CAPÍTULO 10

No entanto, embora não procurasse a Sua própria glória, tinha consciência da iniquidade que governava o povo.

Depois de haver exortado os Seus discípulos a orarem para que obreiros fossem enviados para a seara, Jesus começa a atuar de conformidade com esse desejo. Chama os doze discípulos, comunicalhes o poder de expulsar os demónios e de curar os enfermos, e envia-os às ovelhas perdidas da Casa de Israel. Vemos, nesta missão, até que ponto os desígnios de Deus a respeito de Israel formam o tema deste Evangelho. Os discípulos deviam anunciar a esse povo, e exclusivamente a ele, que o reino estava próximo, exercendo ao mesmo tempo o poder que haviam recebido: notável testemunho prestado Àquele que era vindo e que não só podia operar milagres, mas também conferir poder aos outros para fazerem o mesmo. Deulhes autoridade sobre os espíritos imundos para esse fim. E isto o que caracteriza o reino: 0 homem curado de todo o mal, e o demónio expulso. É por isso que os milagres são chamados em Hebreus 6:5 «as virtudes do século futuro» (1).

(1) Porque então Satanás será amarrado, e o homem libertado pelo poder de Cristo. Havia então libertações parciais da mesma espécie.

Os discípulos deviam depender lambem, quanto às coisas necessárias para a sua manutenção, inteiramente de Aquele que os enviava.

Emanuel estava presente. Se os milagres eram uma prova para o mundo do poder do seu Mestre, o fato de nada lhes faltar devia sê-lo também para os seus próprios corações. A ordenança foi anulada para o período de tempo do seu ministério que se seguiu à partida de Jesus deste mundo (ver lc 22:35-37). Aquilo que Ele aqui (Mateus 10) ordena aos Seus discípulos diz respeito à Sua presença como Messias, como o próprio Jeová na Terra. Por isso a recepção dada aos Seus mensageiros, ou a sua rejeição, decide a sorte daqueles a quem eles eram enviados. Rejeitá-los era rejeitar o Senhor, Emanuel Deus com o Seu povo (1).

(1) O verso 15 estabelece uma divisão no discurso do Senhor. Até ali, trata-se da missão daquele momento. A partir do verso 16 temos reflexões mais gerais acerca da missão dos discípulos, vista no seu conjunto, no seio de Israel. Ê evidente que isso vai além dia missão deles de então, e supõe a vinda do Espírito Santo. A missão à qual a Igreja, como tal, é chamada, é muito diferente. Isto aplica-se somente a Israel. Era-lhes proibido irem para os Gentios; mas isso acabou necessariamente com a destruição de Jerusalém e a dispersão da nação judaica. Todavia, renovar-se-á no fim, até à vinda do Filho do homem. Havia, só para os Gentios, um testemunho colocado perante Israel como juiz. Tal era Paulo; e esta parte da sua história, mesmo até Roma, no Livro de Atos, passava-se no seio dos Judeus. A última parte, a partir do verso 16, tem menos a ver com o Evangelho do reino.

Com efeito, Jesus enviava os Seus discípulos como ovelhas para o meio de lobos.

Necessitavam da prudência das serpentes e deviam mostrar a simplicidade das pombas — raro conjunto de virtudes, encontrado somente naqueles que, pelo Espírito do Senhor, são sábios quanto ao bem e simples quanto ao mal.

Se não se acautelassem dos homens (triste testemunho dado a respeito destes), teriam de sofrer; mas, quando açoitados e levados à presença de concílios e de governadores e reis, todas essas tribulações se tornariam um testemunho para eles, um meio divino de apresentar o Evangelho do reino aos reis e aos príncipes, sem alterar o seu carácter e sem o acomodar ao mundo ou confundir os discípulos de Jesus com os costumes e a falsa grandeza deste mundo. De resto, tais circunstâncias tornariam o seu testemunho muito mais notável do que o teria conseguido a sua ligação com os grandes da Terra. E para cumprirem esse testemunho, o Senhor concederia aos Seus este poder e esta direção do Espírito de seu Pai que fariam com que as palavras que eles pronunciavam não fossem as suas próprias palavras, mas as palavras de Quem os inspira como vemos nos versos 19-20.

Aqui de novo a relação dos discípulos com o Pai que tão notavelmente caracteriza o sermão da montanha, forma a base da sua capacidade para o serviço que tinham de cumprir.

Note-se que este testemunho era dirigido somente a Israel; estando Israel sob o jugo dos Gentios desde Nabucodonosor, o testemunho teria de alcançar os seus chefes.

Ora esse testemunho devia suscitar uma oposição tal que destruiria todos os laços de família e despertaria um ódio tão encarniçado que não pouparia nem sequer a vida dos entes mais queridos. Mas aquele que, apesar de tudo, permanecesse até ao fim, esse seria salvo (versos 21-22).

Não obstante, o caso era urgente. Eles não deviam resistir, mas, se a oposição tomasse a forma de perseguição, deviam fugir e pregar o Evangelho noutros lugares, porque, antes de terem percorrido todas as cidades de Israel o Filho do homem estaria de volta (1).

