestos de pedaços de pão dizem respeito ao número que, nas Escrituras, significa sempre a perfeição do poder administrativo no homem.

É de notar também que o Senhor espera que os Seus doze discípulos sejam capazes de servir de instrumentos para cumprirem os Seus atos de bênção e de poder, administrando segundo o Seu poder as bênçãos do reino. «Dai-lhes vós de comer», diz Ele (verso 16). Isto aplica-se à bênção do reino do Eterno e aos discípulos de Jesus, os doze, como sendo os ministros; mas há igualmente um princípio muito importante quanto ao efeito da fé em todas as intervenções de Deus em graça. A fé deveria poder usar do poder que atua numa tal intervenção, para produzir as obras que são próprias a esse poder segundo a ordem desta dispensação e da compreensão que a fé tem dela.

Encontraremos noutro lugar este princípio mais plenamente desenvolvido.

Os discípulos queriam despedir a multidão, por não saberem servir-se do poder de Cristo. Deveriam ter sabido usar dele em favor de Israel, de conformidade com a glória d'Aquele que Se encontrava no meio deles.

Se agora o Senhor demonstrava, com perfeita paciência, pelos Seus atos, que Aquele que podia assim abençoar Israel estava no meio do Seu povo, nem por isso deixaria de dar testemunho da Sua separação desse povo, por causa da sua incredulidade. Jesus ordena aos Seus discípulos que entrem num barco e passem para a outra banda do mar sozinhos; e, despedindo Ele próprio a multidão, sobe ao monte, a ura lugar isolado, para orar, enquanto o barco com os discípulos era açoitado pelas ondas, porque o vento era contrário —um quadro vivo do que tem acontecido.

Deus tem, com efeito, enviado o Seu povo sozinho para atravessar o mar tormentoso do mundo, enfrentando uma oposição contra a qual é difícil lutar. Durante esse tempo, Jesus, só, ora nas alturas. Despediu o Seu povo judaico, que O havia rodeado durante o período da Sua presença neste mundo.

Além do seu carácter geral, a partida dos discípulos põe diante de nós, de um modo notável, o Remanescente judeu.

Pedro, individualmente, saindo do barco, vai, em figura, além da posição deste Remanescente. Ele apresenta aquela fé que, desprezando a comodidade terrestre do barco, vai ao encontro de Jesus, que Se lhe revelou. Pedro anda sobre o mar—um ato destemido, mas baseado- na palavra de Jesus: «Vem» (verso 29). Mas note-se que este andar de Pedro sobre as ondas não tem outro fundamento senão estas palavras: «Se és Tu» (verso 28), quer dizer, o próprio Jesus. Não existe apoio algum, nem nenhuma possibilidade de andar, se Cristo for perdido de vista. Tudo depende d'Ele. No barco há um meio bem conhecido, mas nada mais senão a fé, que olha para Jesus, permite andar sobre a água.

O homem, apenas como homem, afunda-se pelo simples fato de estar em semelhante posição. Nada pode suster-se sobre as águas, exceto pela fé que recebe de Jesus a força que há n'Ele e que O imita. Mas é grato imitar a Jesus; está-se então mais perto d'Ele, mais semelhante a Ele. É esta a verdadeira posição da Igreja, em contraste com o Remanescente no seu aspecto normal. Jesus anda sobre a água como em terreno sólido. Àquele que criou os elementos tal como eles são, pode bem dispor das suas qualidades a Seu bel-prazer. Permite que se levantem tempestades para provar a nossa fé. Anda sobre as ondas alterosas do mesmo modo que anda sobre a acalmia. Aliás, a tempestade não faz -diferença. O que se afunda nas águas, tanto o faz no temporal como na calmaria; e o que pode andar sobre elas, tanto o faz na calmaria como no temporal— porém, desde que se olha para as circunstâncias, a fé falta e o Senhor é esquecido. Muitas vezes, com efeito, as circunstâncias levam-nos a esquecer Jesus, ali onde a fé n'Aquele que está acima de todas as coisas deveria tornar-nos capazes de as dominar.

No entanto—Deus seja bendito! — Aquele que, pelo Seu próprio poder, anda sobre as águas está lá para suster a fé e os passos vacilantes do pobre discípulo; de qualquer modo, essa fé tinha levado Pedro tão perto de Jesus que Este lhe estende a mão e o segura. O erro de Pedro foi olhar para as ondas, para a tempestade (que, afinal, nada tinha a ver com o resto), em vez de olhar para Jesus, que não tinha mudado, e andava sobre as próprias ondas, como a sua fé deveria ter observado. Contudo, o grito de angústia põe em ação o poder de Jesus, como a sua fé deveria ter feito; simplesmente era para sua vergonha agora, em vez de ser o gozo da comunhão andando como o Senhor.

Quando Jesus entrou no barco, o vento acalmou. Assim será também quando Jesus voltar para o Remanescente do Seu povo neste mundo.

Então também Ele será adorado como Filho de Deus por todos aqueles que estão no barco com o Remanescente de Israel. Em Genesaré, Jesus exerce de novo o poder que mais tarde expulsará da Terra todo o mal que Satanás ali tem feito. Porque quando Ele voltar, o mundo O reconhecerá. Este é um belo quadro do resultado da rejeição de Cristo, que este Evangelho nos deu já a conhecer no modo como Jesus tomou lugar no meio do povo judeu.