CAPÍTULO 27

Depois os infelizes sacerdotes e chefes do povo entregam o seu Messias aos Gentios, tal como Ele tinha dito aos Seus discípulos.

Judas, no desespero, sob o poder de Satanás, enforca-se, depois de haver atirado o prémio da sua iniquidade aos pés dos principais sacerdotes e dos anciãos. Satanás é forçado a prestar testemunho à inocência do próprio Senhor, por tuna consciência que ele enganou.

Que cena! Então os sacerdotes, que não sentiram na consciência o pecado de comprarem a Judas o sangue de Jesus, têm escrúpulo de porem o dinheiro na tesouraria do templo, porque ele era o preço do sangue. Perante tudo o que se estava a passar, o homem mostrou-se tal qual é, e mostrou o poder de Satanás sobre ele. Os sacerdotes, tendo reunido em conselho, deliberaram comprar um campo para sepultura de estrangeiros. Estes eram, a seus olhos, bastante profanos para nele serem sepultados — contando que eles próprios não fossem contaminados por um tal dinheiro! Era, no entanto, o momento da graça de Deus para os estrangeiras, e o do Julgamento de Israel. Aliás, eles estabelecem desse modo um perpétuo memorial do seu próprio pecado, e do sangue que fora derramado. Aceldama, isto é, campo de sangue, é tudo quanto resta neste mundo das circunstâncias desse grande sacrifício. O mundo é um campo de sangue, mas de sangue que fala mais do que o sangue de Abei.

É sabido que esta profecia se encontra no Livro de Zacarias, capítulo 11, versos 12 e 13. A palavra «Jeremias» pôde escapar no texto, no tempo em que ali não havia senão «pelo profeta»; ou então, como na ordem requerida pelos talmudistas, «Jeremias» era o primeiro no Livro dos Profetas, dizia-se provavelmente: «Jeremias ou um dos profetas» (ver Mateus 16:14). Mas não é este o lugar próprio para discutir esta questão.

Termina aqui a parte deles nas cenas judaicas. O Senhor comparece agora perante Pilatos. Aqui a questão não se Ele é o Filho de Deus, mas se é o Rei dos Judeus.

Embora Ele fosse Rei dos Judeus, era só no caráter de Filho de Deus que consentiria aos Judeus o receberem-No.

Tivessem-No eles recebido como Filho de Deus e Ele teria sido o seu Rei. Mas Isso não podia ser: Ele tinha de cumprir a obra da expiação.

Havendo-0 rejeitado como Filho de Deus, os Judeus negam-No agora como seu Rei. Mas os Gentios tornam-se também culpados na pessoa do seu chefe na Palestina, cujo governo lhes tinha sido confiado. O chefe gentio deveria ter reinado com justiça. O seu representante na Judeia reconheceu a maldade dos inimigos de Cristo; a sua consciência, alarmada pelo sonho de sua mulher, procura escapar-se à iniquidade de condenar Jesus. Mas o verdadeiro príncipe deste mundo, quanto ao exercício atual do poder, era Satanás. Pilatos, lavando as mãos (vã esperança de se libertar da sua responsabilidade), entrega o inocente à vontade dos Seus inimigos, embora dizendo não achar n'Ele falta alguma. E entrega aos Judeus um homem culpado de uma sedição c de um homicídio, em lugar do Príncipe da vida (versos 26). Mas foi ainda por causa da Sua confissão, e por isso somente, que Ele foi condenado; confessou, perante o tribunal dos Gentios, a mesma coisa que tinha confessado no tribunal judaico, isto é, a verdade, fazendo boa confissão do que concernia à verdade quanto àqueles perante quem Se encontrava.

Barrabás (1) — expressão do espírito de Satanás, que foi homicida desde o princípio, e de rebelião contra a autoridade que Pilatos deveria manter—Barrabás era estimado pelos Judeus; e, com ele, a injusta indolência do governador, que era impotente contra o mal, procurou satisfazer a vontade do povo que deveria ter governado. «Todo o povo» se tornou culpado do sangue de Jesus; expressão solene, que se tem cumprido até aos nossos dias, esperando que a graça soberana, de conformidade com os planos de Deus, a retire — palavras solenes, mas terríveis: «O seu sangue caia sobre nós e sobre nossos filhos» (verso 25).

