CAPÍTULO 26
O Senhor tinha terminado os Seus discursos. Prepara-Se agora para sofrer e para fazer a Sua última e comovente despedida dos Seus discípulos, à mesa da Sua última Páscoa na Terra, mesa em que instituiu o simples e precioso memorial que recorda com um interesse tão profundo os Seus sofrimentos e o Seu amor. Esta parte do Evangelho não exige muitas explicações—não, certamente, por falta de interesse, mas porque carece mais de ser sentida do que explicada.
Com que simplicidade o Senhor anuncia o que deve acontecer! (verso 2). Tinha chegado já a Betânia, seis dias antes da Páscoa (João 12:1); ali permaneceu, exceto para a última ceia, até ser preso no jardim de Getisêmani, embora visitasse Jerusalém e ali tivesse tomado a Sua última refeição.
Examinámos já os discursos pronunciados durante esses seis dias, assim como os Seus atos, tais como a purificação do templo. O que precede este capítulo é a manifestação dos direitos do Senhor como Emanuel, Rei de Israel, ou o Juízo do grande Rei a respeito do povo — Julgamento expresso em palavras às quais o povo não podia dar resposta; e enfim o estado dos Seus discípulos durante a Sua ausência.
Vemos agora a submissão de Cristo aos sofrimentos que iam abater-se sobre Si, mas que, realmente, não constituíam senão o cumprimento dos desígnios de Deus Seu Pai — e a obra do Seu próprio amor.
O quadro do pecado terrível do homem na crucificação de Jesus desenrola-se ante nossos olhos. Mas o próprio Senhor o anuncia (verso 2) antecipadamente com toda a calma de Alguém que tinha vindo justamente para isso. Antes dos principais sacerdotes mutuamente se consultarem, Jesus fala dela como de uma coisa consumada; «Bem sabeis que daqui a dois dias é a Páscoa; e o Filho do homem será entregue para seja crucificado». Era seguida os principais sacerdotes, os escribas e os anciãos do povo reúnem-se para acertarem os seus planos a fim de se apoderarem de Jesus e se desfazerem d'Ele (versos 34).
Numa palavra, temos primeiro os maravilhosos desígnios de Deus, e a submissão de Jesus, segundo o Seu conhecimento desses desígnios e das circunstâncias que os realizarão; depois os perversos desígnios do homem que não fazem senão cumprir os de Deus. O pormenorizado propósito deles de não O prenderem durante a festa, por temerem o povo (verso 5), não era de Deus e falha: Ele devia sofrer durante a festa.
Judas era apenas um instrumento da maldade deles na mão de Satanás que, no fim de contas, não fez senão regular as coisas segundo a intenção divina. Os principais do povo queriam, mas em vão, evitar prendê-Lo na ocasião da festa, por causa da multidão que podia favorecer a Jesus, se Ele apelasse para ela. Tinham já procedido de igual modo (Marcos 11:18) aquando da Sua entrada em Jerusalém.
Eles pensavam que Jesus faria esse apelo, por que a maldade conta sempre encontrar os seus próprios princípios nos outros. É por isso que falha frequentemente quando pensa enredar os justos: Eles são simples — e ela não o é. Aqui, era a vontade de Deus que Jesus sofresse durante a festa. Mas Deus tinha preparado um doce alívio para o coração do Salvador — um bálsamo para o Seu coração mais do que para o Seu próprio corpo — circunstância empregada pelo Inimigo para induzir Judas ao extremo e pô-lo em relação com os principais sacerdotes.
Betânia — cuja recordação se liga aos últimos momentos de tranquilidade e de paz da vida do Salvador e onde moravam Marta e Maria e Lázaro, o ressuscitado — Betânia (1) recebe Jesus pela última vez: Retiro bendito, mas momentâneo, de um coração que, sempre pronto para se derramar em amor, era sempre oprimido num mundo de pecado que não respondia nem podia responder a esse amor; de um coração que, no entanto, nos deu, nas suas relações com esta família bem-amada, o exemplo de uma perfeita afeição, embora humana, que encontrava doçura em ser apreciada e correspondida.
(1) Não é na casa de Marta que esta cena tem lugar, mas sim na de Simão, o leproso. Marta servia, e Lázaro estava à mesa. Isto torna mais inteiramente pessoal o ato inteligente de Maria.
