Estudo Sobre a Palavra de Deus – MATEUS - John Nelson Darby
Tradutor Martins do Vale
Editor Josué da Silva Matos 2019
INTRODUÇÃO AOS LIVROS DO NOVO TESTAMENTO
É com um certo receio que abordo a parte dos Estudos que se refere ao Novo Testamento, seja qual for a bênção que daí possa advir. A concentração e ao mesmo tempo o desenvolvimento da luz divina neste precioso dom de Deus; o imenso alcance das verdades que ele contém; a variedade infinita dos aspectos e das aplicações verdadeiras de uma só e mesma passagem, com todo o círculo das verdades divinas; de igual modo a importância imensa dessas verdades consideradas quer em si mesmas quer a respeito da glória de Deus, quer ainda em relação com as necessidades do homem; enfim, a maneira como elas revelam Deus e respondem a essas necessidades...; todas essas considerações, que eu não sei exprimir senão muito imperfeitamente, concorrem, no seu conjunto, para fazerem recuar lima pessoa humilde perante a pretensão de dar uma ideia verdadeira e (mesmo em princípio) adequada à intenção do Espírito Santo nos livros do Novo Testamento.
E quanto mais a própria verdade é revelada, mais a verdadeira luz resplandece; quanto mais o homem sente a sua incapacidade de dela falar, mais medo ele tem de obscurecer o que é perfeito... De igual modo, quanto mais pura é a verdade de que nos ocupamos (e aqui trata-se mesmo da Verdade!), mais difícil se nos torna o ocuparmonos dela para a expormos aos outros, sem de algum modo lhe alterarmos a pureza — porque essa alteração tornar-se-ia muito mais funesta. Meditando era tal ou tal passagem, poderemos, para proveito de outros, comunicar a medida da luz que nos é concedida; mas se alguém se propõe dar uma ideia do conjunto do Novo Testamento, toda a perfeição da própria Verdade e a universalidade da intenção de Deus na revelação que dela nos fez se apresentam ao seu espírito — e treme-se ao pensar o que sucederá se tentarmos dar dessa intenção uma ideia verdadeira e geral, e ela não for completa, o que, certamente, nenhum Cristão pretenderá fazer.
A interpretação do Antigo Testamento pode parecer a algumas pessoas mais difícil do que a do Novo Testamento, e pode acontecer que isso seja verdade em passagens isoladas; mas, embora os escritores do Antigo Testamento revelem os pensamentos de Deus, que Ele lhes tinha comunicado (e podemos admirar a sabedoria que se manifesta nessa parte das Escrituras), o próprio Deus fica sempre oculto atrás do véu. Podemos desconhecer o sentido de uma expressão, ou não o notar; perdemos algo, sem dúvida, porque foi Deus quem falou. Mas no Movo Testamento encontramos o próprio Deus, benigno, indulgente, humano.
Nos Evangelhos temos Deus sobre a Terra; Deus iluminando com luz divina as subsequentes comunicações do Espírito Santo. É o próprio Deus que Se manifesta. Porém, se nos dá deste modo, no Novo Testamento, mais luz para nos guiar e para O conhecermos a Ele próprio, é também muito mais grave interpretar mal essas comunicações vivas, ou disfarçar, com os nossos próprios pensamentos, o que é a Verdade. Porque é necessário recordarmo-nos de que Cristo é a Verdade. Ele é o Verbo; é Deus que nos fala, na Pessoa do Seu Filho, que, sendo um verdadeiro homem, manifesta também o Pai.
Pelo que respeita à própria exegese, a verdade, a luz, a vida eterna, encontram-se no que é revelado no Novo Testamento; e podemos considerar este sob tantos aspectos que a dificuldade prática se torna muito maior. Podemos, com efeito, considerar esta Verdade no seu valor intrínseco e essencial; podemos considerá-la como a manifestação da eterna natureza de Deus; podemos considerá-la na sua manifestação em vista da glória do Filho; podemos examinar também as suas relações e os seus contrastes com as comunicações parciais do Antigo Testamento, que ela completa e eclipsa pelo seu próprio brilho, com a dispensação do governo terrestre de Deus, o qual ela põe de lado, para introduzir o que é eterno e celeste. Enfim, podemos considerar esta verdade nas suas relações com o homem, porque «a vida era a luz dos homens», tendo Deus querido manifestar-Se e glorificar-Se no homem, fazer-Se conhecer por ele e estabelecê-lo como meio de ele próprio se revelar às suas outras criaturas inteligentes. Em cada passagem do Novo Testamento haveria também algo a dizer sobre todos esses diferentes aspectos, porque a Verdade é Uma, tal como está em Deus. Mas brilha sobre todas as coisas, mostrando delas o seu verdadeiro caráter.
Apesar de todas estas dificuldades, duas coisas, no entanto, me tranquilizam: Temos de nos haver com um Deus de bondade perfeita, que nos deu essas maravilhosas comunicações, para que delas aproveitemos; em segundo lugar, embora a fonte da Verdade seja infinita e perfeita, embora essas revelações decorram da plenitude da Verdade de Deus, e que a sua comunicação seja perfeita, conforme a perfeição de Aquele que no-la deu, esta comunicação é feita por meio de diversos instrumentos, em si mesmos de capacidade limitada, empregados por Deus para dela comunicarem esta ou aquela porção.
Todavia, esta água viva e pura não foi, de modo algum, alterada; mas, em cada comunicação, tem sido limitada pela intenção de Deus no instrumento empregado por Ele para a distribuir, estando inteiramente em relação com o conjunto, segundo a perfeita sabedoria de Quem comunicou toda a verdade. O canal não é infinito; a água que nele corre é infinita, mas não o é na sua comunicação. Eles profetizaram em parte, e nós conhecemos também em parte.