(1) Coisa estranha: Esta palavra significa «filho de Abba», isto é, do Pai, como se Satanás troçasse deles por meio desse nome.

Triste e terrível ignorância que a obstinação trouxe sobre um povo que rejeitou a Luz! Ah! Como cada qual, repito, toma o seu lugar na presença desta pedra angular—um Salvador rejeitado! O comum dos Gentios, os soldados, fazem-no com escárnio, com aquela brutalidade que lhes era habitual como pagãos e como carrascos; mas eles o faraó com alegria e adoração, quando Aquele de quem eles troçaram for verdadeiramente o Rei dos Judeus em glória.

Jesus suporta tudo. Era a hora da Sua perfeita submissão a todo o poder do mal: era preciso que a paciência tivesse a sua obra perfeita para que a sua obediência fosse completa em todo o sentido. Ele suportou tudo sem conforto, para não faltar em obediência a Seu Pai.

Que diferença entre este comportamento e o do primeiro Adão, rodeado de bênçãos! Cada qual, nesta hora solene em que tudo é posto à prova, tem de ser servo do pecado ou da tirania da impiedade.

Constrangem um certo Simão (conhecido mais tarde, ao que parece, entre os discípulos) a levar a Cruz de Jesus; e levam o Senhor ao lugar da Sua crucificação.

Uma vez ali, Ele recusa o que poderia entorpecer. Não quer evitar o cálice que devia beber, nem privar-Se das Suas faculdades para ser insensível ao que Deus queria que Ele sofresse - (versos 30-38). As profecias dos Salmos cumprem-se na Sua Pessoa por meio daqueles que nem sequer pensavam no que faziam. Ao mesmo tempo, os Judeus conseguiam assim chegar ao último grau de vileza.

O seu Rei é pregado na Cruz! Mas eles têm de sofrer o opróbrio, embora contra a sua vontade. Mas de quem é a culpa? ...

Endurecidos e insensíveis, os Judeus compartilham com um malfeitor a triste satisfação de insultarem o Filho de Deus, o seu Rei, o Messias, e isto para a sua própria ruína (versos 39-44), e citam — tão cega é a incredulidade! —as suas próprias Escrituras, como expressão do seu próprio pensamento, o que ú posto na boca dos incrédulos inimigos de Jeová. Jesus bem o sentiu; mas a angústia da Sua provação, na qual, no fim de contas, Ele era uma testemunha calma e fiel, o abismo dos Seus sofrimentos escondia algo de muito mais terrível que toda esta maldade ou este desprezo dos homens. As ondas levantaram, sem dúvida, a sua voz (1).

(1) Encontrares em Mateus, particularmente juntos, a desonra feita ao Senhor e os insultos que Lhe dirigiam; e em Marcos encontramos o abandono de Deus.

Uma após outra as ondas da iniquidade desfazem-se contra Ele; mas quem poderá sondar o abismo que sob elas O aguardava? O Seu coração, a Sua alma— vaso de um amor divino — somente eles podiam descer mais abaixo do que o fundo desse abismo aberto ao homem pelo pecado, a fim de tirar os que ali jaziam, depois de haver sofrido as suas dores na Sua própria alma. Um coração que sempre fora fiel, era desamparado de Deus. Aonde o pecado tinha levado o homem, o amor levou o Senhor, mas com uma natureza e compreensão em que não havia distância nem separação, de modo que o desamparo foi sentido em toda a sua plenitude. Ninguém mais senão Àquele que Se encontrava nessa posição podia sondá-lo ou senti-lo.

É também um espetáculo maravilhoso ver o único homem justo neste mundo declarar, no fim da sua vida, que era desamparado de Deus.

Mas era assim que Ele O glorificava, como ninguém tinha podido fazê-lo, e num lugar onde ninguém senão Ele o podia — feito pecado na presença de Deus, sem véu para o ocultar, sem misericórdia para o suportar.

Os pais, cheios de fé, tinham, nas suas aflições, feito a experiência da fidelidade de Deus, que respondia à esperança dos seus corações. Mas Jesus (no tocante à Sua alma nesse momento) clamava em vão. «Um verme, c não um homem» perante os olhos dos homens; Ele devia suportar o desamparo de Deus, em Quem confiava.