A perspectiva da Cruz, que Ele teria de contemplar com resoluta firmeza, não privava o Seu coração da doçura desta comunhão, embora a tornasse solene e comovedora. Fazendo a vontade de Deus, Jesus não cessou de ser homem. Condescendeu em tudo ser por amor de nós. Não podia mais reconhecer Jerusalém, e este santuário de Betânia O abrigava por um momento da rude mão do homem. Podia mostrar ali o que sempre fora como homem. É com razão que o ato daquela que, em certo sentido, podia apreciar o que Ele sentia (1) (aquela cuja afeição compreendia instintivamente o ódio que se erguia contra o objeto que ela amava, ódio que fazia realçar essa afeição), ato que exprimia a apreciação que o seu coração fazia do valor e da graça de Jesus, é contado no mundo inteiro (versos 6-13).
(1) Não se encontra nenhum exemplo mostrando que os discípulos tenham alguma vez compreendido o que Jesus lhes dizia.
É uma cena, um testemunho que coloca o Salvador sensivelmente perto de nós e desperta nos nossos corações um sentimento que os santifica unindo-os à Sua bem-amada Pessoa... A Sua vida habitual era uma tensão permanente de alma em proporção do poder do Seu amor —uma vida de dedicação no meio do pecado e da miséria. Por um momento, Ele pode reconhecer, e reconhece (em presença do poder do mal que então ia ter o seu curso, e do amor que, pelo verdadeiro conhecimento de Jesus, cultivado ficando sentado a Seus pés, a Ele se ligava, inclinando-Se assim sob a força desse amor) essa dedicação por Si mesmo, manifestada pelas coisas às quais a Sua alma se submetia em perfeição divina. Podia reconhecer o verdadeiro significado de palavras inteligentes, proferidas como resultado da ação divina no recôndito da alma (2).
(2) Cristo encontrou em casa do fariseu o coração da pobre mulher, que era uma pecadora, e ali revela abertamente o pensamento de Deus, dizendo-o de modo que todos ouvissem. Aqui, Ele encontra o coração de Marin, justifica e satisfaz o seu afeto e dá, uma aprovação divina ao que ela faz. O Senhor encontra no sepulcro o coração de Maria de Magdala, para o qual o mundo era vazio, se Ele ali não estivesse — e revela o pensamento de Deus sob a sua mais elevada forma de benção. Tal é o efeito da dedicação a Cristo.
O leitor fará bem em estudar cuidadosamente esta cena de impressionante condescendência e manifestação de alma.
Desde o capítulo 16 até ao fim do capítulo 25, Jesus, Emanuel, Rei e Juiz Supremo, havia, feito passar tudo em Julgamento perante Ele.
Tinha terminado o que tinha para dizer. A este respeito, a Sua tarefa no mundo estava cumprida.
Toma então o lugar de vítima. Já não tinha senão que sofrer, e pode deixar-Se ir livremente para desfrutar comoventes expressões de afeição, brotando de um coração que Lhe é dedicado. Apenas podia provar o mel e prosseguir avante; mas prova-o e não rejeita uma afeição que o Seu coração podia apreciar e que apreciava.
Notemos ainda o efeito de uma profunda afeição pelo Senhor. Esta afeição respira necessariamente a atmosfera em que o espírito do Senhor se encontrava então. A mulher que O tinha ungido não estava informada das circunstâncias que iam ter lugar, nem era profetisa. Mas a aproximação dessa hora de trevas foi sentida por alguém cujo coração estava posto em Jesus (1).
(1) A inimizade dos chefes de Israel era conhecida dos discípulos: «Mestre, ainda agora os Judeus procuravam apedrejar-te, e voltas para lá?», e logo a. seguir Tomé — testemunho pleno de graça para com aquele que, mais tarde, mostrou a sua incredulidade quanto à ressurreição de Jesus: «Vamos nós também» para morrermos com Ele». O coração de Maria, sem dúvida, sentia essa inimizade, c, à medida que ela crescia, crescia também a sua afeição pelo Senhor.
As diversas formas do mal desenrolavam-se perante Ele e mostravamse no seu verdadeiro caráter; e, sob a influência de um mesmo senhor, o próprio Satanás, juntaram-se em redor do único objetivo contra o qual valia a pena pôr em ordem essa concentração de maldade que revelava abertamente o verdadeiro caráter de cada um.
Mas a perfeição de Jesus, que fazia sobressair a inimizade do homem, revelava a afeição que se encontrava em Maria; e ela, por assim dizer, refletia a perfeição no afeto; e como esta perfeição era posta em ação e revelada pela inimizade, o mesmo acontece com a sua afeição.
Por isso o coração de Jesus não podia senão corresponder-lhe. Jesus, por causa dessa inimizade, era ainda mais o objeto de um coração que, certamente guiado por Deus, instintivamente apreendia o que se estava a passar.