O aspecto e a aplicação da verdade tem mesmo um caráter particular, segundo o vaso por onde Deus a comunicou.
A água viva está ali, na sua perfeita pureza; jorra da fonte tal como se encontra lá. A fonte, através da qual ela é produzida diante dos homens, tem a forma da sabedoria de Quem a fez para ser Seu instrumento, para tal efeito. O Espírito Santo atua no homem, vaso expressamente preparado para esse fim, vaso que Deus tinha criado, formado, aperfeiçoado, adaptado moral e intelectualmente para este ou aquele serviço acerca da Verdade; e Deus atua nesse vaso segundo o fim para que o tinha preparado.
Cristo era — e Ê a Verdade. Os outros têm-na comunicado, cada um segundo o que lhe foi dado; o esta comunicação tem sido em relação com os elementos com os quais Deus os tinha posto respectivamente em relação pela inteligência e pelo coração, c segundo o fim para o qual o Espírito Santo os tinha preparado.
Deixando, pois, os meus receios, lanço-me confiante ao cumprimento deste serviço, de coração apoiado na perfeita bondade de Deus, que gosta de nos abençoar. Possa o justo sentimento da minha responsabilidade guardar-me de avançar em algo que não seja segundo Deus; e que o próprio Senhor, na Sua graça, Se digne dirigir-me e conceder-me tudo aquilo que possa constituir uma bênção para o leitor.
O Novo Testamento tem um caráter evidentemente muito diferente do Antigo, e o que atrás disse a tal respeito forma o essencial dessa diferença. O Novo Testamento trata da revelação do próprio Deus e manifesta o Homem levado, cm Justiça, à glória e à presença de Deus.
Anteriormente, Deus tinha feito promessas e tinha executado julgamentos.
Tinha governado um povo sobre a Terra; tinha atuado no que concerne às nações, tendo em vista esse povo como centro dos Seus planos para a Terra. Tinha-lhe dado a Sua lei, tinha-lhe concedido, por intermédio dos profetas, uma luz crescente, anunciando como sempre mais próxima a chegada d'Aquele que deveria dizer-lhe tudo da parte de Deus. Mas a presença do próprio Deus, Homem no meio dos homens, tudo mudou: Ou o homem receberia, como coroa de bênção e de glória, Aquele cuja presença devia banir todo o mal, desenvolver c conduzir à perfeição todo o elemento de bem, dando ao mesmo tempo um objeto que seria o centro de todos os afetos tornados perfeitamente felizes pelo gozo desse objeto; ou então, rejeitando esse Cristo, a nossa pobre natureza devia mostrar-se o que na realidade é inimizade contra Deus, e tornada evidente a necessidade de uma ordem de coisas completamente nova, onde a felicidade do homem e a glória de Deus seriam fundadas sobre uma nova Criação.
Sabemos o que aconteceu: Aquele que era a imagem do Deus invisível teve de dizer, após o exercício de uma longa e perfeita paciência: «Pai justo, o mundo não te conheceu», e mais ainda, infelizmente: «Eles têm odiado, tanto a mim como a meu Pai» (João 17:25; 15:24).
Todavia, esse estado do homem não tem, de modo nenhum, impedido Deus de realizar os Seus pianos; pelo contrário, esse miserável estado proporcionou-Lhe a ocasião de o fazer. Deus não quis rejeitar o homem até ao momento em que o homem O tivesse rejeitado a Ele — (tal como no jardim do Éden, o homem, consciente do seu pecado, não podendo suportar a presença de Deus, escondeu-se ou afastou-se d'Ele, antes de Ele o ter expulso do jardim). Mas quando o homem, por seu lado, repeliu inteiramente a Deus, a Deus que, em bondade, viera ao meio da sua miséria espiritual e moral, Deus ficou livre — permitisse-nos a expressão, porque ela é moralmente certa — Deus ficou livre para prosseguir os Seus eternos desígnios.
No entanto Deus não executa o julgamento, como no Éden, quando o homem se afastara d'Ele; agora é a graça soberana que, quando o homem está manifestamente perdido e se declarou inimigo de Deus, prossegue a Sua obra para fazer resplandecer a Sua glória aos olhos do universo na salvação dos pobres pecadores que O tinham rejeitado(1).
(1) Ver Tt1:2; 2 Timóteo 1:9-10; comparar Provérbios 8:22-31, sobretudo 30 e 31; Romanos 16:25-26 (ler: escritos proféticos). Sob a lei, Deus não saía nunca do santuário, e o homem não podia entrar ali. No Cristianismo, Deus saiu — e o homem entrou! Isto pertence à essência de cada uma dessas duas dispensações. Anteriormente havia promessas. São relações características.
Mas, para que a perfeita sabedoria de Deus se manifestasse mesmo nos mais ínfimos detalhes, essa obra de graça soberana, na qual o próprio Deus Se revelava, deve ser vista como tendo uma justa relação com todos os planos de Deus anteriormente revelados no Antigo Testamento, deixando também todo o Seu lugar ao Seu governo do mundo.
