CAPÍTULO 20 e 21

É por isso que, na parábola pela qual o Senhor continua o Seu discurso, Ele estabelece claramente o princípio da graça e da soberania de Deus naquilo que Ele dá, e de uma maneira distinta para com aqueles que Ele chama. O Senhor faz depender do Seu chamamento e da Sua graça os Seus dons àqueles que Ele introduz na Sua vinha.

Podemos notar que, quando o Senhor responde a Pedro, o faz como consequência de ele ter deixado tudo para seguir a Cristo após a Sua chamada. O motivo era o próprio Cristo; por isso Ele diz: «Vós, que me seguistes». Fala daqueles que tudo deixaram por amor do Seu Nome. Eis o motivo! A recompensa é um incentivo para quando, por amor de Cristo, estamos já no caminho. É sempre assim, quando se fala de recompensa no Novo Testamento (1).

(1) Com efeito, a recompensa, nas Escrituras, é sempre um estimulo para aqueles que estão em aflição e em sofrimento, por terem entrado, por motivos mais elevados, nos caminho de Deus. Fora assim com Moisés, com o próprio Cristo, cujos motivos se encontravam num perfeito amor, como sabemos, e, no entanto, por causa da alegria que estava perante Ele, suportou a Cruz, tendo desprezado a vergonha. Estava (archêgos kaiteleiôtés) no caminho da fé.

Aquele que foi chamado à undécima hora dependia desta chamada para a sua entrada no trabalho; e se o seu amo, na sua bondade, decidia dar-lhe tanto como aos outros, eles deveriam alegrar-se com isso. Aos primeiros havia sido feita justiça; recebiam o que havia sido estipulado. Os últimos desfrutavam da graça do amo. E o Senhor faz notar que eles aceitaram o princípio da graça, da confiança nessa graça: «Dar-vos-ei o que for justo». O ponto essencial da parábola é justamente esse — a confiança na bondade do dono da vinha, e a graça como ponto de partida da sua ação. Mas quem o compreendia? Um Paulo podia entrar tarde na obra, tendo sido chamado por Deus nessa altura, e, não obstante, ser um testemunho mais poderoso da graça do que os obreiros que tinham trabalhado desde a aurora do Evangelho.

O Senhor prossegue o Seu assunto com os discípulos.

Sobre a Jerusalém, onde o Messias deveria ter sido recebido e coroado, para ser rejeitado c condenado à morte, mas para ressuscitar em seguida; e quando os filhos de Zebedeu vêm pedir-Lhe os dois primeiros lugares no reino, Ele responde- lhes que pode conduzi-los ao sofrimento; mas quanto aos primeiros lugares no Seu reino, não pode concedê-los (segundo os desígnios do Pai) senão àqueles para quem o Pai os havia preparado. Que maravilhosa renúncia a Si próprio! É para o Pai, para nós, que Ele trabalha. De nada dispõe.

Pode conceder àqueles que O seguirem uma parte dos Seus sofrimentos, mas todas as outras coisas serão dadas segundo os desígnios do Pai. Mas que real glória para Cristo e que perfeição n'Ele, e que privilégio para nós de não termos senão este motivo e de partilharmos os sofrimentos do Senhor! E que purificação para os nossos corações carnais nos é aqui proposta, fazendo-nos atuar só para um Cristo sofredor, compartilhar da Sua Cruz, e nos entregarmos a Deus para a recompensa! O Senhor aproveita então o momento para explicar os sentimentos que convém aos Seus seguidores e cuja perfeição eles tinham visto n'Ele.

No mundo, procurava-se a autoridade, procurava-se ser grande; mas o espírito de Cristo era o espírito de serviço, que fazia escolher o último lugar e mostrar uma dedicação absoluta aos outros. Formosos e perfeitos princípios, cuja plena e brilhante perfeição foi manifestada em Cristo. Abandonar tudo, a fim de depender confiadamente na graça d'Aquele que servimos; e, como consequência, a prontidão em tomar o lugar mais humilde, sendo assim servos de todos — eis o que deveria ser o espírito dos que tem pane no reino, tal como o estabeleceu agora o Senhor que foi rejeitado. Ê isto o que convém àqueles que O seguem (1). Esta parte do Evangelho termina com o verso 28, principiando então as cenas finais da vida do nosso Bendito Salvador.

(1) Note-se a maneira como os filhos de Zebedeu e sua mãe procuram o primeiro lugar no próprio momento em que o Senhor Se dispõe a tomar o último, sem reserva. Infelizmente, quantos exemplos semelhantes não vemos nós a cada passo! Isto serve para mostrar a maneira absoluta como o Senhor Se despojou de tudo. Eis aqui os princípios do reino celeste: perfeita abnegação, contenta mento na completa dedicação; é o fruto do amor que não procura o seu próprio bem — condescendência que decorre daquilo que não se procura; submissão quando se é desprezado, doçura e humildade de coração, o amor produz ao mesmo tempo quer o espírito de serviço para com os outros, quer a humildade Que fica contente com esta posição. O Senhor cumpriu isto até à morte, dando a Sua vida em resgate de muitos.

