CAPÍTULO 18
Aqui, os grandes princípios que convêm à nova ordem de coisas são comunicados aos discípulos. Examinemos um pouco estas doces e preciosas instruções do Senhor.
Podem ser consideradas de duas maneiras. Revelam os caminhos de Deus a respeito do que tomaria o lugar do Senhor sobre a Terra como testemunho prestado à graça e à verdade, e, além disso, descrevem o carácter que é, em si, o verdadeiro testemunho que deve ser dado. Este capítulo pressupõe Cristo rejeitado e ausente, e a glória do capítulo 17 como futura. Passa em claro o capítulo 17 para se ligar com o capítulo 16 (exceto os versos finais do capítulo 17, que dão um testemunho prático da abdicação que Cristo fez dos Seus verdadeiros direitos até que Deus os faça valer).
O Senhor fala dos dois assuntos incluídos no capítulo 16 — o Reino e a Igreja. O que conviria ao reino seria a simplicidade de uma criança que não sabe fazer valer os seus direitos perante um mundo que não lhe presta atenção o espírito de dependência e de humildade. Os habitantes desse reino têm de se tornar como meninos. Na ausência do Senhor rejeitado, era este o espírito que convinha aos que O seguem.
Todo aquele que receber um menino em nome de Jesus, recebe-O a Ele mesmo. Por outro lado, todo aquele que puser uma pedra de tropeço no caminho de um desses pequeninos que creem em Jesus (1), será submetido a um terrível julgamento (versos 5-6).
Desgraçadamente é mesmo isto o que o mundo faz; mas, ai do mundo por causa disso! (1) Aqui o Senhor distingue «um pequenino que crê». Nos outros versos fala de uni menino, fazendo do seu carácter, como tal, o modelo do Cristão no mundo.
Quanto aos discípulos, se aquilo que eles mais estimavam se convertesse num ardil para eles, deviam arrancá-lo e destruí-lo (versos 8-9) — deviam ter, agindo em graça, o máximo cuidado para não serem um tropeço para aquele que cria em Cristo, e usar da mais implacável severidade quanto a si mesmos, em tudo que para eles representasse ocasião de queda. A perda de tudo aquilo que neste mundo era precioso nada representava quando comprado com o seu estado eterno num outro mundo; porque era disso que então se tratava, e o pecado não podia encontrar lugar lia casa de Deus. Solicitude acerca dos outros, mesmo dos mais fracos; severidade para consigo mesmo —tal era a regra do reino, para que nenhuma cilada ou mal pudesse ali manifestar-se. Quanto às ofensas, era necessária uma perfeita graça no perdão. Não deviam desprezar estes pequeninos; porque, se cies não sabiam abrir o seu caminho neste mundo, eram, contudo, o objeto do favor especial do Pai, tal como aqueles que, nas cortes terrestres, tinham o privilégio particular de ver a face do rei (verso 10). Não é que não houvesse pecado neles, mas o Pai não desprezava aqueles que estavam longe de Si. O Filho do homem tinha vindo para salvar o que estava perdido (1).
E não era da vontade do Pai celeste que perecesse ura só — nem um só — destes pequeninos (versos 11-14).
(1) Como doutrina, o estado de pecado do menino e a sua necessidade do sacrifício de Cristo são claramente verificados aqui. Ele não diz «buscar», para eles. O emprego da parábola da ovelha extraviada é aqui muito impressionante.
Não duvido de que o Senhor fala aqui aos pequeninos, como aqueles que Ele tinha em Seus braços; mas inculca nos Seus discípulos o espírito de humildade e de dependência, por um lado, e, por outro lado, esse espírito do Pai que eles deviam imitar para serem verdadeiramente filhos do reino.
Não deviam andar segundo o espírito do homem que quer manter o seu lugar e fazer-se valer; mas deviam humilhar-se e suportar o desprezo, e, ao mesmo tempo (o que é a verdadeira glória), imitar o Pai, que considera os humildes e os admite na Sua presença. O Filho do homem tinha vindo cm favor daqueles que eram desprezíveis e desprezados.
Eis o espírito do reino. É este o espírito da graça de que se fala no fim do capítulo 5. É o espírito do reino.
Mas a Igreja mais particularmente devia ocupar o lugar de Cristo na Terra. Quanto às ofensas pessoais, este mesmo espírito de doçura convinha ao Seu discípulo; ele devia ganhar o seu irmão. Se aquele que tinha pecado contra o seu irmão escutava, então o assunto devia, ser sepultado no coração daquele que tinha sido ofendido; se não escutava, o ofendido devia levar consigo duas ou três pessoas e ir junto do ofensor a fim de atingirem a sua consciência e servirem de testemunhas; mas se estes meios assim estipulados fossem ineficazes, era preciso dar conhecimento à Igreja do assunto; e se o culpado não se submetesse, devia ser considerado como um estrangeiro, como o era para. Israel um pagão e um publicano. Não se trata aqui da disciplina pública da Igreja, mas do espírito em que os crentes deviam andar. Se o transgressor cedia à advertência, era preciso perdoar-lhe setenta vezes sete vezes por dia.