Tudo isso demonstra que, fora da grande ideia que tudo domina, há neste maravilhoso Livro quatro assuntas que se desenrolam aos olhos da fé. Em primeiro lugar o grande tema, o fato por excelência, é que a perfeita luz é manifestada: É o próprio Deus que Se revela. Mas esta luz é manifestada em amor—outro nome essencial de Deus. Cristo, que é a manifestação dessa luz e desse amor, que, se tivesse sido recebido, teria constituído o cumprimento de todas as promessas, Cristo é apresentado ao homem e em particular a Israel considerado sob o ponto de vista da sua responsabilidade; Cristo é apresentado a Israel com todas as provas pessoais, morais e de poder que deixaram esse povo sem desculpa. Em segundo lugar, sendo rejeitado, a Sua rejeição torna-se o meio pelo qual a salvação se concretiza; e a nova ordem de coisas — a nova Criação, o Homem glorificado, a Igreja participando com Cristo da glória celeste é colocada sob os nossos olhos.
Em seguida são manifestadas as relações entre a antiga ordem de coisas e a nova ordem sobre a Terra acerca da lei, das promessas, das profecias ou das instituições divinas; são-no, quer apresentando a nova ordem como seu cumprimento e posto de lado o que era velho, quer verificando o contraste que existe entre a antiga e a nova ordem, quer ainda demonstrando a perfeita sabedoria de Deus em todos os pormenores dos Seus caminhos. Finalmente o governo do mundo por Deus é profeticamente posto em evidência; e a renovação das relações de Deus com Israel, em julgamento ou em bênção, é rápida, mas claramente verificada, por ocasião da suspensão dessas relações devido à rejeição do Messias.
Podemos acrescentar que tudo o que é necessário ao homem, peregrino sobre a Terra até que Deus cumpra os desígnios da Sua graça em poder, lhe é abundantemente fornecido. Saído, pela chamada de Deus, do que é rejeitado ou condenado, e não estando ainda de posse da porção que Deus lhe tem preparado, o homem, que obedeceu a essa chamada, tem necessidade de uma direção e do que lhe revela a origem da força necessária para marchar para o alvo da sua vocação e os meios para se apropriar dessa força. Deus, chamando-o para seguir o seu Mestre, que o mundo rejeitou, não o deixou sem lhe proporcionar toda a luz e todas as direções próprias para o iluminarem e encorajarem no seu caminho, nem sem lhe indicar as fontes da força e o meio de dela se prover. Todo o estudioso das Sagradas Escrituras sabe bem que estes assuntos não são tratados metodicamente, nem cada um em separado, no Novo Testamento. Se assim fosse, a sua compreensão tornar-se-ia muito mais difícil. É em vida e em poder, quer de Cristo, quer do Espírito Santo, nos autores inspirados, que eles se desenrolam perante os nossos corações.
Os Evangelhos, de um modo geral, apresentam-nos Cristo como sendo luz e graça; não, porém; sob a forma de doutrina, mas sim como sendo o próprio Deus apresentado aos homens neste mundo, como sendo Aquele em quem se cumpriam as promessas feitas a Israel; abertamente, como sendo uma Pessoa divina, na qual os desígnios do Pai se cumpririam, sendo os Judeus considerados como reprovados no seu estado espiritual de então. O Apocalipse mostra, a introdução do governo de Deus neste mundo em relação com a responsabilidade sob a qual as suas relações com um Deus revelado o colocaram. Os escritos de Paulo apresentam enfim a aceitação do homem por Deus e o seu lugar diante d'Ele pela redenção, a nova Criação e a Igreja segundo os planos de Deus — o mistério de Deus. Todavia, por toda a parte, nas Epístolas, se encontram diversos assuntos em relação com estes, e cada desenvolvimento isolado de um desses temas faz jorrar abundante luz sobre todos os outros. A isto podemos acrescentar que os escritos de João tratam particularmente da manifestação de Deus e da vida divina em Cristo e no Homem vivificado, correspondendo, como devem, um ao outro; os escritos de Pedro tratam da peregrinação do Cristão, fundada na ressurreição de Cristo, e do governo moral do mundo. Mas, repito, quer na Pessoa de Cristo, quer nas comunicações do Espírito Santo (sendo a vida de Cristo, de uma maneira ou de outra, a luz dos homens), a verdade é posta em evidencia pela manifestação viva de Deus e pela sua aplicação viva aos homens, estando também em relação com o desenvolvimento (1) progressivo inerente à verdade, quando for comunicada ao homem e adaptada às necessidades particulares e à capacidade espiritual daqueles a quem era dirigida.
(1) Falo aqui, bem entendido, da verdade revelada no Novo Testamento, A comunicação feita nesta revelação tem sido de cada vez mais clara, tendo o Espírito Santo sido dado depois de o Senhor ter sido glorificado. O apóstolo pôde dizer. Talando da natureza do próprio Deus; «O que é verdadeiro nele (Cristo) e em vós, porque as trevas se desvanecem e a verdadeira luz já brilha».
É um Cristo que é a sabedoria de Deus. Nele habita corporalmente toda a plenitude da Divindade. Toda a plenitude se agradou de habitar n'Ele. Santificou-Se a Si mesmo, para que nós sejamos santificados pela verdade. O Espírito Santo conduziu os apóstolos em toda a verdade, tendo recebido do que era de Cristo e tendo-lhe comunicado. Ora, tudo o que o Pai tem ó de Cristo; foi por isso que Ele disse que o Espírito Santo tomaria, do que era d'Ele e lhe anunciaria.
Era assim, e a questão de um desenvolvimento subsequente já está julgada.