No verso 29 (2) começa a Sua última apresentação a Israel como Filho de Davi, O Eterno, o verdadeiro Rei de Israel, o Messias. Começa, a este respeito, a Sua carreira em Jericó, o lugar onde Josué entrou no país — lugar onde a maldição permaneceu por tão longo tempo.

(2) O caso do cego de Jericó marca, nos três primeiros Evangelhos, o princípio das circunstâncias finais da vida de Cristo, as quais conduziam à Cruz, estando terminado o conteúdo gerei e os ensinamentos de cada um deles. Desde então Jesus é apresentado como Filho de Davi, sendo como tal a última apresentação que faz de Si próprio a esse povo» e sendo-Lhe premiado o testemunho de Deus sob esse título.

Abre os olhos cegos do Seu povo, dos que creem n’Ele e O recebem como o Messias, pois Ele o era verdadeiramente, embora rejeitado.

Os cegos saúdam-No como Filho de Davi, e Ele responde à sua fé, abrindo-lhes os olhos. Seguem-No — figura do verdadeiro Remanescente do Seu povo, que espera por Ele.

Em seguida Jesus, dispondo de tudo o que pertence a um povo de boa vontade, faz a Sua entrada em Jerusalém como Rei e Senhor, de conformidade com o testemunho de Zacarias. Mas, apesar de ali entrar como Rei — último testemunho para a cidade amada, que (para sua ruína) ia rejeitá-Lo—vem como um Rei humilde e manso. O poder de Deus atua sobre o coração das multidões; e elas aclamam Jesus como Rei, como Filho de Davi, servindo-se das expressões do Salmo 118 (1), que celebra o sábado milenial introduzido pelo Messias, devendo ser então reconhecido pelo povo.

(1) Este Salmo é particularmente profético para o tempo da futura recepção do Senhor; é muitos vezes citado em relação com essa recepção.

As multidões estendem os seus vestidos para prepararem o caminho do seu glorioso, mas humilde Rei. Cortam ramos das árvores para Lhe darem testemunho, e Ele é conduzido em triunfo até Jerusalém, enquanto o povo exclama: «Hosana ao Filho de Davi; bendito O que vem em nome do Senhor; hosana nas maiores alturas!».

Quão felizes seriam, se os seus corações tivessem sido transformados, para conservarem esse testemunho pelo Espírito; mas Deus, era Sua soberania, dispunha os seus corações para prestarem esse testemunho.

Ele não podia permitir que o Seu Filho fosse rejeitado sem o receber.

E agora o Rei, mantendo totalmente a Sua posição de humildade e de testemunho, vai passar tudo em revista.

Aparentemente, são as diferentes classes do povo que vêm para O julgar e para O enredar; mas, de fato, elas apresentam-se todas perante Ele para receberem das Suas mãos, umas após as outras, o julgamento de Deus a seu respeito.

É uma cena emocionante esta que se desenrola aqui, perante os nossos olhos — o verdadeiro Juiz, o Rei eterno, apresentando-Se, peia última vez, ao Seu povo rebelde, com o testemunho mais glorioso prestado ao Seu poder e aos Seus direitos; e eles vindo para O atormentarem e para O condenarem, levados pela sua própria maldade a desfilarem perante Ele uns após os outros, expondo abertamente o seu verdadeiro estado, para receberem seu próprio julgamento, sem que Ele deixe, por um instante sequer, (a não ser na purificação do templo, antes de começar esta cena) a posição de Fiel e Verdadeira testemunha em toda a humildade na Terra.

Há duas partes a distinguir nesta narrativa. A primeira apresenta o Senhor no Seu carácter de Messias e de Jeová.

Como Senhor, ordena que Lhe seja trazido o jumento (verso 1-3). Entra na cidade, segundo a profecia, como Rei (versos 7-11). Purifica o templo com autoridade (versos 12-13). Às objeções dos sacerdotes, Ele responde com o Salmo 8, que fala da maneira como o Eterno tira a Sua glória e estabelece os Seus justos louvores pelos lábios das criancinhas (versos 15-16). No templo, cura também a Israel (verso 14). Depois o Senhor deixa-os, não podendo ficar na cidade, que já não podia reconhecer, mas ficando fora com o Remanescente. No dia seguinte, por uma imagem notável, Ele mostra a maldição que vai cair sobre o povo. Israel era a figueira do Eterno, mas atravancava a terra.