Tendo os seus pensamentos muito longe dos d'Ele, os que O rodeavam nem sequer compreendiam as Suas palavras, mas cumpriam as profecias pela sua ignorância. Jesus, dando testemunho, pela força da Sua voz, que não era o peso da morte que O oprimia, rende o espírito (versos 45-50).

A eficácia da Sua morte é apresentada neste Evangelho sob um duplo aspecto. Primeiro, o véu do templo foi rasgado de alto a baixo (verso 51). Deus, que sempre estivera oculto atrás do véu, mostrou-Se completamente por meio da morte de Jesus. A entrada no santuário é franqueada — caminho novo e vivo que Deus nos consagrou através do véu (Hebreus 10:19-20). Todo o sistema judaico, as relações do homem com Deus sob a preponderância desse sistema, o sacerdócio, tudo caía com o rasgão do véu.

Cada qual se achou na presença de Deus, sem o impedimento do véu.

Os sacerdotes deviam estar sempre na Sua presença. Mas, pelo mesmo ato, o pecado, que tornaria impossível a nossa presença ali, foi, para o crente, completamente tirado de diante de Deus. 0 Deus santo e o crente purificado dos seus pecados são postos em relação peia morte de Cristo. Que amor é este que realizará uma tal obra! Além de tudo o mais, era tal a eficácia da Sua morte que, quando a Sua ressurreição quebrou os laços que os prendiam, muitos mortos apareceram na cidade — testemunhas do poder d'Aquele que, havendo sofrido a morte, Se elevou acima dela e venceu e destruiu o seu poder e a tomou em Suas próprias mãos. A bênção estava agora na ressurreição. A presença de Deus sem véu, e a presença de pecadores purificados diante d'Ele provam a eficácia dos sofrimentos de Cristo.

A ressurreição dos mortos, sobre os quais o rei dos terrores já não tinha mais direito, mostrava a eficácia da morte de Cristo pelos pecadores, e o poder da Sua ressurreição.

O Judaísmo acabou e o poder da morte também para aqueles que têm fé. O véu foi rasgado, a sepultura restituiu a sua presa (versos 52-53); Ele c o Senhor dos mortos e dos vivos (1).

(1) A glória de Cristo, na Sua ascensão e como Senhor de todos, não se encontra, historicamente, no quadro de Mateus.

Resta ainda um testemunho particular do- poder omnipotente da morte de Jesus c do alcance desta palavra: «E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim» (ver João 12:32). O centurião que estava de guarda aquando da crucificação do- Senhor, vendo o terramoto e as coisas que tinham sucedido, cheio de temor, reconhece a glória da Pessoa do Salvador; e, embora estrangeiro para Israel, dá o primeiro testemunho de fé entre os Gentios: «Verdadeiramente este era Filho de Deus».

Mas a narrativa continua. Algumas pobres mulheres — a quem a devoção dá, muitas vezes, da parle de Deus, mais coragem do que aos homens, cuja posição é mais responsável e mais agitada — estavam perto da Cruz, vendo o que faziam Àquele que elas amavam (1) (versos 55-56).

(1) A parte que as mulheres tomam em toda esta história é muito instrutiva, especialmente para elas. A atividade do serviço público, o qual podemos chamar «a obra», pertence naturalmente aos homens, isto é, tudo o que diz respeito àquilo que, gerai mente, denominamos Ministério; embora as mulheres participem particularmente em preciosas atividades. Mas existo ura outro lugar na vida cristã que mais particularmente lhes diz respeito: é a pessoal e terna afeição a Cristo. Foi uma mulher que ungiu o Senhor, enquanto os discípulos murmuravam; eram mulheres que estavam ao pé da Cruz, enquanto todos, exceto João, O tinham abandonado; foram mulheres que foram ao sepulcro, e foram anunciar a verdade aos apóstolos, os quais tinham ido para suas casas; enfim, eram mulheres que proviam às necessidades do Senhor.

E, cm verdade, isto vai mais além. A dedicação ao serviço pertence talvez aos homens, mas o instinto de afeição, o qual penetra mais intimamente na posição de Cristo, e se encontra assim mais imediatamente em relação com os Seus sentimentos, numa comunhão mais íntima com os sofrimentos do Seu coração, essa ú a parte da mulher — e, seguramente, uma parte feliz.