Haverá algo mais do que «a plenitude da divindade?», ou do que «tudo O que o Pai tem?», algo de mais claro do que a «verdadeira luz?». Ora, é isto o que nos é revelado. Se pensarmos no homem, cujas ideias provem dele mesmo, como a aranha tira o seu fio da sua própria substância, poderemos, sem dúvida, falar de desenvolvimento; ruas se se tratar da revelação de Cristo, pelo dom da luz que já veio, Cristo não cresce! E, certamente, não encontraremos nada de bom fora de «tudo o que o Pai Lhe deu». Eis, pois, o que nós possuímos, por revelação: O desenvolvimento inerente à comunicação da verdade ao homem concernente à sua capacidade de recepção (nisso há progresso para cada um de nós) e à manifestação de Cristo, desde João Batista até à Sua plena revelação pelo Espírito Santo, revelação que nos é feita no Novo Testamento.
Nenhuma tradição pode acrescentar o que quer que seja à revelação do que Cristo é. Nenhum desenvolvimento nos pode dar uma única verdade nova acerca da plenitude de Cristo. E é assim que as orgulhosas pretensões do homem são aniquiladas.
Sem dúvida, as comunicações do Novo Testamento são para os santos de todos os tempos e em todos os lugares, mas foram dirigidas, historicamente falando, a homens vivos e postos em relação com o seu estado espiritual. Esta circunstância de modo nenhum enfraquece a verdade que é comunicada, e que c de Deus. É isto o que o apóstolo Paulo exprime, ao dizer: «Nós não somos, como muitos, falsificadores da Palavra de Deus; antes, falamos de Cristo com sinceridade, como de Deus, na presença de Deus» (2 Coríntios 2:17); e ainda: «Não falsificando a Palavra de Deus; e, assim, nos recomendamos à consciência de todo o homem, na presença do «Deus, pela manifestação da verdade» (2 Coríntios 4:2). Paulo nada acrescenta a este vinho puro, não o falsifica. O que lhe foi dado sai dele puro, tal como o recebeu (1).
(1) O relato de 1 Coríntios 2 é muito impressionante a este respeito, e é da maior importância para os nossos dias. As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que O amam». (É o estado que se encontra o Antigo Testamento). «Mas Deus no-las revelou pelo Seu Espírito» — é a revelação. «Coisas... das quais também falamos, não com palavras de sabedoria humana, mas com as que o Espírito Santo ensina» — é a comunicação a inspiração. Em terceiro lugar: «Elas se discernem espiritualmente» — recepção. A revelação, o testemunhe? inspirado e a sua aceitação só pela graça e. pelo poder do Espírito, tudo c claramente relatado.
Mas, dirigida aos homens, a Palavra de Deus tem mesmo muito mais realidade do que unia simples verdade abstrata; é mais imediatamente de Deus. Não são ideias do homem a respeito de Deus, nem raciocínios do espírito do homem, ainda que a verdade fosse o seu tema; nem sequer é a verdade, tal como está em Deus, submetida, de um modo abstrato, à capacidade do homem, para que ele a julgue. É Deus, o próprio Deus que se dirige ao homem, que lhe fala, lhe comunica os Seus pensamentos, como sendo mesmo Seus. Porque, se o homem deve julgá-los, não são as palavras de Deus como tais anunciadas. «Vós a recebestes— diz Paulo — não como palavra de homens, mas (conforme é, na verdade) como Palavra de Deus» (1 Tessalonicenses 2:13).
Tem-se confundido muitas vezes o eleito produzido no homem, o efeito que lhe faz reconhecer a verdade e a autoridade da Palavra, com um julgamento trazido pelo homem sobre esta Palavra, como sobre uma matéria que lhe fosse submissa. A Palavra de Deus não pode nunca ser assim apresentada. Seria negar a sua própria natureza; seria o mesmo que dizer: «Não é Deus quem fala». E Deus poderia negarSe a Si próprio, dizendo que Ele não é Deus? "É evidente que não. E se não pode negar-Se a Si próprio, também não pode falar e admitir depois que a Sua Palavra não tem autoridade própria.
A Palavra de Deus é adaptada à natureza do homem: «Á vida é a luz dos homens». É justamente das coisas que produzem um efeito segundo a natureza de um objeto ao qual elas são aplicadas, sem que sejam julgadas por esse objeto. É o que se dá em toda a reação química; administram-me um remédio; sinto o seu efeito segundo a minha natureza. Desse modo fico convencido quer do efeito quer do poder do remédio, sem que tenha de emitir parecer sobre o próprio remédio, como se, para tanto, eu estivesse habilitado. Dá-se precisamente o mesmo, por graça, sobre a revelação de Cristo, exceto nisto: a maldade voluntária do homem repele essa revelação e rejeitaa, de sorte que ela se toma um odor de morte para morte.
A Palavra de Deus nunca é julgada; quando ela produz o seu efeito, julga os pensamentos e as intenções do coração (Hebreus 4:12). O homem está-lhe submetido; não a julga.
Quando o homem tem, por graça, recebido a Palavra de Verdade que, como tal, se dirige a ele, está em condições de compreender todo o alcance desta Palavra, com o auxílio do Espírito Santo; e, neste caso, as circunstâncias das pessoas às quais a Palavra tem sido historicamente dirigida, tornam-se um meio para compreender a intenção do pensamento de Deus na parte da Palavra agora em questão. Essas circunstâncias, como temos visto, não mudam nada à divina pureza da Palavra; mas, uma vez que Deus se dirige aos homens, segundo o estaco espiritual deles, este «estado, tal como nos é apresentado na própria Palavra, facilita-nos em alto grau a compreensão do que nos é dito. Mesmo este estado não pode ser compreendido senão pela Palavra e com o auxílio do Espírito Santo (quer como efeito da maldade do coração do homem, quer como dependendo em parte das dispensações de Deus).