O tempo do testemunho e até mesmo da explicação das Suas relações com todos aqueles que O rodeavam tinha terminado.
O Seu coração podia gozar livremente das afeições verdadeiras, boas e espirituais de que era alvo—afeições que, qualquer que fosse a sua forma humana, mostravam bem claramente a sua origem divina.
Nesse solene momento, Ele era o alvo e o centro de toda a atenção do Céu.
Jesus tinha o sentimento da Sua posição. Os Seus pensamentos estavam concentrados na Sua partida. Durante o exercício do Seu poder, oculta-Se e esquece-Se de Si. Mas agora, oprimido, rejeitado e como um cordeiro levado para o matadouro, sente que é o justo objeto dos pensamentos dos Seus, de todos aqueles que têm corações para apreciar o que Deus aprecia, O Seu coração está cheio do que vai acontecer. (Ver os versos 2,10-13; 18 e 21).
Algumas palavras mais acerca da mulher que ungiu a Jesus: O efeito de ter o coração fixado com afeto em Jesus é revelado nela de uma maneira notável. Preocupada com Ele, ela sente a Sua posição. Sente o que O aflige; e isto leva o seu afeto a agir de harmonia com a devoção especial que a situação inspira. Assim como o ódio contra Ele se desenvolve até às intenções homicidas, também o espírito de dedicação por Ele se desenvolve nela. Por conseguinte, com o seu ato de afeto, ela faz precisamente o que convém à posição do Senhor. Sem dúvida a pobre mulher não estava inteligentemente esclarecida a esse respeito, mas fez o que convém. O valor tão infinitamente precioso que a Pessoa de Jesus tinha para ela torna-a clarividente a respeito do que se passava em Seu espírito. Aos seus olhos Cristo estava investido de todo o interesse das Suas circunstâncias; e derrama prodigamente sobre Ele o que é a expressão do seu afeto. Fruto desse sentimento, o seu ato responde às circunstâncias; e embora fosse apenas o instinto do seu coração, toma aos olhos de Jesus todo o valor que a perfeita inteligência do Senhor lhe podia atribuir, inteligência que abrangia ao mesmo tempo o sentimento do seu coração e os acontecimentos que iam ter lugar.
Mas esse testemunho de afeto e de devoção a Cristo desperta o egoísmo, a falta de coração das outras testemunhas desta cena.
Censuram a pobre mulher e provam tristemente (para não falar de Judas (1)) quão pouco o conhecimento do que diz respeito a Jesus desperta necessariamente em nossos corações os afetos que convêm a esse conhecimento (versos 8-9).
(1) O coração de Judas é o ponto de partida desse mal, mas os outros discípulos, não estando ocupados de Cristo, caem na esparrela.
Logo após este acontecimento (versos 14-16), Judas sai e concorda com os infelizes sacerdotes entregar-lhes Jesus pelo preço de uni escravo.
O Senhor prossegue a Sua carreira de amor; e do mesmo modo como tinha aceitado o testemunho de afeto da pobre mulher, manifesta agora pelos Seus discípulos um afeto de valor infinito para as nossas almas.
O verso 16 conclui o assunto de que temos estado a falar — o conhecimento que Cristo tinha, segundo Deus, do que O esperava, os conluios dos principais sacerdotes, o afeto da pobre mulher aceite pelo Senhor, o frio egoísmo dos discípulos c a traição de Judas.
O Senhor institui então o memorial da verdadeira Páscoa.
Envia os Seus discípulos para fazerem os preparativos para a celebração da festa em Jerusalém. Designa Judas como sendo aquele que havia de entregá-Lo aos Judeus (versos 17-25). Notar-se-á que o Senhor não exprime aqui simplesmente o Seu conhecimento daquele que devia traí-Lo! Ele sabia isso quando chamou Judas; mas diz: «um de vós me há de trair» (verso 21). Era precisamente isto o que comovia o Seu coração.
E Ele desejava que os comovesse a eles de igual modo.
Jesus mostra em seguida que é de um Salvador entregue à morte que 6 preciso recordarem-se. Já não se trata de um Messias vivendo na Terra; tudo isso era passado. Já não se tratava da recordação da libertação de Israel da escravidão do Egito. Cristo—e um Cristo morto — começava uma ordem de coisas inteiramente nova. Era n'Ele que eles deviam pensar agora — n'Ele, morto neste mundo.
Em seguida Jesus chama a atenção deles para o sangue da nova aliança e para o que faz com que esse sangue se estenda a outros além dos Judeus, sem contudo os nomear.
«Ele é derramado por muitos». Aliás, este sangue não é somente destinado, como no Sinai, a confirmar a aliança, por cuja Fidelidade eles eram responsáveis: ele era derramado em remissão de pecados.