Mas, embora se não trate da disciplina da Igreja, vemos que a Assembleia toma o lugar de Israel sobre a Terra.
A expressão: os que estão dentro e os que estão -fora reporta-se doravante a ela. O Céu teria ratificado o que a Igreja ligar na Terra; e o Pai também concederia o que dois ou três concordassem em pedir; porque Cristo está onde dois ou três se reunirem em Seu Nome (1).
(1) Ê importante recordar aqui que — enquanto o Espírito Santo é plenamente reconhecido em Pessoa em Mateus, como por exemplo, no nascimento do Senhor, e, no capítulo 10, agindo e falando como Pessoa divina nos discípulos que realizavam o serviço que lhes fora destinado, porque é sempre por Ele a só por Ef que nós podemos agir justamente — a vinda do Espírito Santo, na ordem de uma dispensação divina, não faz parto do ensino deste Evangelho, embora seja reconhecido de fato no capítulo 10.
A presença de Cristo em Mateus, visível como homem, termina com a Sua ressurreição; o Remanescente Judeu é enviado da Galileia para o mundo como um corpo aceite, para evangelizar os Gentios, e Jesus declara que estará com eles até à consumação do século. Assim, aqui encontrasse no meio de dois ou três reunidos em Seu Nome. A Igreja aqui não é o corpo constituído pelo batismo do Espírito Santo sobre a Terra; mas se dois ou três estão reunidos em Seu Nome, Cristo está no meio deles. Ora, eu n2o duvido de que todo o bem da vida de Cima e a Palavra de Vida Vem do Espírito, roas isso c outra coisa, e a Igreja aqui n3o é nem o corpo nem a casa cm virtude da descida do Espírito Santo. Este ensinamento e esta revelação eram posteriores, e, felizmente, continuam verdadeiros; mas aqui temos Cristo no meio daqueles que estão reunidos em Seu Nome. Mesmo no capítulo 16, é Ele que edifica, mas isso é outra coisa. Evidentemente que é espiritualmente que Ele está presente.
Assim, quer para as decisões a tomar, quer para as orações, eles eram como Cristo na Terra, porque o próprio Cristo estava ali com eles.
Que solene verdade! Favor imenso concedido a dois ou três quando verdadeiramente reunidos em Seu Nome! Mas este é um assunto de profunda consternação quando existe apenas a pretensão à unidade, mas sem a menor realidade. (1) (1) É deveras impressionante ver aqui que a única sucessão na função de ligar e desligar que o Céu sanciona é a dos dois ou três reunidos em Nome de Cristo.
Ura outro elemento próprio do carácter do reino, que tinha sido manifestado em Deus e em Cristo, é a graça que perdoa. Também nisto os filhos do reino devem ser os imitadores de Deus, e perdoar sempre. Mas isto refere-se somente a ofensas pessoais, e não à disciplina pública. Devemos perdoar até ao fim, ou antes, não encontrar limites para esta ação, do mesmo modo que Deus tudo nos perdoou.
Ao mesmo tempo que isto, creio que as dispensações de Deus para com os Judeus são aqui descritas. Eles não só tinham violado a lei, mas tinham também morto o Filho de Deus. Cristo intercedeu por eles, dizendo: «Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» (Lucas 23:34).
Em resposta a esta oração; um perdão provisório foi anunciado pelo Espírito Santo, pela boca de Pedro (Atos 3).
Alas esta graça foi também rejeitada. Quando se tratava de fazer graça aos Gentios que, sem dúvida, lhes deviam os cem dinheiros, não queriam ouvir falar disso, e foram entregues ao castigo (1), até que o Eterno pudesse dizer «Já recebeu em dobro... por todos os seus pecados».
Numa palavra, o espírito do reino não consiste em poder exterior, mas em humildade, E, neste estado, está-se perto do Pai, e então é fácil serse doce e humilde neste mundo.
Aquele que tiver sentido o favor de Deus não procurará ser grande sobre a Terra; está imbuído do espírito da graça, acarinha os humildes, perdoa àqueles que lhe têm feito mal, está junto de Deus e parece-se com Ele nos seus caminhos.
(1) Este ato de entregar ao castigo, e a revelação formal da posição celeste intermediária em relação com o Filho do homem na glória encontram-se em Atos 1, quando Estevão relata a história do povo Judeu, desde Abraão, o primeiro chamado como fundamento da promessa, até àquele momento.
O mesmo espírito da graça reina quer na Igreja quer nos seus membros. Somente a Igreja representa Cristo sobre a Terra; e é a ela que se referem essas regras fundadas sobre a aceitação de um povo como pertencendo a Deus. Dois ou três realmente reunidos cm Nome de Jesus, atuam com a Sua autoridade e gozam dos Seus privilégios junto do Pai, porque o próprio Jesus está ali, no meio deles.