De qualquer modo, a graça dirige-se aos homens segundo o estado espiritual deles (1), segundo a fidelidade de Deus às Suas promessas, e em relação com os Seus caminhos, que Ele já lhes ensinou.
(1) É Deus vindo em graça ao meio do mal, graça apropriada ao homem nesse mal. Ela revela Deus como nada mais o pode fazer» mas é apropriada ao homem, por muito mau que ele seja. Assim, dando o que é puramente celeste e digno, ela o faz enfrentando o mal neste mundo. Este fato, embora revelando Deus tal como será conhecido no Céu, quanto à sua operação, desconhecido num paraíso terrestre ou celeste — o "bem no meio do mal! Os anjos desejam vê-lo de perto. Por outro lado, é a soberania, a graça, a sabedoria, o que o simples bem não pode ser embora a isso conduza na sua mais elevada forma.
Não é que, tendo chegado a verdadeira luz, esta luz seja agora deturpada ou depreciada para a adaptar às trevas; se assim fosse, já não seria ela mesma, e nem seria própria para relevar o homem, libertando do estado em que ele se encontrava; mas a verdadeira luz é comunicada de maneira a ficar ao alcance dos homens e aplicável ao seu estado ao mesmo tempo, aquilo de que eles tinham necessidade e o que era digno de Deus. Mas também só Deus o podia fazer. Tudo isto é igualmente verdadeiro, como sendo aplicável aos temas de que o Senhor trata e àqueles de que o Espírito Santo fala por intermédio dos Seus apóstolos. O Senhor pode dirigir-Se aos Judeus convertidos, mas presos ainda ao sistema judaico, para fazer evidenciar as intenções de Deus (sempre fiei às Suas promessas) a respeito desse povo, como também, sendo elevado ao Alto, pode comunicar, pelo Seu Espírito, todas as consequências da união da Igreja com Ele nos lugares celestes, fora de todos os planos de Deus para a Terra. Cristo pode mostrar às almas que se alimentam dos elementos mundanos, contrários a essa elevação celeste e que não apreendem nela o que os livra da sua tendência mundana e carnal, as provas do mal cm que caíram. Pode mostrar-lhes esse mal por meios que põem essas almas em relação com as verdades eternas de Deus de uma maneira que, embora elementar, julga a disposição carnal que sempre existiu naqueles que não se elevam à altura das intenções de Deus. O Espírito Santo também pode mostrar a verdade mais simplesmente na elevação que é própria a essa verdade. Pode apoiar-Se nos caracteres essenciais da natureza de Deus para julgar tudo o que, sob as normas mais plausíveis, aspirava à luz cristã, mas que pecava contra esta natureza nas coisas mais simples; pode assim ligar as almas mais simples e menos avançadas às qualidades mais elevadas do próprio Deus, na essência da Sua natureza.
A compreensão da posição das pessoas a quem os escritos são dirigidos, compreensão extraída dos próprios escritos, ajuda muito, sob a direção do Espírito Santo, a apreender a verdade divina que ali se encontra; verdade absoluta, mas, pela graça de Deus, verdade aplicada, verdade prática, realizada na alma pelo poder de Deus agindo nessa mesma alma, e protegendo-a, por intermédio dessa verdade, da tendência carnal do coração que a levara a cair nos excessos que deram lugar aos escritos que dela nos falam. Esta verdade desce até nós, seja qual for o nosso estado espiritual, não se alterando para se acomodai a nós, nem revestindo uma forma que dependa do nosso estado, embora dele se apropriando, mas sim para nos elevar até à fonte de onde ela desceu e da qual nunca se separará (porque a verdade que nos é comunicada é sempre a verdade em Deus e em Cristo, a fim de nos elevar moralmente até à altura da natureza divina, «...que é verdadeiro nele e em vós; porque vão passando as trevas, e já a verdadeira luz alumia» ( 1 João 2:8). É o efeito da intervenção de Cristo a quem nós estamos unidos pelo Espírito Santo, que é UM com Deus, o Pai.
A mesma verdade da adaptação das comunicações de Deus à posição daqueles que as receberam historicamente cos introduz na compreensão de Lodos os planos de Deus, porque Ele Se revela na Sua autoridade, na Sua sabedoria e na Sua soberania, nos Seus planos, como Se faz conhecer na Sua natureza pela revelação de Si mesmo em Cristo.
Cristo é o centro desses desígnios, mas toda a família, nos céus e na Terra, se submete ao Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Anjos, principados, potestades, Judeus, Gentios, tudo o que se nomeia, todos serão colocados sob a Sua autoridade (estando a Igreja unida a Ele, na glória). Ora, os planos de Deus a nosso respeito são-nos revelados na Sua Palavra; e, embora Deus nos não fale para satisfazer a nossa curiosidade, há muitos assuntos, fora da salvação propriamente dita, que se prendem u essa supremacia de Cristo, e também àquilo que Deus nos apresenta como desenvolvimento dos Seus planos neste mundo para nossa própria instrução.