De modo que a Ceia do Senhor apresenta a recordação de Jesus morto, de Jesus que, ao morrer, rompeu com o passado, lançou o fundamento da nova aliança, obteve a remissão dos pecados e abriu a porta aos Gentios. A Santa Ceia apresenta-O perante nós somente na Sua morte.
O Seu sangue é separado do Seu corpo; Ele está morto. Não se trata nem de Cristo vivendo sobre a Terra, nem de Cristo glorioso no Céu.
Está separado do Seu povo, quanto aos seus gozos na Terra; mas eles devem esperá-Lo como o companheiro da felicidade que Ele lhes assegurou—porque Ele digna-Se sê-lo — para melhores dias; «Já não beberei deste fruto da vide, até àquele dia em que o beba novo (1) convosco, no reino de meu Pai» (verso 29). Mas, uma vez quebrados esses elos, quem, senão Jesus, poderia sustentar a luta? Todos O abandonam.
(1) «Novo», não é de novo (Néon), mas sim de outa espécie (Kainon).
Os testemunhos da Palavra de Deus cumprem-se, porque estava escrito: «Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão» (verso 31).
Todavia, Jesus iria renovar as Suas relações, como Salvador ressuscitado, com esses pobres do rebanho, lá mesmo onde Se tinha já identificado com eles durante a Sua vida (verso 32). Tria adiante deles para a Galileia. Esta promessa é verdadeiramente notável, porque o Senhor retoma, sob uma nova forma, as Suas relações judaicas com eles e com o reino. Podemos notar aqui que como o Senhor tinha julgado todas as classes de pessoas (até final do capítulo 25), mostra agora o caráter das Suas relações com todos aqueles com quem as tinha mantido. Quer se tratasse da mulher, quer se tratasse de Judas, ou dos discípulos, cada qual toma o seu lugar em relação com o Senhor. É tudo o que se encontra aqui. Se Pedro teve energia natural bastante para ir um pouco mais longe, seria apenas para dar uma queda maior no lugar onde só o Senhor podia permanecer de pé.
E agora (versos 36 e seguintes) o Senhor isola-Se para apresentar em súplicas a Seu Pai os sofrimentos que O esperam.
Mas, embora isolando-Se para oração, leva Consigo três dos Seus discípulos, para que, nesse tão solene momento, eles pudessem vigiar com Ele. Eram os mesmos três que tinham estado com Ele por ocasião da transfiguração. Eles deviam ver a Sua glória no reino e os Seus sofrimentos.
Afasta-Se deles um pouco, indo mais para diante. Eles, porém, adormeceram, tal como tinham feito no monte da transfiguração. Esta cena é-nos descrita em Hebreus 5:7.
Jesus não bebia ainda o cálice, mas tinha-o perante Si. Na Cruz, Ele bebeu-o, sendo feito pecado por nós, e a Sua alma sentiu-se desamparada de Deus. Aqui, o poder de Satanás atua empregando a morte como terror a fim de O oprimir. Mas a consideração deste assunto terá lugar mais adequado quando estudarmos o Evangelho segundo S. Lucas, Vemos aqui a alma de Jesus sob o peso da morte — antecipada—como somente Ele o podia conhecer, e ela não tinha ainda perdido o seu aguilhão. Sabemos quem é que tem o poder da morte, e a morte tinha por enquanto o pleno caráter de salário do pecado, e a maldição, o do Juízo de Deus. Mas Jesus vigia e ora. Por um lado, como homem, submetido pelo Seu amor a este assalto, em presença da mais poderosa tentação a que podia ser submetido, Ele vigia; por outro lado, expõe a Sua aflição a Seu Pai. A Sua comunhão não foi interrompida, por grande que fosse a Sua angústia. Esta angústia era-Lhe mais dolorosa em submissão e dependência do Pai.
Mas nós devíamos ser salvos. Se Deus devia ser glorificado n'Ele que Se tinha encarregado da nossa causa, o cálice não podia ser afastado d'Ele. A submissão de Jesus é perfeita.
Jesus lembra com ternura a Pedro a sua falsa confiança (1), fazendolhe sentir a sua fraqueza (versos 40-41); mas Pedro estava demasiado cheio de si mesmo para aproveitar a lição. Despena do sono, mas a confiança que tem em si mesmo não é abalada. Era-lhe necessária uma experiência mais triste para o curar...