A atividade do serviço para Cristo coloca o tomem um pouco fora dessa posição, sobretudo se ele não for vigilante. De resto, cada coisa tem o seu lugar. Falo do que é característico, porque há mulheres que têm servido muito, e homens que s3o muito impressionáveis. Note-se também, como penso ter dito Já, que esta afinidade do coração para com Jesus é o estado em que são recebidas as comunicações do verdadeiro conhecimento. O primeiro e pleno Evangelho á anunciado à pobre mulher pecadora, que lava os pés do Senhor; o ato de ungir o Senhor foi uma revelação dada a Maria para o dia do Seu sepultamento; a nossa mais alta posição foi comunicada a Maria de Magdala; a comunhão que Pedro desejava é anunciada a João, que reclinava a cabeça no seio de Jesus. E em todas estas comunicações as mulheres têm grande participação.

Mas essas mulheres não eram as únicas a substituir os apavorados discípulos. Outros (versos 57-60) — como tantas vezes acontece — que tinham estado na obscuridade, com medo do mundo, logo que as profundidades da sua afeição são agitadas pelos sofrimentos d'Aquele a quem realmente amam, no momento doloroso em que outros estão atemorizados, incitados pela rejeição de Cristo, acham que é chegado o momento para tomarem uma decisão e tornam-se destemidas testemunhas do Senhor. Associados até agora com os que tinham crucificado o Senhor, têm agora de aceitar esse ato ou declararem-se Seus seguidores. Pela graça tomam esta última decisão.

Deus tinha preparado tudo antecipadamente. O Seu Filho tinha de ter a Sua sepultura com os ricos. José vai ousadamente ter com Pilatos e pede o corpo de Jesus. Envolve o corpo, que Pilatos lhe manda dar, num fino c limpo lençol, e põe-No no seu próprio sepulcro novo, o qual nunca tinha servido para guardar a corrupção do homem.

Maria de Magdala e a outra Maria (1) — porque elas eram conhecidas — assentaram-se perto do sepulcro, ligadas por tudo o que restava para a sua fé d'Aquele que tinham amado e seguido com adoração durante a Sua vida (verso 61).

(1) Quer dizer, a mulher de Clopas e a mãe de Tiago e de José, a qual é muitas vezes designada por «a outra Maria». Em João 19:25, Maria, mulher de Clopas, tem sido tornada como uma aposição da irmã da mãe de Jesus, mas é um erro. Trata-se de outra pessoa. Havia quatro mulheres: Três Marias e a irmã da mãe de Jesus.

Mas a incredulidade não crê em si própria e, temendo que aquilo que nega seja verdade, descrê de tudo. Os principais sacerdotes (versos 62, 66) pedem a Pilatos que o sepulcro seja guardado, a fim de frustrarem toda a tentativa que os discípulos pudessem fazer para estabelecerem a doutrina da ressurreição sobre a falta do corpo de Jesus no sepulcro em que tinha sido posto. Pilatos manda que eles próprios guardem o sepulcro; de forma que tudo quanto eles fizeram foi tornarem-se a si próprios testemunhas involuntárias do fato, para nos assegurarem o cumprimento daquilo que eles temiam. Assim Israel era culpado desse esforço de inútil resistência ao testemunho que Jesus tinha dado da Sua própria ressurreição. Eles mesmos eram um testemunho contra si quanto à verdade.

As precauções que Pilatos talvez não tivesse tomado, os sacerdotes as tomaram até ao ponto máximo, de modo que todo o erro quanto ao fato da Sua ressurreição era impossível.

A ressurreição do Salvador é resumidamente apresentada em Mateus.

O objetivo ó ainda, após a ressurreição, ligar o ministério e o serviço de Jesus — transferido agora para os discípulos — com os pobres do rebanho, com o Remanescente de Israel. O Senhor reúne-se ainda na Galileia, onde os tinha constantemente ensinado e onde habitavam os desprezados do povo, longe do orgulho dos Judeus. Isto ligava o trabalho deles com o Seu, naquilo que o caracterizava particularmente em relação com o Remanescente de Israel.

Examinarei noutra passagem das Escrituras os pormenores da ressurreição.

Aqui, ocupar-me-ei somente do alcance deste acontecimento cm Mateus.