Assim, embora as intenções de Deus acerca dos Judeus sejam naturalmente muito mais desenvolvidas no Antigo Testamento, as relações da sua História com os temas do Novo Testamento, a transição histórica da antiga dispensação para a nova, a conciliação das promessas feitas aos Judeus com a universalidade da dispensação evangélica, todos esses temas devem necessariamente encontrar um lugar no Novo Testamento, uma vez que os planos de Deus deviam ser-nos revelados. Digo os pianos de Deus, porque não pensamos somente nos Judeus; é Deus quem atua nos Seus planos e quem ali Se faz conhecer. Assim, embora a plena luz se revele no Novo Testamento, nele encontramos algo dirigido aos Judeus e aos discípulos que tinham feito parte desse povo, algo que revela os planos de Deus a respeito deles. Sem essas revelações, e se elas se não referissem à posição espiritual desse povo, não haveria harmonia nos planos de Deus, ou, pelo menos, essa harmonia ser-nos-ia desconhecida e não existiria moralmente. Estas observações têm relação com a doutrina, a história (quer dizer, com a apresentação do Messias), com a profecia, mostrando a fidelidade de Deus, e com os julgamentos sobre esse povo.
Para que nós conheçamos a Deus — o Deus que Se dignou intervir nos assuntos deste mundo — a simples luz não basta. É necessário conhecer esse Deus não só tal como Ele é na Sua natureza, embora isso seja o essencial e principal, mas também tal como Ele próprio se revelou em todos os Seus caminhos, em todos os Seus pormenores nos quais os nossos corações, pequenos e estreitos, podem aprender a conhecer o Seu amor fiel, paciente, condescendente, nos Seus caminhos onde se desenvolve a ideia abstrata da Sua sabedoria, de maneira a torná-la acessível à nossa limitada inteligência, que pode encontrar essa sabedoria em coisas que tiveram lugar no meio dos homens, estando inteiramente fora e acima de todas as suas previsões, mas anunciadas por Deus, de modo que nós as conhecêssemos.
Acima de tudo verificamos que Deus quis ligar-Se ao homem de modo muito particular em todas essas coisas.
Que maravilhoso privilégio da Sua fraca criatura! ... A Filosofia— insensata, limitada e mesmo essencialmente estúpida em todos os seus raciocínios — pretende que o mundo é demasiado pequeno para que Deus se interesse por uma tão fraca criatura como o homem, por algo que não é mais do que um ponto na imensidão do universo. Que triste loucura! como se a extensão material do teatro fosse a medida das manifestações morais que ali se operam e dos combates de princípios que ali se travam. O que se passa neste mundo é o espetáculo que manifesta aos olhos de todas as inteligências do universo os caminhos, o caráter e a vontade de Deus. Cabe-nos a nós receber, por graça, o conhecimento e o poder para dele gozarmos, a fim de que Deus seja glorificado em nós; que Ele seja glorificado não somente por nós — o que, do qualquer modo, será verdadeiro — mas cm nós. Este é o nosso privilégio, pela graça que está em Cristo, e para nossa união com Ele, que é a sabedoria e o poder de Deus. Quanto mais criancinhas obedientes e humildes nós formos, mais realizamos essa gloriosa posição. E um dia conheceremos como temos sido conhecidos! ... No entanto, quanto mais Cristo for objetivamente a nossa porção e a nossa ocupação, mais nós nos assemelharemos a Ele subjetivamente. Graças a Deus, o Senhor tem escondido estas coisas aos sábios e aos inteligentes e tem-nas revelado às criancinhas! ... «Todavia — diz o apóstolo —falamos sabedoria entre os perfeitos; não, porém, a sabedoria deste mundo, nem dos príncipes deste mundo, que se aniquilam; mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou, antes dos séculos, para nossa glória» (l Coríntios 2:6-7).
Antes de nos ocuparmos de cada um dos livros em particular, vamos apresentar em primeiro lugar uma ideia geral do conteúdo do Novo Testamento, ou antes, da ordem da revelação das verdades nele contidas.
Para tanto, não temos necessidade de sair da ordem habitual dos livros, sem, no entanto, lhe ligarmos importância (1).
O primeiro assunto que se apresenta é a história e a Pessoa do próprio Senhor Jesus, assunto contido nos quatro Evangelhos.
Depois, vem o estabelecimento da Igreja e a propagação do Evangelho no mundo, após a ascensão do Senhor Jesus.
Esta história é-nos relatada nos Atos dos Apóstolos.
Em seguida temos o desenvolvimento da verdadeira doutrina de Cristo, os cuidados dos apóstolos pelas igrejas e pelas almas individualmente, com as necessárias indicações para um comportamento que glorifique o Senhor, esperando o Seu regresso; a refutação dos erros pelos quais o Inimigo procurava corromper a fé, e as instruções indispensáveis para defender os fiéis das seduções dos instrumentos da sua malícia. Estes assuntos, especialmente o primeiro, encerram ioda a glória pessoal do Senhor. Falamos, como ó evidente, do conteúdo das Epístolas.
(1) Nas Bíblias alemãs, tal como em várias edições católicas e cm muitos manuscritos, a ordem é diferente. Mas, para o fim que me propus atingir, essa diferença não tem nenhuma importância. Toda a gente sabe que está ordenação dos Livros não tem nada a ver com a revelação em si.
Em último lugar, encontramos as profecias. Elas verificam o mal que devia obscurecer e alterar o testemunho prestado a Cristo no mundo, mas que, quando estivesse plenamente desenvolvido, ocasionaria o julgamento. As profecias revelam-nos também o progresso dos julgamentos de Deus, que acabarão pela destruição dos inimigos que ousarem pôr-se em rebelião aberta contra o Cordeiro, Rei dos reis e Senhor dos senhores. Revelam-nos de igual modo a glória e a benção que terão lugar a seguir aos julgamentos.
Este último assunto liga o ensinamento cristão à revelação dos caminhos de Deus a respeito do governo do mundo. Encontra-se longamente desenvolvido em Apocalipse, mas as suas relações com a decadência da Igreja são expostas em diversas Epístolas.