Estava ornamentada de folhas, mas não produzia nenhum fruto. A figueira, julgada pelo Senhor, seca imediatamente.

É uma figura dessa infeliz nação, do homem na carne com todas as suas vantagens, que não dava nenhum fruto para o Cultivador.

Com efeito, Israel tinha todas as formas exteriores de religião; era zeloso pela lei e pelas ordenanças, mas não dava fruto para Deus.

Enquanto colocado sob a responsabilidade de o dar, isto é, sob a antiga aliança, nunca o dará.

A rejeição de Jesus pôs fim a essa esperança. Deus atuará em graça sob a nova aliança, mas aqui não se trata disso.

A figueira representa Israel, tal como se encontrava: o homem cultivado por Deus, mas em vão. Tudo estava acabado.

Não duvido de que aquilo que o Senhor diz aqui aos discípulos a respeito de remover montanhas (versos 20-22), sendo um grande princípio geral, se refere também ao que devia ter lugar em Israel por meio do ministério deles.

Encarado como um corpo sobre a Terra, como nação, Israel desapareceria e perder-se-ia entre os Gentios. Os discípulos eram o que Deus acolhia segundo a sua fé.

Vemos o Senhor entrar em Jerusalém como Rei — Jeová, o Rei de Israel—e em seguida o Julgamento pronunciado sobre a nação.

Seguem-se então os pormenores do Julgamento sobre as diversas classes que formavam esse povo. Em primeiro lugar vem os principais sacerdotes e os anciãos, que deveriam ter guiado o povo; chegam-se ao Senhor e põem em questão a Sua autoridade (versos 23 e seguintes). Dirigindo-se Lhe desse modo, tomam o lugar de chefes da nação e presumem ser juízes, aptos a pronunciarem-se sobre a validade de qualquer juízo que pudesse ser feito; de contrário, porque se ocupavam eles de Jesus? O Senhor, na Sua infinita sabedoria, faz-lhes uma pergunta que põe à prova a sua competência, e, segundo a sua própria confissão, eles eram incompetentes. Então, como julgá-Lo?! (1) Dizer-lhes qual era o fundamento da Sua autoridade, era inútil. Era tarde demais para lhes comunicar qual era esse fundamento.

(1) Reenviar à consciência é, muitas vezes, a resposta roais acertada, quando a vontade é perversa.

Lapidá-Lo-iam se Ele tivesse declarado a Sua verdadeira origem. Por isso lhes responde: Pronunciai-vos sobre a missão de João Batista.

E se eles não podiam fazê-lo, por que então inquirir acerca da Sua própria? Eles não podiam pronunciar-se. Reconhecer a missão de João Batista como enviado de Deus equivalia a reconhecer a Cristo. Negar que João tinha sido enviado por Deus acarretar-Lhes-ia o perderem a sua influência junto do povo. Não havia, para eles, problema de consciência! Confessam a sua incompetência. Então Jesus declina a competência deles como chefes e guardiões da fé do povo: Eles tinham-se julgado a eles mesmos. Então, a partir do verso 28 até ao verso 14 do capítulo 22, o Senhor põe claramente diante dos olhos deles a sua conduta e os caminhos de Deus a seu respeito.

Em primeiro lugar, tendo a pretensão de fazerem a vontade de Deus, não a faziam; enquanto que os que eram manifestamente maus se haviam arrependido e a tinham feito. Eles, vendo isto, ficaram ainda mais endurecidos.

Em seguida, não só a consciência natural não tinha sido atingida neles, nem pelo testemunho de João nem pelo arrependimento de outros, embora Deus tivesse empregado todos os meios próprios para os fazer dar fruto digno dos Seus cuidados, como também só encontrou neles perversidade e rebelião. Os profetas tinham sido rejeitados, e o Seu Filho sê-lo-ia de igual modo. Eles queriam a herança do Filho para si próprios (verso 38). Não podiam deixar de reconhecer que as consequências de um tal crime seriam necessariamente a destruição desses malvados e a entrega da vinha a outros. Jesus aplica-lhes a parábola citando o Salmo 118 (versos 22-23), anunciando que a pedra rejeitada pelos construtores se tornaria a principal pedra angular; além disso, todo aquele que caísse sobre esta pedra — como fazia a nação naquele momento — seria despedaçado; e aquele sobre quem ela caísse—esta será a sorte da nação rebelde nos últimos dias — ficaria reduzido a pó (verso 44). Os principais sacerdotes e os Fariseus compreenderam que Ele falava deles, mas não ousaram pôr as mãos sobre Ele, porque as multidões O tinham por profeta.

Tal é a história de Israel considerada na sua própria responsabilidade até aos últimos dias. Jeová buscava fruto na Sua vinha.