(1) É maravilhoso ver o Senhor na profunda agonia da antecipação do cálice — somente o apresentando ao Pai, o não o bebendo ainda — voltar-Se para os discípulos e falar-lhes com uma graça plena de calma, como se estivesse na Galileia; voltando depois exatamente à mesma terrível luta de espírito, que oprimia a Sua alma. Acrescento que em Mateus Ele é vítima, e que aquilo quo Ele encontra aqui c todo o agravamento, sem circunstâncias atenuantes.
Jesus toma, pois, o cálice; mas toma-o da mão de Seu Pai. A vontade de Seu Pai era que Ele o bebesse. Entregando-Se assim inteiramente a Seu Pai, não é nem das mãos dos Seus inimigos nem das de Satanás (embora eles fossem os instrumentos) que Ele o toma. De conformidade com a perfeição com que Se havia submetido à vontade de Deus a este respeito, entregando-Lhe todas as coisas, é só da Sua mão que Ele o recebe. É a vontade do Pai. É desta forma que nós escapamos de causas secundárias e das tentações do Inimigo, buscando só a vontade de Deus que ordena todas as coisas. É d'Ele que recebemos aflições e provações, se elas nos sobrevêm.
Mas já não há necessidade de que os discípulos vigiem: Chegou a hora (1). Jesus ia ser entregue às mãos dos homens.
(1) Proponho-me falar dos sofrimentos do Senhor, estudando o Evangelho segundo S. Lucas, onde eles são descritos mais pormenorizadamente; porque é como Filho do homem que Ele é ali particularmente apresentado.
Isto era dizer tudo. Judas indica-O com um beijo.
Jesus vai ao encontro da multidão e repreende Pedro por ter procurado resistir com armas carnais. Se Cristo tivesse querido escapar, poderia ter pedido doze legiões de anjos —e tê-las-ia! Mas devia cumprir-se toda a Escritura (2).
(2) Note-se aqui o lugar que o Senhor, num momento tão solene e tão próximo da Cruz, dá às Escrituras, que dizem que é necessário que assim aconteça — porque esse momento tinha chegado (verso 54).
Estas são as palavras de Deus.
Era a hora da Sua submissão aos efeitos da maldade do homem e ao poder das trevas, e ao Julgamento de Deus contra o pecado. É o cordeiro para o matadouro. Então todos os discípulos O abandonam (verso 56). Entrega-Se, chamando, porém, a atenção da multidão para o que estavam a fazer. Se ninguém pode demonstrar a Sua culpabilidade, Ele não negará a verdade- Confessa a glória da Sua Pessoa como Filho de Deus, e declara que desde agora verão o Filho do homem, já não em doçura, como Aquele que não esmagaria a cana quebrada, mas vindo sobre as nuvens do céu c assentado à direita do Poder (versos 56-64).
Tendo dado este testemunho, Jesus é condenado por aquilo que disse de Si próprio — pela confissão da verdade. As falsas testemunhas não foram bem sucedidas. Os sacerdotes e os chefes de Israel eram culpados da Sua morte, em virtude da rejeição do testemunho que Ele dera da verdade. Ele era a Verdade; eles estavam sob o poder do pai da mentira, rejeitando o Messias, o Salvador do Seu povo (versos 65, 66). Já não virá mais a eles, senão como Juiz.
Insultam-No e ultrajam-No. Desgraçadamente, como temos visto, cada um toma o seu lugar aqui: Jesus, o de vítima; os outros tornam o lugar da traição, da rejeição, do abandono, negando o Salvador! Que triste quadro! Que solene momento! Quem poderia suportá-lo? Somente Cristo! E como Vítima! Como tal, Ele devia ser despojado de tudo, e isto na presença de Deus. Tudo o mais desaparece, exceto o pecado, que levava à Cruz; e, por graça, o próprio pecado também, ante a poderosa eficácia do sacrifício. Confiando em si mesmo, Pedro hesita, e, quando é reconhecido, mentindo e jurando, nega o seu Mestre! Depois, dolorosamente convencido da impotência do homem frente ao inimigo da sua alma e do pecado, sai e chora amargamente.
Essas lágrimas não podiam apagar a sua culpa, mas provando que havia, por graça, integridade de coração, elas dão testemunho dessa impotência a que a própria integridade de coração não podia dar remédio (1).
(1) Penso que veremos, comparando os Evangelhos, que o Senhor foi interrogado em casa de Caifás, na noite em que Pedro O negou; e que os principais sacerdotes e os anciãos, deliberaram de novo pela manhã, e, interrogando o Senhor, receberam d'Ele a confissão em virtude da qual O entregaram a Pilatos. Durante a noite, os ativos chefes somente se reuniram. De manhã houve uma assembleia regular do Sinédrio.