Em primeiro lugar ocupar-nos-emos naturalmente dos Evangelhos, que nos contam a história da vida do Senhor e O apresentam aos nossos corações, quer pelos Seus atos, quer pelos Seus discursos, nos diversos caracteres que O tornam, sob todos os aspectos, precioso às almas dos remidos, segundo a medida do conhecimento que lhes é concedido e segundo as suas necessidades—caracteres que, embora o Senhor seja visto aqui na Sua humilhação (1), formam, no seu conjunto, a plenitude da Sua glória pessoal, tanto quanto nós somos capazes de a compreender, enquanto estamos nestes vasos de argila neste mundo (2)! (1) Comparar 1:5Coríntios 2:8.
(2) Talvez, para ser mais explícito, devesse excetuar as relações de Cristo com a Igreja — assunto este que se encontra tratado nas Epístolas; mas não abrangeria esta parte tão preciosa da doutrina de Cristo na expressão: «A Sua glória pessoal». Excetuando o fato de que Ele edificaria uma Igreja na Terra, é somente pelo Espírito Santo, enviado após a Sua ascensão, que Elo deu aos apóstolos e aos profetas a revelação deste inefável ministério.
O Senhor — isto é evidente — tinha de reunir em Si mesmo sobre a Terra, segundo os planos de Deus e segundo as revelações da Sua 'Palavra, mais de lima natureza para o cumprimento da Sua glória e para a manutenção e manifestação da de Seu Pai, Mas, para que isso pudesse ter lugar, Ele tinha de ser também alguma coisa, para que fosse visto na luz da Sua verdadeira natureza, como andando neste mundo. Cristo teve de cumprir o serviço que Lhe pertencia prestar a Deus, como sendo Ele próprio o verdadeiro servo; e isto como servindo a Deus pela Palavra no meio do Seu povo, segundo o Salmo 40 (por exemplo, versos 8,9,10); Isaías 49:4-5, e outras passagens.
Um grande número de testemunhos tinham anunciado que o filho de Davi se assentaria, da parte de Deus, no trono de seu pai; e o cumprimento dos planos de Deus a respeito do Seu povo terrestre ligase, no Antigo Testamento, Àquele que devia vir e que, na Terra, teria a relação do Filho de Deus com o Eterno -Deus. O Cristo, o Messias, ou, em simples tradução, o Ungido, devia aparecer e apresentar-Se-á Israel segundo a revelação e os planos de Deus. É essa semente prometida devia chamar-Se Emanuel, ou seja: Deus conosco, Deus com o Seu povo.
Os Judeus limitavam a sua espera pouco mais ou menos a esse caráter de Cristo, e mesmo isso à sua maneira, não vendo ali senão a elevação da sua nação, sem terem o sentimento dos seus pecados nem das suas consequências. No entanto esse caráter de Cristo não era tudo o que a palavra profética, que tinha declarado os planos de Deus, anunciava a respeito d'Aquele que o próprio mundo esperava.
Cristo era o Filho do homem—título que o Senhor Jesus gostava de usar — título de suma importância para nós.
O Filho do homem é, parece-me, segundo a Palavra de Deus, o herdeiro de tudo o que os planos de Deus destinavam ao homem como sendo a sua porção em glória, o herdeiro de tudo o que Deus devia dar ao homem, segundo esses planos. (Ver dn 7:13-14; Salmo 8:5-6; Salmos 80:17, e Provérbios 8:30-31). Mas, para ser herdeiro de tudo o que Deus destinava ao homem. Cristo devia ser homem. O Filho do homem era, verdadeiramente, da raça humana — que preciosa e consoladora verdade —nascido de uma mulher, real e verdadeiramente um homem, e, participando do sangue e da carne, fora feito semelhante aos Seus irmãos! ...
Nesse caráter, Ele teve de sofrer e ser rejeitado, para que pudesse herdar todas as coisas num estado completamente novo, ressuscitado e glorificado. Teve de morrer e ressuscitar, porque a herança estava maculada, o homem em rebelião e os Seus coerdeiros tão culpados como os outros.
Jesus devia, pois, ser o grande profeta, embora servo, o Filho de Davi e o Filho do homem; e, por conseguinte, realmente homem sobre a Terra, nascido sob a lei, nascido de uma mulher, da posteridade de Davi, herdeiro dos direitos da família de Davi, herdeiro dos destinos do homem segundo a intenção e os planos de Deus. Mas, relativamente a isso, Ele teve de glorificar a Deus, segundo o estado espiritual em que o homem se encontrava como caído quanto à sua responsabilidade, e satisfazer a essa responsabilidade de maneira a glorificar a Deus, mas prestando, enquanto estava neste mundo, o testemunho de um profeta, Ele, a fiel testemunha.
Mas quem é que reuniria todos esses caracteres? Essa glória era somente uma glória oficial, de que o Antigo Testamento tinha dito que um homem devia herdar? O estado do homem, manifestado sob a lei e sem lei, demonstrava a impossibilidade de o fazer participar, tal como estava, da bênção de Deus. A rejeição de Cristo levava ao máximo essas provas. E, com efeito, o homem tinha, acima de tudo, necessidade de ser ele próprio reconciliado com Deus, fora de toda a dispensação e do governo especial de um povo sobre a Terra. O homem tinha pecado; era necessário que uma redenção se realizasse para glória de Deus e salvação dos homens. Mas quem a levaria a cabo? O homem tinha necessidade dela para si próprio; um anjo devia guardar o seu lugar para si, preenchê-lo, mas nada mais podia fazer.