(1) Note-se aqui a expressão «Filho do homem», e o carácter (segundo Daniel 7) sob o qual o Senhor virá, com um poder e uma glória muito maiores do que os da. Sua manifestação como Messias, Filho de Davi, poder e glória que se manifestarão numa esfera muito mais vasta. Como Filho do homem, é o herdeiro de tudo o que Deus destina ao homem. (Ver hb 2:6-8 e 1 Coríntios 15:27). Devia, por conseguinte, dada a condição do homem, sofrer para possuir essa herança. Estava ali como Messias, mas devia, ser recebido no Seu verdadeiro carácter, como Emanuel, a os Judeus deviam ser provocados moralmente. Não haverá o reino segundo um princípio carnal. Rejeitado como Messias como Emanuel, adia o período desses acontecimentos que encerrarão o ministério dos Seus discípulos para coro Israel até a Sua vinda como Filho do homem. Durante esse tempo Deus manifestou outras coisas que tinham sido escondidas desde a fundação do mando: A verdadeira glória de Jesus, o Filho de Deus, a Sua glória celeste como homem e a união da Igreja com Ele no Céu. O Julgamento de Jerusalém e a dispersão da nação suspenderam o ministério que tinha começado no momento do que nos fala aqui o evangelista. Os acontecimentos que preencheram o intervalo da tempo a partir desse momento não são aqui o tema do discurso do Senhor, porque Ele não se refere sendo ao ministério, tendo os Judeus por objeto. Quanto aos planos de Deus acerca da Igreja, em relação com a glória de Jesus â direita de Deus, será assunto tratado noutro lugar.

Lucas dá-nos com mais detalhes o que concerne ao Filho do homem.

Em Mateus, o Espírito Santo ocupa-nos com a rejeição de Emanuel.

Eles deviam anunciar o reino.

Jeová Emanuel estava ali, no meio do Seu povo, e os chefes do povo tinham chamado ao senhor da casa Belzebu.

Isto não tinha impedido o testemunho de Jesus, mas acentuava poderosamente as circunstâncias em que o testemunho deveria ser prestado. O Senhor enviou os Seus discípulos, advertindo-os deste estado de coisas, para manter este derradeiro testemunho no meio do Seu amado povo por tanto tempo quanto fosse possível. Estes fatos tiveram lugar naquele tempo, e é possível, se as circunstâncias o permitirem, que continue até que o Filho do homem venha para executar o Juízo. Mas então o senhor da casa se levantará para fechar a porta. O dia de hoje do Salmo 95 terá acabado para sempre.

Israel, habitando nas suas cidades, é o objetivo desse testemunho, o qual é necessariamente suspenso quando ele já não estiver na sua terra. O testemunho do reino vindouro, dado em Israel pelos apóstolos, depois da morte do Senhor, é o cumprimento desta missão, contanto que este testemunho fosse dado na terra de Israel; porque o reino podia ser anunciado como devendo ser estabelecido enquanto Emanuel estava na Terra, ou então pelo regresso de Cristo, vindo do Céu, conforme foi anunciado por Pedro no capítulo 3 de Atos. E isto podia ter lugar se Israel estivesse no seu país, mesmo até à vinda de Cristo. Deste modo o testemunho pode ser retomado em Israel, quando este se encontrar de novo na sua terra e Deus der o poder espiritual necessário para isso.

Entretanto os discípulos deviam participar da posição do próprio Cristo. Se chamaram Belzebu ao dono da casa, quanto mais aos seus domésticos (verso 25). Mas eles não deviam temer. Essa era a parte inevitável dos que eram por Deus no meio do povo. Porém, nada havia encoberto que não viesse a ser revelado. Eles próprios nada deviam ocultar, devendo proclamar dos eirados tudo o que lhes tinha sido ensinado; porque todas as coisas seriam trazidas para a luz: a sua fidelidade a Deus a este respeito, assim como todas as outras coisas.

Isto, enquanto provocava a conspiração dos seus inimigos, devia caracterizar o comportamento dos discípulos. Deus, que é Luz, e vê nas trevas como na luz, traria tudo à luz, mas eles tinham de fazer isso moralmente. Portanto, não deviam temer coisa alguma enquanto desempenhassem esse serviço, a não ser a Deus, o justo Juiz do último dia. Aliás, até os próprios cabelos das suas cabeças estavam contados.

Eles eram mui preciosos para o Pai — Pai que até tomava conta da morte de um passarinho! Nem isso podia acontecer sem o consentimento dAquele que era o Pai deles.

Enfim, os discípulos deviam estar bem imbuídos da convicção de que o Senhor não tinha vindo para trazer paz à Terra; pelo contrário, seria a divisão, até mesmo no seio das famílias, Mas Cristo devia ser mais precioso do que pai ou mãe, e até mesmo que a própria vida. Quem quisesse salvar a sua vida à custa do testemunho de Cristo, perdê-la-ia; mas quero a perdesse por amor de Cristo, achá-la-ia. Todo aquele que recebesse este testemunho, receberia também a Cristo e, em Cristo, Aquele que O tinha enviado.

Portanto, sendo Deus assim reconhecido na pessoa das Suas testemunhas na Terra, concederia a todo aquele que os recebesse um galardão de acordo com o testemunho dado.

Reconhecendo deste modo o testemunho do Senhor rejeitado, ainda que fosse por meio de um simples copo de água, aquele que o desse não perderia o seu galardão. Num mundo de oposição, aquele que aceita o testemunho de Deus e recebe (apesar do antagonismo do mundo) aquele que dá esse testemunho, confessa realmente a Deus, bem como o Seu servo. Isto é tudo o que podemos fazer. A rejeição de Cristo fez dEle o teste, a pedra de toque.

Desde esse momento encontramos o julgamento definitivo da nação; não, porém, abertamente declarado (o que tem lugar no capítulo 12), nem na cessação do ministério de Cristo que atuava, apesar da oposição da nação, no sentido de agrupar o Remanescente, e nem — o que é mais importante ainda—na manifestação de Emanuel; declarado, sim, na carácter dos Seus discursos, nas afirmações positivas que descrevera o estado do povo, e no comportamento do Senhor no meio das circunstâncias que Lhe proporcionavam a ocasião de expressar quais eram as suas relações com aquele povo.