Não podia ser um salvador. E quem, de entre os homens, podia ser herdeiro de todas as coisas, e ter todas as obras de Deus colocadas sob o seu domínio, segundo as Escrituras? Era o Filho de Deus quem devia herdá-las; era o seu Criador quem devia possuí-las. Aquele pois, que devia ser o Servo, o Filho de Davi, o Filho do homem, o Redentor, era o Filho de Deus, o Deus Criador (1).
(1) O ato da Criação, quando não é atribuído a Deus em geral, distinguindo as Pessoas da Divindade, é sempre atribuído ao Filho ou ao Espírito Santo.
Os Evangelhos, em geral, desenvolvem esses caracteres de Cristo, não de uma forma dogmática (tendo apenas o de João essa forma, e só até um certo ponto), mas contando a história do Senhor, de maneira a apresentá-Lo nesses diversos caracteres de um modo muito mais vivo do que seria se nos tivessem sido comunicados apenas sob a forma de doutrina. O Senhor fala segundo este ou aquele caráter, atua segundo um ou outro, de sorte que nós O vemos, a Ele próprio, cumprindo o que pertencia às diversas posições que nós, pelas Escrituras, sabemos serem Suas. Não só o caráter de Cristo se torna assim muito mais conhecido nos seus detalhes morais e no seu verdadeiro alcance escriturístico, segundo o sentido e a intenção de Deus que ali se revelam, mas também o próprio Cristo Se toma, nesses caracteres, mais pessoalmente o objeto da fé e das afeições do coração. É uma pessoa que nós conhecemos, e não somente uma doutrina.
Por esse precioso meio que Deus Se dignou empregar, as verdades a respeito de Jesus estão igualmente muito mais ligadas com tudo o que O precedeu—com a história do Antigo Testamento. A mudança nos caminhos de Deus liga-se à gloria da Pessoa de Cristo, e é em relação com esta glória que a transição das relações de Deus com Israel e com o mundo à ordem celeste e cristã teve lugar. Este sistema celeste, embora tendo um caráter muito mais distinto do Judaísmo do que teria se o Senhor não tivesse vindo, não é uma doutrina que, contradizendoo, anule tudo o que o tinha precedido. Cristo, vindo, apresentou-Se aos Judeus, por um lado, como submetido à lei, e por outro, como sendo a Semente em quem as promessas deviam ser cumpridas. Mas Ele foi rejeitado, e assim o povo Judeu não só violou a Lei, o que já tinha feito no Sinai (1), mas também perdeu todo o direito às promessas — e promessas sem condições, sempre distintas. (Ver Romanos 10).
Deus pôde então introduzir a plenitude da Sua graça.
(1) É solene, mas instrutivo, notar que a primeira coisa que o homem Tez, foi arruinar tudo o que Deus tem estabelecido: Noé, o novo chefe do mundo, embriagar-se; aparece-nos o vitelo de ouro, quando a lei foi dada; os sacerdotes oferecem um fogo estranho no primeiro dia; Salomão cai na Idolatria e arruína o reino; Nabucodonosor exige a estátua de ouro e persegue os serviços do verdadeiro Deus! ...
Deus veio cm graça, mas o sistema estava arruinado. E é assim com a Igreja, não tenho a menor dúvida. Mas tudo será reparado de uma maneira maia gloriosa no último Adão.
Ao mesmo tempo tiveram o seu cumprimento os tipos e as figuras. A maldição da lei foi executada. Cumpriram-se as profecias que se referem à humilhação de Cristo.
E as relações de todas as almas com Deus — relações sempre necessariamente ligadas à Sua Pessoa, uma vez que Ele tinha aparecido — foram ligadas à posição que o Redentor tomou no Céu.
Deste modo a porta está aberta aos Gentios, e o plano de Deus a respeito da Igreja, corpo de Cristo assumpto ao Céu, plenamente revelado. Filho de Davi segundo a carne, e declarado Filho de Deus em poder por meio da ressurreição de entre os mortos (Romanos 1:3-4), «Jesus Cristo foi ministro da circuncisão, por causa da verdade de Deus, para que confirmasse as promessas feitas aos pais; e para que os Gentios glorifiquem a Deus, pela sua misericórdia» (Romanos 15:8-9). «Ele é a cabeça do corpo da Igreja é o princípio e o primogénito de entre os mortos, para que em tudo tenha a preeminência». (Colossenses 1:18).
A glória da nova ordem de coisas era tanto mais excelente, tanto mais elevada acima de toda a ordem terrestre que a tinha precedido, quanto estava ligada à Pessoa do próprio Senhor Jesus —a Ele, como Homem glorificado junto de Deus, Seu Pai.
Ao mesmo tempo, o que era agora introduzido punha o Seu selo em tudo o que O tinha precedido, como sobre uma ordem de coisas que tinha estado em Seu lugar, e ordenada por Deus; porque o Senhor Se apresentara sobre a Terra em relação com o sistema, que existia antes da Sua vinda.
Os três primeiros Evangelhos mostram-nos a apresentação de Cristo ao homem responsável, e particularmente a Israel. João oferece-nos o caráter divino c eterno do próprio Senhor; sendo Israel, desde o primeiro capítulo, considerado como tendo-O rejeitado; estando ele próprio, Israel, endurecido e rejeitado—e o mundo insensível à presença do seu Criador. É por isso que se vê plenamente, neste Evangelho, a graça eficaz e soberana, o novo nascimento, e a Cruz como fundamentos das coisas celestes.